EnglishEspañolPortuguês

AÇÃO HUMANA

Pandemia é resultado do desrespeito à natureza e aos animais, diz Jane Goodall

Uma das maiores ativistas ambientais do mundo, Jane Goodall incentivou uma mudança de hábitos por parte da humanidade

17 de junho de 2021
Mariana Dandara | Redação ANDA
9 min. de leitura
A-
A+
(Foto: Michael Neugebauer)

A primatologista Jane Goodall, que se tornou pioneira no estudo de chimpanzés após ser enviada à Tanzânia em 1960, voltou a citar a relação entre o surgimento do coronavírus e a exploração animal. Considerada uma das maiores ativistas pelo meio ambiente de todo o mundo, ela afirmou que o desrespeito à natureza e aos animais foram os responsáveis pelo surgimento da pandemia que tem matado milhões de pessoas.

“Criamos situações que facilitam para um patógeno, como o vírus da covid-19, respingar de um animal em uma pessoa e se ligar a uma célula humana, criando uma nova doença ‘zoonótica'”, afirmou a primatologista em entrevista ao Estadão. “Esse é o mesmo desrespeito pelo mundo natural que tem levado à ameaça dupla para o nosso futuro – as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade”, acrescentou.

Goodall lembrou que a humanidade tem crescido, assim como a pecuária tem se expandido ao mesmo tempo em que os recursos naturais têm sido explorados sem limites e em desrespeito às premissas da sustentabilidade. “O que vai acontecer se continuarmos fazendo as coisas do mesmo jeito?”, questionou.

Na opinião da ativista, cada pessoa pode escolher o impacto que produz no mundo e se conscientizar ao pensar sobre a própria pegada ecológica. “Pensar no que compramos – de onde isso veio? Sua produção envolve algum dano ao meio ambiente ou crueldade com animais? Isso é mais barato por causa de salários injustos em alguma parte do mundo ou de trabalho escravo infantil? Se sim, então não deveríamos comprar”, pontuou a primatologista em entrevista ao Estadão que pode ser conferida na íntegra abaixo.

Você costuma falar que “chegou na África como cientista e saiu da selva como ativista”. O que dizer às pessoas que permanecem em negação sobre a crise climática e o aquecimento global, depois de ter trabalhado por tantos anos nesse campo?

Eu conto para eles o que já vi, em primeira mão. O gelo derretendo na Groenlândia, a água jorrando do penhasco – os inuítes anciãos me disseram que nunca houve derretimento antes, nem no verão, e quando estive lá era o começo da primavera. Os povos que tiveram de mudar das suas casas na ilha por causa do aumento do nível do mar. O caos resultante após o crescente número de tornados e tufões. A terrível devastação causada pelas longas secas. O resultado dos incêndios horríveis na Austrália e na Califórnia etc.

Eu não tento discutir com eles. Ou eles são estúpidos de ignorarem a ciência, ou apenas acham conveniente dizer que não acreditam nela para que possam continuar com os “negócios de sempre”.

Você se refere aos chimpanzés como os “animais mais parecidos com nós, humanos” e, durante seu trabalho em campo, também descobriu que eles têm um “lado obscuro”, o qual aparece quando lutam entre si. Que lições nós podemos aprender desse tipo de comportamento, enquanto humanos, seja sobre a resolução de conflitos ou sobre seguir em frente?

Louis Leakey, que passou sua vida procurando pelos restos fossilizados dos humanos primitivos, queria estudar chimpanzés (algo que ninguém havia feito lá em 1960) porque ele acreditava (e agora é comumente aceito) que nós, humanos, compartilhamos um ancestral meio-humano/meio-macaco de aproximadamente 6 milhões de anos atrás. Ele sentia que isso lhe daria uma impressão melhor de como nossos ancestrais podem ter se comportado na Idade da Pedra.

Para responder à sua pergunta, parece muito claramente que nós temos tendências agressivas inerentes. Mas nos diferenciamos no desenvolvimento explosivo do nosso intelecto. Temos uma linguagem verbal. Temos um código moral e sabemos que agredir é errado (a não ser que passemos por uma lavagem cerebral na infância). E, na maior parte do tempo, a maioria das pessoas controlam SIM seus impulsos agressivos.

Chimpanzés, assim como nós, também têm um lado altruísta e compassivo, e eles são muito bons em se reconciliarem após uma briga.

A pandemia do coronavírus colocou novamente a ciência no topo das discussões globais, ao mesmo tempo em que temos pessoas negacionistas que não reconhecem sua importância, precisão ou seriedade. Como podemos prevenir que o discurso anticientífico infecte a mente das novas gerações?

Eu tenho falado sobre isso desde que a pandemia começou – nós causamos essa situação a nós mesmos, pelo nosso desrespeito com a natureza e com os animais. Criamos situações que facilitam para um patógeno, como o vírus da covid-19, respingar de um animal em uma pessoa e se ligar a uma célula humana, criando uma nova doença “zoonótica”. Mais e mais pessoas estão começando a entender isso. Esse é o mesmo desrespeito pelo mundo natural que tem levado à ameaça dupla para o nosso futuro – as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.

Eu iniciei um programa para jovens em 1991, o Roots & Shoots. Ele começou com 12 alunos na Tanzânia, preocupados com o que estava errado no mundo. Agora, temos grupos em 68 países – e contando! -, com membros do jardim de infância à universidade. Esses milhares de jovens, e muitos outros ex-membros já adultos, compartilham os mesmos valores. Um deles é o respeito. Respeito por outras culturas, religiões e nacionalidades. Por todos os seres vivos. Hoje existem vários grupos de jovens trabalhando para tornar esse mundo melhor. Tomando uma atitude. Eles são meu maior motivo de esperança.

