“A hipnose é um estado psíquico em que o hipnotizado, numa condição semelhante à de transe, fica altamente sujeito à influência do hipnotizador. O estado de concentração hipnótica filtra a informação de modo que ela coincida com as diretivas recebidas. A hipnose consiste numa mudança radical de percepção sobre o que se passa no mundo sem que na realidade haja razões para sustentar tal mudança”
(“O hipnotizador”, Boaventura de Sousa Santos[1])
O que há de comum entre práticas bem-estaristas, a reciclagem de materiais e a monetarização de externalidades ambientais, por exemplo? Sem prejuízo de outras comparações cabíveis, o que elas têm em comum é o fato de emergirem no contexto da relação sociedade-natureza e serem marcadas pela ausência de um viés ético-epistemológico revolucionário, no sentido de construir um ideário contra-hegemônico. No primeiro caso, os animais não humanos continuam a ser vistos como mercadorias; no segundo, o processo produtivo dominante permanece como algo que necessita apenas de pequenos ajustes; e, no terceiro caso, perpetua-se a visão da natureza como um grande fábrica, como uma parte produtiva do todo.
Cada um dos contextos citados é marcado pela existência de correntes teóricas que diferem profundamente entre si no que tange ao ideário mais adequado para abordar e resolver os problemas em questão. No entanto, em apenas um desses três contextos, emergiu um movimento sectário no seio do qual os que advogam o abolicionismo animal passaram a criticar toda e qualquer ação, instituição ou pessoas que, em sua visão, seriam apenas bem-estaristas, sob a alegação de que suas ações estariam atrasando a libertação dos animais não humanos do jugo do Homo sapiens. Mas será que tal “caça às bruxas” procede? Neste texto, defendo a ideia de que a dicotomia abolicionismo x bem-estarismo nem sempre se sustenta. A argumentação proposta indica que o que define o potencial transformador de um conjunto de práticas – se revolucionárias, ou tão somente reformistas – reside num fator teleológico: nos exemplos citados, inexiste um potencial revolucionário, porque todos consideram que seus fundamentos e propostas de ação são metas finais, e não paliativos, ou caminhos, para uma verdadeira transformação paradigmática. O componente teleológico – objetivos e metas – tem, portanto, uma relação dialética com as premissas de uma causa ou postura ética.
Não vou tecer minha argumentação urdindo os mesmos fios condutores que outros fizeram [2], já que a repetição de ideias é enfadonha para os leitores perspicazes. Serão traçadas apenas, de forma sucinta, algumas analogias entre a suposta dicotomia abolicionismo x bem-estarismo e situações, ou posturas éticas, que desembocam em movimentos sociais, políticas públicas etc., que têm origem em outros setores e áreas do conhecimento.
A educação como ato político: revolução ou reforma, educação ou adestramento?
No âmbito da chamada educação ambiental, venho defendendo, desde 1992, a importância dos temas geradores, em contraste com ações superficiais que esgotam o assunto em pauta sem que haja considerações de ordem histórica, política, ética, estética, entre outras. Meu argumento básico é o de que a educação crítica (quer tenha o adjetivo “ambiental” ou não) deve construir uma racionalidade contra-hegemônica, baseada em novos valores. É por isso que as abordagens que reduzem a discussão em questão às suas dimensões meramente instrumentais não são suficientes. E é por essa razão que colocar em prática somente a reciclagem – no que concerne ao tema “lixo” – não promove uma mudança de valores, pois não há um questionamento acerca das causas do problema. Para isso é preciso lançar mão, no mínimo, da “pedagogia” dos 3Rs (reduzir, reutilizar e reciclar – vejam que existe uma hierarquia) para que, a partir dela, o tema “lixo” ganhe uma dimensão política, ética, social, econômica etc., dentro da qual emergem questionamentos como: em que contexto histórico o consumismo se tornou um ícone em nossa cultura; quais são os impactos de diferentes modos de produção sobre os recursos naturais; que tipo de emprego é gerado dentro de uma perspectiva de maximização do lucro, entre muitas outras questões desconsideradas mesmo nas visões que se pretendem sistêmicas.
