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MINAS GERAIS E BAHIA

Para fugir do calor no cenário de 'Grande sertão: Veredas', animais como onças e antas recorrem até a buraco de tatu

16 de novembro de 2024
6 min. de leitura
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Foto: Onçafari e Projeto Tatu-canastra/ICAS

No sertão, sem água e com a inclemência do sol por companhia, Riobaldo encontrou refúgio em um buraco de tatu. Não um buraco qualquer, mas o escavado pelo canastra, o maior de todos os tatus. Engenheiro da natureza, ele faz tocas onde a temperatura fica a 25°C, quando fora beira os 40°C. É tão bom na arte dos abrigos térmicos que cerca de 400 espécies de animais, de antas a insetos, lhe devem o favor do empréstimo das tocas para fugir do calor. Inclusive o rei da cadeia alimentar, Riobaldo, uma onça-pintada.

Riobaldo, a onça, virou tema de estudo sobre o impacto do calor no mesmo lugar onde se desenrola a saga do protagonista de “Grande Sertão: Veredas” que lhe inspirou o nome. Quando a necessidade obriga, a onça-pintada nada e escala árvore, mas se abrigar no subsolo foi a primeira vez.

Uma medida desesperada para tempos desesperadores. E um retrato do impacto sobre a fauna do calor sem precedentes instalado no coração do Brasil desde 2023. Um período que iniciou uma história que ainda não terminou.

Como ensinou Guimarães Rosa, “o sertão é o mundo”. Mas quis ele que a saga de Riobaldo Tatarana, Diadorim e tantos outros se desenrolasse no sertão onde os cerrados do Norte mineiro, Sudoeste baiano e Sudeste goiano se juntam.

O cenário da obra-prima da literatura se tornou também o da luta pela sobrevivência dos animais, em um dos lugares mais quentes do período mais tórrido que se tem notícia no Brasil. Uma história com estratagemas, sofrimento e morte registrada pela ciência ali, mas que retrata desafios da biodiversidade país afora. Pois, nos disse Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte”.

“É o retrato do impacto do calor e da seca na biodiversidade. Sem os animais, não temos biomas. Sem eles, não há água. Está tudo conectado”, afirma o biólogo da Associação Onçafari Eduardo Fragoso, um dos autores do estudo, publicado no periódico Notas sobre Mamíferos Sudamericanos.

Refúgio em meio a fazendas

Ficam nessa região o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, onde a onça foi parar no buraco do tatu; o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano; e reservas particulares como a da Pousada Trijunção. As unidades de conservação funcionam como refúgios numa região cercada por fazendas de tabaco, soja, algodão, milho e sorgo.

As áreas estão entre as mais belas e ricas em fauna de todo o Cerrado. Mas desde 2023 os animais enfrentam ali uma terra sem misericórdia — não dos jagunços de Rosa, mas do clima. E sofrem com obstáculos impostos pelo ser humano.

“As unidades de conservação são essenciais para garantir a existência do Cerrado, mas tem de haver segurança e convivência sustentável com a fauna mesmo fora delas”, diz o chefe do Grande Sertão Veredas, Alberto Peterson.

Nem todos os animais têm a sorte de achar uma toca de canastra e da sede ninguém escapa. Nascentes secam, riachos desaparecem e veredas minguam. Também esgotados por calor e sede, a loba-guará Nhorinhá e seus filhos Urucuia e Formoso foram buscar alívio nos canais de irrigação de fazendas. Em municípios como os baianos Cocos e Jaborandi, a irrigação chega a captar de rios e aquíferos mais de dois milhões de litros de água por dia.

Mas as águas cristalinas de margens escorregadias são armadilhas para os animais — chegam a ter mais de 20 quilômetros de extensão. A morena Nhorinhá da obra de Rosa se perdeu pelos sertões. A Nhorinhá da vida real morreu afogada com os filhos em um canal de irrigação da Fazenda Alto Jaborandi, em Jaborandi, descobriu o Onçafari, porque os animais eram monitorados por coleiras com GPS.

Forrados por geomembranas de impermeabilização, os canais se tornam tão escorregadios que nenhum bicho ou pessoa sai sem ajuda. Numa fazenda da região, mostrou relatório do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), marcas de patas mostram que muitos bichos tentam, em vão, desesperadamente se salvar. Em outra, os fiscais encontraram um cemitério de ossadas de variadas espécies, como veados.

Os lobos morreram no início da seca, em 2023, e as fazendas foram multadas pelo Inema. As sanções ainda não foram pagas, e os canais seguem como armadilhas letais. O relatório do Inema frisa que a solução não é difícil: está nos canais “naturalizados”, sem mantas e cercas, ou em canais subterrâneos, mais caros.

O sol em vazios

“As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios”, escreveu Rosa. Os vazios só fazem crescer. O calor extremo começou sem trégua no segundo semestre de 2023, ano mais quente da História, e seguiu sem perder fôlego em 24, que periga superar o recorde.

Uma pesquisa de Ana Paula Cunha, especialista em secas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), publicada com exclusividade pelo GLOBO, já havia indicado que a região entre o norte de Minas e a Bahia era a que mais havia esquentado no Brasil em 2023.

Este ano, a seca se agravou. Chapada Gaúcha (MG), sede do parque, ficou 174 dias seguidos sem chuva. Municípios de entorno, como Jaborandi, 191. E Cocos, 193 dias, ou mais de meio ano, sem que uma gota d’água caísse do céu.

No sertão onde a negligência humana mata, a engenhosidade da natureza salva. As tocas do tatu-canastra chegam a ter 5 metros de profundidade por 40 centímetros de largura e conseguem manter a umidade e temperatura constante, a despeito do exterior, explica Arnaud Desbiez, também autor do estudo e presidente do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS).

O canastra adulto mede 1,5 metro de comprimento e pode pesar 50 quilos. É noturno, quase nunca é visto. Mas deixa de presente as tocas que cava a cada dois ou três dias para caçar formigas e cupins dos quais se alimenta e também para se abrigar. Munido de força imensa e de uma unha com 13cm, quebra a terra como se fosse areia e em 20 minutos já tem uma toca razoável.

Encontradas às centenas, elas são abrigos térmicos que salvam muitos bichos da exaustão.

“Os tatus estão sempre cavando, em busca de comida, e nem sempre retornam às tocas antigas. São essenciais, fazem um bem enorme à natureza”, ressalta Desbiez.

Mas os canastras, já naturalmente escassos, estão cada vez mais raros, por várias ameaças, a começar pelo fogo. Já o calor segue. E a agricultura cada vez mais depende da irrigação.

“Precisamos de políticas públicas que contemplem a proteção da biodiversidade. É possível atender às necessidades de produtores e dos animais. Os canais só tendem a aumentar, é necessário que sejam seguros. Temos que sensibilizar não só os produtores, mas os bancos que os financiam”, enfatiza Ravi Mariano, da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (Amda).

As chuvas chegaram há pouco, ainda sem força para saciar o Cerrado. O Riobaldo do livro é imortal. Mas o Riobaldo-onça não viu as águas voltarem. Foi achado sem vida numa vereda. Os canais de irrigação seguem seu curso.

Viver é muito perigoso, já alertava Guimarães Rosa. Viver em tempos extremos é ainda mais.

Fonte: O Globo

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