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Para a proteção animal, cada vida é única

18 de janeiro de 2017
7 min. de leitura
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“Não é só biologia, é biografia”(Second Nature –The Inner Lives of Animals, Jonathan Balcombe)

Divulgação | Getty Images

Ao ser flagrada, certa feita, salvando insetos em uma piscina me perguntaram se tal atitude era útil, já que tantos deles se afogavam diariamente naquelas condições. Fui questionada também – para meu espanto – se eles (os insetos) se davam conta de que estavam sendo salvos…
A resposta à segunda questão é óbvia: sim, é claro que lhes importa não morrerem afogados! É gratificante sentir suas delicadas patas artrópodes pressionando firmemente meus dedos, até poderem andar ou serem capazes de sacudir suas asas encharcadas e alçar voo de volta à vida.
Já a primeira questão, que trata da banalidade da morte, pode receber a seguinte resposta (pouco original, mas verdadeira): para cada um deles, valeu a pena ser salvo!
O veganismo é, sem dúvida, a pauta de conduta ética que oferece o mais coerente e sólido conjunto de premissas que visam garantir “proteção” aos animais.
Se todos fôssemos veganos, não presenciaríamos a exploração, a chacina e o abandono à própria sorte de animais como cães, gatos, coelhos, bois, porcos, etc. A chamada “proteção animal” – focada nesses casos –nem existiria, pois tais animais não seriam criados e, por conseguinte, não seriam objeto de qualquer tipo de comércio, seja ele voltado à alimentação, ao vestuário, ou mesmo à mera “companhia”, entre outros fins espúrios.
Mas o veganismo encontra-se alicerçado, basicamente, em deveres negativos, ou seja na “não-ação” [1]. Não está claro, portanto, se haveriam e/ou quais seriamos chamados deveres positivos para com os animais não-humanos.
Há defensores dos direitos animais que se contentam em seguir o princípio da não-interferência e, nesse caso, como mencionado antes, a maioria das ações na esfera clássica da proteção não seria empreendida. Há os que firmemente acreditam nisso, mas também os que se acomodam nessa postura pois, é claro, se manter numa esfera de deveres negativos é menos custoso – emocional, intelectual e economicamente – do que incorporar deveres positivos também. É, de certa forma, como o caso dos vegetarianos inveterados que,mesmo cientes de todo o sofrimento envolvido na indústria de laticínios, não desejam dar mais um passo no que tange à restrição de suas dietas, etc, aderindo ao veganismo.
A não-interferência é também um princípio que aprendemos como biólogos. No que concerne a vida selvagem tal fundamento funciona muito bem, mas o que dizer das relações com os animais que domesticamos? E o caso dos insetos que se afogam numa piscina, “animais selvagens” vítimas de um artefato humano (um “lago aleijado”, de bordas abruptas)?É aqui que as atitudes proativas – ações diretas de salvamento e/ou resgate –podem ser a origem de polêmicas.
Entre as muitas linhas filosóficas que tratam da construção de uma relação eticamente correta entre nós e os animais não-humanos,há a tradição filosófica feminista da “Ética do cuidado”. Tal corrente teórica é a que mais se próxima da dita “proteção animal”. Acusada de personalista –e em verdade muitas vezes o é – a ética do cuidado tem, entretanto, o mérito de preencher um hiato importante que existe frequentemente nas linhas de argumentação ditas mais racionais (como a dos direitos), ao fazer a ponte necessária entre a razão e a emoção (domínios cognitivo e afetivo).
Ano retrasado, durante uma mesa redonda na qual participei [2], vivi uma situação inusitada. O palestrante que me antecedeu exibiu em seu último slide a foto de uma mulher oferecendo água para um porco, num caminhão, a caminho do matadouro. Não professo nenhuma religião. Mas foi inevitável fazer um paralelo com a imagem da crucificação. Me identifiquei enormemente com aquela mulher,em seu cuidado paliativo amoroso e em sua impotência absoluta. Imergi por completo no seu sofrimento, de cabeça e coração, e uma emoção incontrolável tomou conta de mim. Entrei em desespero ao me dar conta de que em dois minutos o microfone estaria em minhas mãos e que eu não conseguiria estancara profusão de lágrimas que escorria conspicuamente pelo meu rosto. Não tive outra alternativa a não ser admitir meu destempero, me desculpar junto à audiência e pedir uns minutos para me recompor. Após uns segundos de silêncio, alguém com muita fineza e solidariedade exclamou: – Que bom saber que a Academia não é só razão! Seguiram-se aplausos. Aquelas palavras reconfortantes me deram forças para retornar, como deveria, ao domínio da razão. Peguei o microfone e, serenamente, fiz minha palestra,desprovida daquelas paixões insólitas.
