A que horas o sabiá-laranjeira canta? Essa é uma pergunta importante quando pensamos em adaptação animal nos centros urbanos. Para sobreviver na selva de pedra, diferentes espécies animais mudam seus hábitos, sejam suas dietas, seus horários de atividade ou até mesmo seu ciclo reprodutivo. No caso do sabiá-laranjeira, para poder se reproduzir, seu canto precisa ser ouvido por potenciais parceiros. Para evitar a disputa com a poluição sonora das cidades, essa espécie vem cantando cada vez mais cedo.
Esse é apenas um exemplo de adaptação animal decorrente da urbanização. Quando pensamos em ratos, mosquitos e pombos, considerados pragas, não podemos nos esquecer que, embora comuns nas cidades, esses animais são originais da natureza. Quem explica melhor o processo de adaptação dos animais aos centros urbanos é a professora Ana Paula Aprígio Assis, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP.
“A hora que você transforma uma floresta numa cidade, grande parte da fauna, da flora, dos seres vivos que vivem nessa floresta não consegue sobreviver. O que estranha é os que conseguem. É isso que é a grande pergunta. Por que eles conseguem sobreviver e o que acontece com eles a hora que eles sobrevivem?”, inicia a professora.
O que leva à adaptação
Ana Paula explica que a adaptação não é só comportamental, mas também genética, abrangendo animais e plantas. Em seguida, comenta: “Para as aves, quem são as que conseguem sobreviver? São aquelas que são mais generalistas, que conseguem comer coisas diferentes, são aquelas que vão conseguir comer o resto de lixo que o humano deixou. São aquelas aves oportunistas, que não têm aquele nicho muito específico, que só comem aquela semente daquela planta etc. Então tem esse filtro inicial, mas depois do filtro inicial você vai ter que se adaptar à cidade, e adaptar aqui no sentido evolutivo mesmo, no sentido de mudar a diversidade genética desses bichos para conseguir responder a essas pressões seletivas.”
Segundo a professora, espécies como ratos, camundongos e pombas se adaptaram a ponto de existirem numa relação “quase simbiótica” com os humanos. “Tem aqueles que ganharam na loteria. Sempre onde tem um aglomerado de seres humanos você vai ter aqueles animais.” Capivaras, quatis (mão-pelada), saruês (gambá-de-orelha-preta), carcarás e urubus também podem ser exemplos de animais que se adaptaram às cidades brasileiras.
Entre outros exemplos de adaptação urbana, a professora comenta sobre os coiotes americanos, que vêm se tornando mais ousados, se aproximando mais dos centros urbanos e adequando suas alimentação para dietas mais açucaradas; as lagartixas da cidade, que, em comparação com as encontradas na natureza, têm patas mais colantes, permitindo que elas escalem paredes mais lisas; e os mosquitos do Metrô de Nova York, mais adaptados ao ambiente subterrâneo e mais interessados em sangue humano.
Bolsões verdes, planejamento urbano
Ana Paula fala sobre a importância de áreas verdes dentro de centros urbanos: “Você vai conseguir ter bolsões onde você tem uma maior diversidade do que, obviamente, lugares que têm menos áreas verdes. A conexão entre populações diferentes da mesma espécie também é superimportante, porque a gente sabe que variação genética importa para ter populações viáveis. Também tem uma importância para a própria população humana, os serviços ecossistêmicos que esses animais, essas plantas prestam.” Além da preservação da biodiversidade, Ana Paula comenta a importância das aves na dispersão de sementes, das abelhas e outros insetos na polinização das flores na cidade e do bem-estar promovido pelo contato humano com a natureza.