Você disse antes que tanto essa pandemia quanto a do HIV foram causadas pelo nosso desrespeito à natureza e aos animais com quem dividimos o planeta. Considerando o dano que já foi feito a nível global, acha que algum dia estaremos aptos a recuperar a biodiversidade que já foi perdida até aqui? Haveria uma forma de reverter esse processo?

Há uma janela de tempo durante a qual, se nos unirmos e tomarmos uma atitude, podemos começar a curar uma parcela do mal que temos infligido na natureza, e ao menos desacelerar a mudança climática e a perda de biodiversidade. Algumas espécies de animais e plantas já foram resgatadas quando estavam à beira da extinção. A natureza é resiliente e lugares que destruímos terrivelmente podem se tornar verdes e serem um lar para a vida selvagem – e para os humanos! – novamente. Mas especialmente em florestas tropicais, tão ricas em biodiversidade, a riqueza da “tapeçaria da vida” nunca poderá ser exatamente a mesma depois que ela for destruída uma vez.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem negado de forma alarmante o crescimento crítico das queimadas e desmatamentos na Amazônia. Considerando que florestas tropicais são o lar de inúmeras espécies, como você avalia a importância de preservar a Amazônia não só para o Brasil, mas para o mundo?

Eu acredito que as grandes florestas tropicais na Amazônia, na Bacia do Congo, e aquelas em vários países no Sul da Ásia são de extrema importância para o mundo. Ao lado dos oceanos, elas têm grande influência no clima, à medida que absorvem dióxido de carbono. Elas regulam as chuvas e as temperaturas, e nos fornecem ar e água limpos, e muito mais.

O que a sociedade pode fazer para ajudar a combater as mudanças climáticas, quando as pessoas no poder falham ao dar a devida importância para essa tarefa?

Eu acho que as coisas estão mudando. Tantas pessoas agora entendem que se continuarmos achando que pode haver crescimento econômico ilimitado em um planeta com recursos finitos, e se os governos e empresas continuarem pensando em ganhos de curto prazo às custas das gerações futuras e da saúde do planeta – bem, a nossa própria espécie não estará isenta da extinção. Em alguns lugares, os nossos recursos naturais já estão sendo usados mais rápido do que a natureza pode repô-los.

E a população humana continua crescendo. Nós já somos mais de 7 bilhões agora e é estimado que cheguemos próximo dos 10 bilhões de pessoas até 2050. O que vai acontecer se continuarmos fazendo as coisas do mesmo jeito? O número da pecuária também está crescendo. A agricultura industrial está destruindo o solo com produtos químicos e geneticamente modificados, enquanto grandes habitats naturais também são destruídos para a criação de animais para comida, com bois e pastagem.

Sua mãe teve que se mudar com você para a Tanzânia durante os primeiros anos da sua pesquisa. Também, na primeira palestra que você deu em Washington, parte da cobertura na imprensa não estava muito “disposta” a te levar a sério como cientista. Você considera que ser uma mulher trabalhando com ciência naquela época tornou as coisas mais difíceis?

Na verdade, ser mulher me ajudou. O Leakey acreditava que mulheres podiam se tornar melhores observadoras, serem mais pacientes. Os homens africanos, que geralmente estavam ressentidos dos europeus e americanos que lhes governaram por tanto tempo durante os dias coloniais, estavam muito mais dispostos a ajudar uma mulher branca. E a National Geographic Society, que controlou o apoio à minha pesquisa, também amou a imagem de uma mulher esguia entre chimpanzés que eram tão mais fortes que ela.

Claro que, como você disse, a comunidade científica tentou desbancar minhas observações no começo – eu não era apenas uma mulher, mas sequer tinha concluído uma graduação. Mas a National Geographic havia mandado Hugo van Lawick para filmar o que eu estava descobrindo e as suas imagens, com minhas descrições detalhadas sobre comportamento, os forçaram a mudar de ideia. Isso acabou ajudando porque Leakey instituiu que eu tirasse um diploma e me colocou em um PhD (mesmo que eu não tivesse uma graduação) na Universidade de Cambridge, onde meu supervisor era um dos três etologistas mais respeitados daquela época.

Que conselho você daria para as novas e velhas gerações que gostariam de ajudar a combater a crise climática?

Eu sempre encorajo os jovens a se envolverem com a Roots & Shoots ou algum programa parecido. Mas a mensagem mais importante é o fato de que cada um de nós pode fazer algum impacto no mundo todos os dias – e podemos escolher que tipo de impacto fazemos. Podemos pensar sobre nossa própria pegada ecológica. Pensar no que compramos – de onde isso veio? Sua produção envolve algum dano ao meio ambiente ou crueldade com animais? Isso é mais barato por causa de salários injustos em alguma parte do mundo ou de trabalho escravo infantil? Se sim, então não deveríamos comprar.

Bens produzidos de forma claramente ética (orgânicos, de feiras etc.) vão custar um pouco mais – mas aí nós os valorizamos mais e os desperdiçamos menos. Se o suficiente de nós acreditar nisso, então as empresas vão mudar. A pressão do consumidor é importante.

Jovens que entendem muito bem o dano que causamos ao planeta, e querem mudar isso, estão cada vez mais ascendendo a posições em que tomam as decisões. Aqueles que podem fazer isso precisam ajudar na batalha para aliviar a pobreza – se você é realmente pobre, destrói o ambiente para tentar conseguir dinheiro, cultivar alimento ou compra a comida industrializada mais barata para que consiga sobreviver.

A mensagem mais importante de todas: lembre que você importa, que você tem um papel a desenvolver, que você pode escolher que tipo de impacto gera todos os dias. Escolha com sabedoria, pensando nas gerações futuras.

Você viu?

Ir para o topo