Outro exemplo emblemático de esvaziamento do conteúdo crítico de atitudes supostamente ambientais são as inócuas campanhas isoladas de plantios de mudinhas de árvores, e “hortas escolares”, que pretendem mudar paradigmas com ações pontuais que se encerram ali mesmo, sem questionar a prática do desmatamento (quem lucra com ela, para quê e para quem são destinadas as áreas desmatadas, que tipo de alimentos são plantados e por quê etc.).
Em suma, toda e qualquer modalidade educacional (sala de aula tradicional, a distância, educação informal, etc) na qual seja suprimida a dimensão dinâmica, plástica, própria da educação crítica e libertadora – aquela que dá valor ao conflito de ideias – acaba por transformar o processo educacional no que chamei de adestramento. Lamentavelmente, a tendência adestradora se tornou hegemônica, exatamente por ser muito mais cômoda do que as abordagens que exigem análises e construções caso a caso. E, com isso, surgem os “pacotes” de conteúdos e práticas “prontos para o uso”.
No âmbito do movimento animalista, ocorre atualmente um processo semelhante: temos os “pacotes prontos” que se pautam pelo bem-estarismo, de um lado, e pelo abolicionismo, de outro. As críticas da vertente abolicionista ao bem-estarismo se baseiam em fundamentações teóricas – científicas, e sobretudo filosóficas – que emergem no contexto acadêmico. Mas o cientista virou um mito, nos alerta Rubem Alves (1993, p. 10). E todo mito é perigoso, porque induz o comportamento e inibe o pensamento. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam, conclui ele. É assim que a ciência pode se transformar em fundamentalismo: “A ciência se distingue do dogmatismo porque aos seguidores de um dogma não é permitido estudar o sistema em questão, examinar sua veracidade, ou considerar se existem melhores explicações para seu funcionamento” (GREEK & GREEK, 2003, p. 17).
É claro que a menção a dogmatismos, mitos e hipnotizadores não se refere aos fundamentos do abolicionismo animal, em si, que, a despeito de não haver uma única vertente ético-filosófica que lhe dê sustentação, são bastante sólidos. Aliás, é precisamente essa pluralidade de vertentes que o torna sólido. A menção a essa forma de pensamento engessado, proveniente de um processo de adestramento de ideias, diz respeito ao dogma de que nenhuma medida bem-estarista pode ser boa – qualquer que seja a circunstância – e que o bem-estarismo não pode ser – em nenhum caso – uma etapa para o abolicionismo animal. Rejeitar, pura e simplesmente toda e qualquer medida rotulada como bem-estarista é uma atitude cômoda, pois isenta os atores sociais em questão da obrigação de pensar. Trata-se de um comportamento hipnótico no qual se evita, a partir de uma perspectiva sistêmica, examinar cada contexto, cada caso, avaliar quais são as metas de determinada proposta (se é uma ação que se encerra ali mesmo, ou uma medida de transição), quem são seus proponentes, quem são seus verdadeiros beneficiários, entre outras ponderações.
Teoria (ética e epistemologia) e prática (o mundo real)
O economista ecológico Martinez Alier (1994, p.56-57) comenta que a economia ambiental neoclássica parte do pressuposto de que todas as externalidades (por exemplo, a poluição hídrica decorrente da suinocultura) podem receber uma valoração monetária convincente. Mas ele e outros economistas ecológicos não acreditam que seja possível avaliar monetariamente, de forma satisfatória, os efeitos irreversíveis e incertos de nossas ações de hoje sobre as gerações futuras. Os economistas ecológicos defendem, portanto, a incomensurabilidade dos elementos da economia. Entretanto, aceitam, num plano prático, medidas que sirvam como instrumentos que levem a reduzir os impactos negativos da economia sobre a natureza (por exemplo, impostos sobre o uso de energias não renováveis).
Se analisarmos as duas economias desde uma perspectiva epistemológica – que, como muito bem pontua Herbert Marcuse, é ao mesmo tempo ética – os fundamentos das duas vertentes são, de fato, irreconciliáveis. Está claro, também, que tal divergência de princípios vai engendrar diferentes desdobramentos práticos, notadamente as chamadas ações mitigadoras versus ações preventivas. A questão não é, por conseguinte, trivial: ela diz respeito a paradigmas de ciência, e, no que toca à dimensão epistemológica, um dos pontos nevrálgicos se refere à possibilidade (ou não) de quantificar a natureza, de traduzi-la em termos de estruturas matemáticas (veja, por exemplo, Marcuse, 1982; e as considerações de Husserl, citado por Marcuse, 1982, p. 153-162) para depois então, eventualmente, ainda monetarizá-las, ou seja, quantificá-las mais uma vez!