A professora Ranny Michalski, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da USP, especialista em conforto ambiental e acústica urbana, também comenta a importância que áreas preservadas proporcionam para a sociedade, ainda mais em períodos de emergência climática “A gente tem que ter áreas verdes espalhadas pela cidade inteira, praças, parques, corredores ecológicos, para permitir essa circulação de aves, insetos e mamíferos. Pensar também na importância dos córregos, das águas, dos rios, das várzeas, para poder reduzir enchentes, preservar ecossistemas aquáticos também. Telhados, paredes verdes, poderia ser legal pensando em insetos e nessa permeabilidade de uma superfície. Especificamente, tentar se preocupar com iluminação e ruído, porque eles impactam principalmente as aves. A gente tem um conceito que a gente chama de cidade-esponja, que é pensar em usar o solo permeável para ter infiltração e vegetação, para poder, principalmente em tempos de mudanças climáticas, evitar alagamentos, enchentes ao invés de ser uma cidade só de concreto e canalizada.”
Ranny ainda comenta sobre Singapura como um exemplo de cidade a ser seguido, pensando na natureza em comunhão com as pessoas. Sobre a questão dos pássaros e do ruído, ela ainda complementa: “O sonho é que toda cidade tivesse um planejador sonoro urbano. Uma pessoa que soubesse lidar com as diversas áreas de uma cidade com relação ao ruído, a como é o som, como é o ambiente acústico naquela cidade. A gente tem uma abordagem bem recente, que é chamada de paisagem sonora. É considerar o som como uma estratégia de projeto, como alguma coisa positiva que exista naquele ambiente, o som da onda, o som de uma queda d’água ou o som dos cantos dos pássaros”.
Que horas o sabiá-laranjeira canta?
Juntas, Ana Paula e Ranny fazem parte do projeto A Que Horas o Sabiá-Laranjeira Canta?, que procura entender como a urbanização afeta o horário do canto desse pássaro. Segundo Ranny, o convite para sua participação partiu da professora Ana, que a chamou devido à sua especialidade em acústica urbana. “A hipótese que a gente está pesquisando é que o horário do canto do sabiá mudou na cidade de São Paulo. Na verdade, é meio sabido, mas quanto mudou? Para que horário mudou? Como foi isso? A principal causa para essa hipótese é a poluição sonora urbana que está intensa. Daí, eles precisam cantar em outros horários para poderem ser ouvidos e poderem se reproduzir. Para os seus potenciais parceiros ouvirem seu canto e ter a reprodução. Foi uma adaptação causada pelo contexto urbano que acabou impactando numa diferença de comportamento da própria fauna.”
O projeto é financiado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da USP, pela Fapesp e pelo Instituto Serrapilheira. A proposta de ciência cidadã busca incluir escolas do município de São Paulo a participar ativamente dessa investigação coletiva. Nas palavras de Ana Paula: “A gente vê uma criança que cresce em São Paulo, muitas vezes ela é desconectada da natureza. É muito comum você ver uma criança que chega aqui, vem estudar Biologia na USP e nunca entrou num fragmento de Mata Atlântica, que é do lado da cidade de São Paulo. A gente queria também trazer a biodiversidade, mostrar para as crianças as coisas bonitas que tem, para elas conseguirem se sensibilizar. Dentro desse projeto, a gente tem vários subprojetos que as crianças vão desenvolver. A gente quer entender um pouco também como é a percepção delas com o meio ambiente, como é a percepção dos adultos em volta dessas crianças, com a cidade de São Paulo e com as espécies que ocorrem em São Paulo”.
Ana Paula ainda comenta a importância de projetos como esse em regiões tropicais, onde existe uma diversidade maior. Por fim, a professora de biologia completa: “As pessoas estão começando a tentar estudar ecologia na cidade, evolução na cidade, por vários motivos. Primeiro porque ela nos traz um pouco de insight sobre o próprio processo evolutivo, o próprio processo ecológico, que a gente como biólogos e ecólogos queremos entender sobre o mundo. Mas também porque ajuda a gente a desenhar cidades mais resilientes, cidades mais verdes e cidades mais biodiversas”.
Fonte: Jornal da USP