A lida direta com os animais é algo visceral, envolvente e autêntico. Perde um viver quem nunca se apaixonou – sofreu e amou– a não ser no território seguro, previsível e racional dos livros. Embota uma parte da alma quem não faz essa conexão real. Cada olhar animal é um mundo único. E, como na epígrafe desse texto, cada mundo uma biografia.
Acabo de encerrar uma modesta ajuda em uma operação de resgate de uma ninhada de gatinhos cuja mãe desapareceu.
Dois deles logo morreram, dois foram levados do local (e não sei se estão bem adotados). Restou uma pequena fêmea que arrebatou meu coração com sua personalidade ímpar e seu olhar atento, meigo e suplicante. Felizmente foi muito bem encaminhada em sua adoção.
A proteção animal não é a minha “praia”, mas ocasionalmente me envolvo, como neste episódio de final de ano. Nas vezes em que isso aconteceu, não foi por ter sentido uma vontade irrefreável de ser “mãe” de algum cachorro ou outro animal, mas pela pura incapacidade emocional de lhes negar socorro.O sofrimento deles já era também o meu, já estava “Under my skin” [3]. Há quem nunca tenha sentido isso. Na realidade, a maior parte das pessoas que conheço jamais viveu tal experiência. Não conseguem ter empatia pelo animal, ou sequer compreender o sentimento de quem se compadece por eles. Em ambos os casos, trata-se de uma inépcia no que toca a se colocar no lugar do outro.
Apesar de discordar de algumas visões e modus operandi de diversos protetores, tiro o meu chapéu para os obstinados condutores desse trabalho invisível, humilde, que não alimenta egos, não engorda currículos, nem promove biografias humanas. É um trabalho de doação, de altruísmo. Para isso há que ter coragem, ou seja, coração, e não apenas a racionalidade estéril que caracteriza, infelizmente, as mentes calculistas inclusive de diversos veganos.
Para os protetores, vale a pena abdicar de investimentos em si próprios porque sabem que tudo o que vive quer viver. Em cada animal que resgatam – e recuperam o brilho do olhar – o que ganham é imaterial, impalpável e impermanente, pois seu trabalho não tem fim.
É interessante destacar ainda que a proteção animal, em pelo menos um aspecto, vai ao encontro da crítica abolicionista animal à ecologia profunda, a qual desconsidera o valor de cada vida individualmente, permanecendo no nível abstrato e impessoal das populações.
“Qualquer maneira de amor vale a pena”, diz a música [4]. Apesar de ter uma visão crítica quanto a muitas formas de “amor aos animais” e aos perigos intrínsecos a algumas vertentes da “ética do cuidado” (que podem facilmente cair no especismo seletivo e, portanto, perpetuar injustiças), acredito que a proteção animal nos faz caminhar mais leves neste “vale de lágrimas”. Os seres que resgatam simbolizam a esperança, são uma espécie de embaixadores de um novo tempo no qual nossa relação com as outras espécies animais será de igualdade.
Notas:
[1]: Não consumir na alimentação, vestuário, higiene, etc, produtos de origem animais/testados em animais; não comprar pets, não ser conivente com formas de lazer que envolva a exploração de animais, etc.
[2]:O evento em questão foi o “IX BioÉticaSul – Vulnerabilidade: a vida humana e não humana em debate”, promovido pelo Instituto de Bioética da PUC/RS, em 2015. O palestrante ao qual fiz referência é o prof. Daniel Lourenço, da UFRRJ.
[3]: Referência à músicaI´ve got you under my skin, de 1956, de Cole Porter.
[4]: Referência à músicaPaula e Bebeto, de Milton Nascimento e Caetano Veloso.

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