Os pressupostos da economia ecológica são claramente os únicos que podem dar conta das questões ambientais, em termos de uma mudança de paradigma, exatamente por questionarem o cerne da racionalidade econômica, alicerçada numa visão de mundo reducionista que reifica a natureza. A aceitação da possibilidade de monetarização de um efeito deletério de uma ação de hoje é vista, no seio da ética da economia ecológica, apenas como um paliativo – no seu bom sentido, o de remediar – e não como uma medida suficiente, ou sequer correta, no sentido rigoroso do termo.
Tal analogia pode ser transposta para a oposição bem-estarismo x abolicionismo, uma vez que as medidas que servem como instrumentos que reduzem os impactos negativos da economia sobre a natureza seriam comparáveis a algumas propostas bem-estaristas. Aqui, também, as premissas e fundamentos filosóficos são bem diferentes entre si. Há uma irredutibilidade conceitual que tem como base legítima um conjunto de valores que se referem a diferentes formas de ver, apreender e lidar com o entorno, com o outro. Aceitar, todavia, que “um paliativo é melhor do que nada”, pelo menos em certas circunstâncias e contextos, não significa abrir mão dos valores e pressupostos que fundamentam o abolicionismo (ou a economia ecológica). Para isso, basta explicitar de forma clara – e sempre – qual é a meta maior, isto é, qual é o elemento teleológico em questão – e quais são seus fundamentos – ao mesmo tempo em que se apontam as limitações do modelo criticado.
Na maioria dos contextos, porém, isso não é feito. É nesse sentido que gostaria de retomar a questão da reciclagem de materiais, para mostrar um exemplo emblemático de confusão entre meios e fins, e de propostas guiadas a partir de visões de mundo reducionistas que, de fato, conduzem a retrocessos.
Quando um paliativo é pior do que nenhuma ação
A maioria das pessoas considera “radical” – no sentido de inflexível – a postura de ser contra a reciclagem, tout court, e, por essa razão, sempre é preciso explicar por que um estímulo à reciclagem, tão somente, pode ter um efeito pedagógico com consequências práticas assaz indesejáveis. Um exemplo clássico é o de escolas que organizam gincanas cuja premiação se baseia na quantidade de sucata juntada. Professores com uma visão mais crítica observaram que, na maior parte dos casos, as crianças pediam para que seus pais aumentassem o volume de compra de itens recicláveis a fim de alcançarem a meta proposta e, assim (pasmem), vencerem a gincana. Não é difícil perceber que o aprendizado “oculto”, porém efetivo, nessas circunstâncias é um estímulo ao consumismo e à competitividade, valores que se situam na contramão das visões críticas sobre a questão ambiental, sendo grave o fato de que o consumismo é precisamente o que se deveria combater! A reciclagem de qualquer material é, portanto, uma medida correta e efetiva somente quando associada aos outros dois “Rs” – redução e reutilização – nessa ordem de prioridade. Mas como “redução e reutilização” funcionam como freios do processo produtivo, somente a reciclagem tornou-se uma bandeira forte no setor empresarial e na sociedade do consumo, em geral (Brügger, 2004, p. 99-101).
Analogias com o tema central discutido neste texto podem e devem ser feitas, para mostrar que a crítica a medidas bem-estaristas, em algumas situações, procede de fato. Mas isso somente será verdade, aqui também, se as medidas bem-estaristas em questão estiverem desvinculadas de leis, políticas públicas e, sobretudo, de programas de educação que deixem claro que o elemento teleológico é a abolição da escravidão animal. O bem-estarismo pode ser apresentado como uma meta final, ou como um mecanismo de transição. Num contexto educacional informal, por exemplo, quando ouvimos alguém dizer que só compra ovos caipiras porque as galinhas podem viver conforme a sua natureza, podemos apenas elogiar sua atitude (posição teórica e prática bem-estarista); condená-la sumariamente sob o argumento de que, ainda assim, o animal é considerado como um objeto, e tanto faz tratá-lo bem ou não (posição abolicionista inflexível); ou dizer que isso é um passo importante, mas que – à luz da ética abolicionista – não é uma atitude suficiente, ou correta, porque cada animal é sujeito de uma vida, que eles não estão aqui para nos servir, que são seres sencientes, que tal forma de relação não promove uma quebra de paradigma porque perpetua o especismo etc. (posição abolicionista aberta ao debate). É para explicitar diferenças entre os paradigmas que, creio firmemente, promovemos debates em nossos fóruns de discussão, sejam eles salas de aula, bares, listas de discussão na Internet etc.
