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Sobre uma parábola e uma palavra

27 de outubro de 2014
4 min. de leitura
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Lembro-me de uma conversa que tive com um ex-namorado da minha irmã, em uma festa de não-sei-quem a muitos anos atrás, quando era bem novo. O cara estava de porre e começou a me contar uma parábola qualquer sem nenhum motivo aparente. Era mais ou menos assim: havia uma montanha e nela havia um sábio (nestas histórias, os sábios sempre estão nas montanhas). Este sábio tinha um aprendiz que todo dia viajava léguas e léguas e léguas e léguas para aprender coisas aleatórias sobre a vida. Numa manhã como outra qualquer, após uma caminhada extenuante (léguas e léguas e léguas), o aprendiz encontrou o sábio a segurar um travesseiro de penas (sintéticas, claro, para a história não perder o veganismo). Ao ver que seu aprendiz havia chegado, o mestre rasgou a fronha de algodão e deixou que o vento levasse as penas para a imensidão da floresta que se espalhava por debaixo do penhasco. Olhou as penas voarem leves pelo ar e após alguns minutos ordenou que o aprendiz fosse recolhê-las. “É impossível, mestre!”, choramingou o pobre do rapaz. Ao que o sábio respondeu: “Não quero nem saber”. Lá se foi o malfadado fulano caçar penas na floresta por dias a fio. Após um mês, ele voltou para o topo da montanha com umas três ou quatro peninhas que ele nem sabia se eram do travesseiro ou não. “Fracassei, mestre!”, disse ele. E o sábio respondeu: “Jamais se esqueça: palavras são como penas ao vento, uma vez jogadas é quase impossível recuperá-las”, ou algo do tipo.
Uau! Pense em um moleque de doze anos estupefato. Contava esta história sempre que tinha uma oportunidade, mas nunca compreendi o que ela queria dizer muitos anos depois. E, quando finalmente entendi, o bêbado era eu. Estava conversando com uma amiga e, em algum momento, começamos a falar do Francione. Este mesmo: o cara que acha que decide quem é vegano, quem não é; quem é abolicionista, quem não é; o que é certo e o que é errado dentro do movimento; mas que ninguém com um mínimo de discernimento ainda liga para o que ele acha ou deixa de achar.
Enfim, perguntei a esta amiga porque o Francione a incomodava tanto. Ela respondeu: “ele me fez chorar”. Diante da honestidade crua da resposta, fiquei sem ação. Não consegui perguntar o que havia acontecido, xingar o gurú do veganismo, ou mesmo abraçar aquela pessoa visivelmente emocionada na minha frente. Tive a pior reação possível: olhos arregalados e a boca entreaberta, talvez com uma pequena baba elástica, nelson-rodriguiana, no canto da boca.
Mas, mesmo frente à minha total incompetência social, ela contou o acontecido. Disse que uma vez assistiu a uma fala do Francione, na qual ele abordou o abuso sexual de animais pela indústria. Nesta ocasião ele usou repetidamente a palavra EST**, e aquilo a machucou. Não por ela se achar melhor que os não-humanos ou pensar que animais não sofrem abuso sexual. Não era isso. O que a incomodava era ver um homem tão cheio de si falando daquele assunto como tanta propriedade. Aquela palavra a invadia e trazia memórias que a faziam odiar seu corpo e se sentir culpada, envergonhada. Era mais um homem com poder querendo invadir a sua própria experiência, dizer o que ela passou, mesmo sem saber nos nervos, na carne, no sangue, do que estava falando. Ela estava indefesa contra aquilo e não pôde fazer outra coisa senão chorar, correr, esconder-se de tudo.
Muitos militantes usam a palavra EST*** indiscriminadamente. Ela pode ser interessante para causar impacto mas, muita vezes, é insuportável para as vítimas. Não estou tentando propor que a experiência dos animais não seja discutida como é, em sua real e perturbadora extensão. Mas o mais importante para o movimento vegano é incluir mais e mais indivíduos em uma ética libertadora. Quando perdemos a sensibilidade em relação a outro ser que nos completa nesta luta, o excluímos de forma dolorosa. Portanto, na hora de nos posicionarmos é preciso que saibamos quem somos e de onde viemos; que experiências nos pertencem e quais pertencem ao outro. Sem perceber, sem intenção, você pode estar oprimindo alguém que está do seu lado da luta. Evite palavras-gatilho, que machucam outras pessoas, que invocam dores profundas e experiências insuportáveis. Pense nas suas penas antes de jogá-las ao vento: o propósito delas é salvar, não machucar alguém. Talvez, como o aprendiz cansado, você nunca conseguirá recuperá-las novamente.

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