É interessante notar – ainda no contexto da reciclagem vista como um fim em si mesmo – que se cria uma mentalidade de que não é preciso mais reduzir ou reutilizar, a não ser por necessidade, já que tudo pode (teoricamente) ser reciclado. Analogamente, como muito bem apontam alguns abolicionistas, o bem-estarismo pode estimular um aumento no consumo de ovos e laticínios, sob a falsa crença de que, uma vez que os animais são “bem-tratados”, podem nos servir como mercadorias. Mas isso, enfatizo, só se o bem-estarismo for encarado como meta final em termos de postura ética com os animais não humanos. É oportuno destacar também que nem tudo o que é reciclável é efetivamente reciclado. Da mesma forma, os ovos e muitos outros itens de origem animal, supostamente produzidos de forma eticamente correta, podem não corresponder ao ideal escrito em seus rótulos. Embora essa seja, francamente, uma “faca de dois gumes”, pode-se aproveitar o gume que favorece o abolicionismo para explicar aos compradores de tais produtos que essa é mais uma razão para se deixar de vez o consumo de itens de origem animal.
Quanto pior, melhor?
Antes da época em que vivemos – uma verdadeira “geleia geral” – alguns políticos, supostamente da esquerda radical, pregavam um “quanto pior, melhor”, ou seja, quanto mais precária fica a situação material, econômica, de um povo, mais facilmente emerge um ambiente favorável a transformações revolucionárias. Contudo, tal premissa tem se mostrado no mínimo controversa (e seria digressivo tratar disso aqui). Em contrapartida, se tornaram claros os interesses pessoais de poder daqueles que pregavam essa ideia.
O ambiente acadêmico tampouco é isento dos sedentos pelo poder, mesmo que o poder se expresse somente sob a forma de vaidades. Para ser identificado como um “guardião do conhecimento”, “guru”, ou para se manter numa posição de prestígio, há quem não hesite em se tornar reprodutor de discursos que pouco têm a acrescentar em termos de novas ideias, ou novas fronteiras do conhecimento. E o pior é que, nessa empreitada narcisista e megalomaníaca, muitos acabam por causar danos como – caso do movimento animalista – insuflar uma cizânia entre os ativistas.
Não é demais enfatizar: desde que se reconheça que a meta é o veganismo e o abolicionismo animal, de forma clara, não vejo como traição – ou incongruência teórica – apoiar ações que buscam dar respostas práticas a problemas urgentes. É claro que não dá para dizer que o veganismo não seja a forma mais elevada, eticamente falando, de relação humanos-animais, como desejam muitos ovolactovegetarianos. Tampouco é possível negar que o discurso teoricamente mais consistente, do ponto de vista ético, seja o dos direitos dos animais. Entretanto, é preciso reconhecer que essa última abordagem nem sempre garante que uma pessoa se torne vegana ou abolicionista. Cada um faz o que quer com as informações que recebe. Há quem conheça profundamente o ideário abolicionista, sob a perspectiva dos direitos dos animais, e nem por isso tenha se tornado vegano, ou mesmo vegetariano. De outro lado, há pessoas que, como eu, se tornaram veganas pelo viés do ambientalismo, aliado a outras tradições de pensamento.
A perspectiva da ecologia profunda, completada pela pertinente crítica de Peter Singer (1998, p. 298) de que “há que se considerar o valor de cada vida, individualmente, e não somente a preservação de espécies e ecossistemas”, seguida da explanação dos conceitos de senciência (um conceito essencialmente utilitarista) e especismo (cunhado por Richard Ryder), forma um conjunto de informações suficiente para que alguém se torne abolicionista. É pertinente ressaltar também que, mesmo sabendo que o utilitarismo de Peter Singer – o filósofo mais achincalhado da atualidade – pode levar ao abolicionismo, os partidários da postura abolicionista inflexível negam, peremptoriamente, que sua argumentação possa servir à libertação animal.
Os abolicionistas inflexíveis argumentam que já se passaram dois séculos de bem-estarismo. Mas, na prática, em que país, em que lugar, os mal-afamados princípios bem-estaristas – que estariam impedindo a disseminação da filosofia abolicionista – estão em vigor há 200 anos? Ao contrário, a despeito deles, o tratamento dispensado aos animais só tem piorado em termos éticos.
No Brasil, o Decreto Lei 24.645/34, por exemplo, que estabelece medidas de proteção aos animais, prevê como crime uma série de situações de sofrimento que ocorrem corriqueiramente com animais submetidos a processos de produção industrial. Embora a tradição “bem-estarista” seja muito mais recente no Brasil, quando comparado a outros países especialmente do hemisfério norte, o citado DL, que data de julho de 1934, jamais impediu que diversas situações de maus-tratos fossem impostas aos animais, desde a sua promulgação. Essa e outras leis simplesmente não tiveram efeito algum, em termos históricos, no sentido de conferir um tratamento “menos pior” aos animais. E isso se deve ao fato de os sistemas produtivos que fazem dos animais e seus derivados suas mercadorias estarem imersos num contexto muito mais abrangente da relação sociedade-natureza, no qual tudo vira objeto, recurso, tudo é submetido à varredura e à ordem da produção, parafraseando Heidegger [3].
A afirmação de que nenhum ganho em termos de melhores condições para os animais que estão em cativeiro hoje tem sentido pode promover um afastamento provisório ou definitivo de pessoas que poderiam ser futuras ativistas e, com isso, atrasar o processo de libertação animal. É tautológico afirmar que valores e atitudes revolucionários são imprescindíveis para uma revolução. Mas eles não florescem sem um processo educativo crítico. Como no caso do tema “lixo”, percebo que as pessoas só deixam de ser reticentes com relação a posturas aparentemente inflexíveis, quando ouvem explicações convincentes acerca de por que determinadas atitudes são absolutamente insuficientes. Mas o fato de haver quem seja contra a reciclagem tout court não faz com que grupos organizados saiam às ruas separadamente, ou cultivem desavenças na Internet, alegando que a reciclagem estaria sempre atrasando um olhar mais crítico sobre o sistema produção-consumo em nossa sociedade, independentemente de quem a propõe e de quem se beneficia com ela.
Essa confusão entre meios e fins, e entre paliativos e metas finais, está ainda presente em muitos outros contextos. Quanto a um mundo melhor, o que é preciso fazer: cotas para minorias étnicas, ou escolas de qualidade públicas e gratuitas para todos? Educação e distribuição de renda, ou prisões de segurança máxima? Campanhas preventivas, ou tratamento para usuários de drogas? Temos que fazer tudo o que for possível, simultaneamente, sendo a educação crítica a estrela-guia em todos esses processos.
Enquanto houver posturas “abolixiitas”, será impossível colocar trezentas pessoas na rua, manifestando-se contra a farra do boi, para citar um contexto nada polêmico no âmbito do movimento animalista. Este é um caso típico no qual deveríamos deixar de lado nossas incompatibilidades e idiossincrasias, porque os bois “sujeitos de uma vida” que lá estão – e não os bois “como espécie ou categoria animal escravizada” (vale aqui a mesma crítica de Singer à ecologia profunda, citada antes) – não são adeptos, tenho certeza, do “quanto pior, melhor”.
Os críticos do bem-estarismo alegam que não lhes foi outorgado o direito de decidir pelos animais, que não sabem do que eles gostariam, e que, aceitando medidas bem-estaristas, estaríamos escolhendo por eles. Mas rechaçar uma medida bem-estarista também implica uma escolha, pois estamos supondo que não lhes interessa uma vida melhor agora, e sim o abolicionismo. Eles, entretanto, tampouco, nos delegaram esse direito. A neutralidade é impossível. Uma não ação é uma ação.
É difícil prever, de antemão, se medidas ou ideários reformistas trarão somente estragos. O vídeo A carne é fraca, produzido pelo Instituto Nina Rosa, é um bom exemplo. Lançado em 2004, ele foi e tem sido um marco na promoção da chamada libertação animal no Brasil, e talvez até em outros países. Mas o texto do filme não se pauta pelos direitos dos animais, além de conter trechos cujo conteúdo é claramente bem-estarista. Ainda assim, é comum ouvir pessoas afirmarem que se tornaram vegetarianas depois de assistir ao filme, e veganas, posteriormente.
Seria totalmente digressivo tratar aqui das inúmeras controvérsias acerca das causas das mudanças climáticas, mas não há forma mais reducionista e ineficaz de combater o chamado aquecimento global do que os famigerados “créditos de carbono”. Sempre deixo muito claro em minhas aulas – que são meus fóruns de discussão – que se trata de uma abordagem totalmente instrumental e pautada por uma racionalidade econômica. Isso, além dos aspectos epistemológicos citados antes (relacionados à monetarização de externalidades), engendra muitos outros desdobramentos potencialmente negativos no que diz respeito aos universos social e político. Mas, de acordo com a ONG Conservation International (CI), a alteração da mata nativa já chegou a 55% no Cerrado – que é um dos hotspots de biodiversidade do mundo. A CI previu que, se o ritmo de destruição se mantiver, o bioma corre o risco de desaparecer até 2030. Além de levar consigo uma biodiversidade riquíssima, isso pode afetar o suprimento de água de boa parte do país [4]. Embora lançar mão de “créditos de carbono” [5] seja uma medida norteada por uma perspectiva ecológica rasa, antropocêntrica e cientificamente duvidosa, o desaparecimento do Cerrado implicaria a morte de um incontável número de seres sencientes, de vidas animais e não animais.
É triste pensar que é preciso atribuir um valor para um “serviço ambiental” (sic) e que a preocupação em pauta seja com espécies, somente, e não com indivíduos, mas, hoje, ainda é impossível promover mudanças, no ritmo urgente requerido – ou seja, agora – dentro de uma ética que considere a natureza em seu valor intrínseco. Hanna Arendt (1983, p.169-170) nos ensina que, “ao instrumentalizar, o ser humano rebaixa todas as coisas à categoria de meios, o que acarreta a perda do seu valor intrínseco e independente. Não somente os objetos da fabricação, mas também ‘a terra em geral e todas as forças da natureza’ – que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho. A ‘instrumentalidade’ da fabricação, limitada e produtiva, se transforma na ‘instrumentalização’ ilimitada de tudo o que existe”. É por essas e outras que não basta uma educação vegana. O alvo é muito maior. Precisamos de uma educação que seja capaz de construir um mundo sem jaulas, sem guerras e sem fome.
“Vida de Brian” ou “Sal da Terra”?
Encerro questionando se não estaríamos, no âmbito do movimento animalista, pelo menos em muitos casos, perdendo o foco quando nos dividimos em facções e mais facções, como no famoso filme Vida de Brian [6]. Nesse clássico, que é uma genuína expressão do ácido humor britânico, vários grupos religiosos lutam entre si, acirradamente: a Frente dos Povos da Judeia – partido ao qual pertencia Brian; a Frente dos Povos Unidos da Galileia; a Frente Popular da Judeia; a Frente Popular do Judeus; a Frente dos Povos Judeus etc, mas, todos, são massacrados pelos romanos.
Não seria algo exatamente aleivoso, ou funambulesco, procurar analisar os diferentes interesses envolvidos em uma determinada ação que vise a uma vida mais digna para os animais não humanos e, assim, adotar uma postura que não promova sempre a desunião. Rejeitar qualquer prática (campanha, manifestação etc.) rotulada como bem-estarista – mesmo quando se trata de abolição por etapas – é abrir mão da oportunidade de exercitar o pensamento crítico. As situações diferem entre si e rejeitar, simplesmente, o “pacote inteiro” – a priori – sem que haja uma análise dos meios e dos fins, é agir de forma fundamentalista.
Vale destacar, por último, que veganos, ou abolicionistas animais, não são pessoas melhores do que as outras. São melhores, sim, no quesito relação humanos-animais, e, isso, somente se forem verdadeiros em suas palavras. Sob o pretexto de guiar suas atitudes no âmbito de uma perspectiva ética que resolva o problema por “atacado”, e não “a varejo”, entre outros argumentos, há abolicionistas que claramente advogam em causa própria – mesmo que isso signifique apenas fazer o que mais lhes apraz – assim como muitos bem-estaristas e, de resto, como outras pessoas que militam em diferentes frentes de luta.
Peter Singer (2002, p. 82) disse que “os filhos de nossos filhos, ao lerem sobre o que se praticava nos laboratórios no século XX, sentirão a mesma sensação de horror e incredulidade que sentimos atualmente ao ler sobre as atrocidades perpetradas nas arenas dos gladiadores em Roma, ou no comércio de escravos do século XVIII”. Talvez os filhos de nossos filhos tampouco compreendam por que um grupo significativo de pessoas, com boa instrução, permaneceu refém de discursos e práticas fundamentalistas, no que se refere à libertação animal. Talvez até mencionem, sarcasticamente, numa alusão ao filme Vida de Brian, algumas bem-feitorias conseguidas pelos toscos bem-estaristas, tais como centros de controle de zoonoses “humanitários” [7], abolição de veículos à tração animal, programas bem-sucedidos de resgate da fauna selvagem, vídeos como A carne é fraca, ou Meat the Truth, etc8.
É oportuno citar, finalmente, um pequeno trecho da música “O Sal da Terra” (de Beto Guedes e Ronaldo Bastos):
“Vamos precisar de todo mundo, pra banir do mundo a opressão. Para construir a vida nova, vamos precisar de muito amor”
Não temo mencionar o amor, uma palavra proibida no contexto acadêmico. Mas me refiro aqui ao amor genuíno, aquele que modifica o ethos, no sentido primevo e radical dessa palavra. Há que não se confundir o amor verdadeiro, altruísta, de um simples gosto. O primeiro é um sentimento que brota do universo da compaixão, o único que permite que nos coloquemos no lugar do outro e façamos, assim, o que é preciso, independentemente dos nossos interesses pessoais. Já o segundo, emerge de uma percepção meramente estética, egocêntrica, que tem como finalidade a autossatisfação.
Por fim, vale lembrar que se este é um tempo de transcender as amarras da ciência que se tornou hegemônica, rumo a uma compreensão mais abrangente sobre o mundo em que vivemos, precisamos nos libertar dessa herança cientificista que baniu cores, odores, sensações, ou seja, que instituiu um conhecer baseado no domínio, ou na libertação dos sentidos, como também nos ensina Foucault (1992, p. 146).
Notas
[1] Do texto, “O hipnotizador”, de Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4456&boletim_id=606&componente_id=10169
[2] Veja, por exemplo, o instigante artigo “Bem-estar Animal ou Libertação Animal? Uma Análise Crítica da Argumentação Antibem-estarista de Gary Francione”, de Carlos Naconecy, apresentado no 12º Festival Vegano Internacional, disponível em http://www.svb.org.br/12veganfestival/images/stories/pdf/Naconecy.pdf
[3] Martin Heidegger, citado por Marcuse, 1982, p.150.
[4] Bioma em pé rende US$ 20 bi. Cálculo considera o mínimo que se pode obter de crédito de carbono com desmate evitado e reflorestamento. Estadão Online. Veja http://www.estadao.com.br/vidae/not_vid199489,0.htm
[5] Não quero dizer aqui que seja a favor de qualquer projeto nesse sentido, obviamente.
[6] O filme Vida de Brian (Life of Brian), de 1979, é um dos filmes do grupo britânico Monty Python. Veja, por exemplo, http://recantodaspalavras.wordpress.com/2008/12/29/a-vida-de-brian-e-o-portal-do-monty-python/
http://desciclo.pedia.ws/wiki/Monty_Python#Religi.C3.A3o
[7] É interessante destacar – em termos de aprendizado “oculto” – que a palavra humane (que pode ser traduzida como “humanitário/ humanitária”) é, a rigor, um termo especista, ou, no mínimo, antropocêntrico, porque associa o caráter do que é “humano” a algo intrinsecamente bom, civilizado etc. Essa palavra é, apesar disso, adotada de forma indiscriminada tanto por grupos bem-estaristas quanto abolicionistas.
[8] Referência à jocosa passagem do filme Vida de Brian, na qual se diz que os romanos não fizeram nada além da educação, saneamento básico, estradas, segurança, ordem pública, medicina etc.
Referências bibliográficas:
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