EnglishEspañolPortuguês

IRRESPONSABILIDADE

Pais de animais domésticos antivacinas: ceticismo chega aos tutores

Estudo no Brasil mostra que tutores sem vacinação contra Covid-19 têm maior tendência a não vacinar cães e gatos

30 de outubro de 2025
Emily Anthes e Teddy Rosenbluth
7 min. de leitura
A-
A+
Um bassê de 2 anos chamado Dallas recebe vacinas contra leptospirose e bordetella no Colorado. Foto: Jimena Peck/NYT

Nos quatro anos desde que abriu sua própria clínica veterinária, Kelly McGuire viu uma boa quantidade de casos de partir o coração.

Houve o do cão cujos rins pararam de funcionar após contrair leptospirose, uma doença bacteriana frequentemente transmitida por roedores. Vários de seus pacientes caninos contraíram casos tão graves de parvovirose que morreram após “perderem seus intestinos a ponto de desidratação e desnutrição”, disse McGuire, proprietária do Hospital Veterinário Wildflower em Brighton, Colorado.

E, como não conseguiu descartar a raiva, foi forçada a sacrificar um filhote de 20 semanas que estava tendo convulsões.

As mortes foram dolorosas, especialmente porque eram evitáveis: esses animais provavelmente teriam sobrevivido se tivessem recebido todas as vacinas recomendadas.

Durante a maior parte da carreira de McGuire como veterinária, a vacinação foi uma parte rotineira e comum do trabalho de pequenos animais. Mas, após a pandemia de Covid-19, ela se viu tendo longas discussões, às vezes hostis, com tutores sobre a segurança e a necessidade das vacinas.

Clientes chegaram a acusá-la de forçar a vacinação para encher os próprios bolsos. Cada vez mais, os tutores de animais insistem em espaçar as vacinas ou recusá-las completamente, inclusive para vírus mortais e incuráveis, como a raiva.

“Uma pessoa gritou e berrou conosco e saiu furiosa porque exigimos vacinas contra raiva para os gatos dela”, disse McGuire. A tutora a acusou de tentar “matar os gatos dela com vacinas”.

Nos últimos anos, o movimento antivacina ganhou força nos Estados Unidos, impulsionado, em parte, pela politização das vacinas contra a Covid-19 e pelo crescente poder dos críticos das vacinas, incluindo o Secretário de Saúde (equivalente ao cargo de ministro da Saúde no Brasil) do governo Trump, Robert F. Kennedy Jr.

As taxas de vacinação infantil caíram. Doenças antes vencidas, como o sarampo, voltaram com tudo. E a obrigatoriedade da vacinação está sob ataque: no mês passado, a Flórida anunciou planos para acabar com todas as obrigatoriedades da vacinação, inclusive para crianças em idade escolar.

Mas a antipatia em relação às vacinas também está se espalhando para a medicina veterinária, fazendo com que algumas pessoas relutem em vacinar seus animais domésticos.

“Falo com milhares de veterinários todos os anos em todo o país, e a maioria está enfrentando esse tipo de problema”, disse Richard Ford, professor emérito da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Estadual da Carolina do Norte, que ajudou a redigir as diretrizes nacionais de vacinação para cães e gatos.

O fenômeno tem paralelos claros com o movimento antivacina na medicina humana e, segundo os especialistas, pode levar o país por um caminho parecido, resultando em um afrouxamento das leis de vacinação animal, um declínio nas taxas de vacinação de animais e um ressurgimento de doenças infecciosas que representam um risco tanto para animais domésticos quanto para pessoas.

Relutância crescente

Há poucos dados sólidos sobre as taxas de vacinação em animais domésticos americanos, mas vários estudos recentes sugerem que uma parcela significativa de tutores tem preocupações com a vacinação.

Em uma pesquisa de 2023, 52% dos tutores expressaram alguma incerteza sobre a segurança, eficácia ou importância da vacinação. Outra pesquisa, publicada no ano seguinte, estimou que 22% dos tutores de cães e 26% dos tutores de gatos poderiam ser classificados como relutantes em vacinar.

A relutância em relação às vacinas veterinárias, assim como a humana, existia antes da pandemia da Covid-19 e foi motivada por diversos fatores, incluindo uma crescente desconfiança em instituições e autoridades e a ascensão das mídias sociais.

Mas a pandemia aumentou o sentimento antivacina, concordam os especialistas, minando ainda mais a confiança na ciência e tornando a vacinação uma questão mais política e importante.

“A maneira como as pessoas se sentem em relação à vacina contra a Covid-19 mudou a maneira como elas se sentem em relação a todas as vacinas, incluindo as vacinas para seus animais domésticos”, disse Matt Motta, especialista em políticas de saúde da Universidade Boston que estudou as atitudes do público em relação às vacinas humanas e animais.

Pesquisadores documentaram associações claras entre os dois; um estudo, no Brasil, relatou que tutores que não haviam sido totalmente vacinados contra a Covid-19 eram mais propensos a ter animais não vacinados.

Paralelos de animais domésticos

De fato, tutores que relutam em vacinar expressam algumas das mesmas preocupações que se tornaram marcas registradas do movimento antivacina. Alguns se preocupam com o fato de os animais receberem muitas doses, acreditam que é melhor para os animais obterem imunidade da própria doença do que de uma vacina e expressam preocupação de que a imunização possa levar a alterações cognitivas e comportamentais em seus animais domésticos, incluindo condições como autismo.

A ideia de que vacinas causam autismo em pessoas tem sido repetidamente desmascarada, e autismo é um diagnóstico que não existe em outras espécies.

As preocupações com a segurança e a frequência das vacinas não são totalmente infundadas. As primeiras formulações da vacina contra leptospirose foram associadas a um risco maior de reações alérgicas graves do que outras vacinas, especialmente em cães de pequeno porte. Em gatos, as vacinas podem levar a sarcomas no local da injeção, uma forma rara de câncer.

Mas esses efeitos colaterais graves nunca foram comuns, e os riscos diminuíram ainda mais nos últimos anos, à medida que as vacinas foram reformuladas e os protocolos de vacinação refinados, disseram especialistas.

As diretrizes de vacinação, que antes exigiam reforços anuais de muitas vacinas, também evoluíram à medida que ficou claro que algumas vacinas proporcionavam imunidade mais duradoura. Hoje, muitos reforços são administrados a cada três anos.

“Houve muitas mudanças nas práticas de vacinação nos últimos 20 anos, o que acho que demonstra que estamos sempre tentando criar práticas melhores, mais seguras e mais eficazes”, disse Brennen McKenzie, veterinária da Califórnia que administra o SkeptVet, um blog sobre medicina veterinária baseada em evidências.

De modo geral, segundo especialistas, tutores hesitantes em vacinar tendem a superestimar os riscos das vacinas e subestimar os riscos de doenças infecciosas. Parte do desafio para os veterinários reflete um problema enfrentado pelos pediatras: a vacinação tem se mostrado tão eficaz que muitos tutores não consideram doenças como raiva e parvovirose ameaças sérias.

Riscos de doenças

A queda nas taxas de vacinação de animais não seria uma ameaça apenas à saúde animal; diversas doenças preveníveis por vacinação, incluindo leptospirose e raiva, podem ser transmitidas de animais domésticos para pessoas.

“Os cães agora estão compartilhando nossas camas conosco”, disse Steve Weinrauch, veterinário-chefe da Trupanion, uma seguradora para animais domésticos. “Eles estão beijando o rosto dos nossos filhos.”

De fato, antes que as agências de saúde lançassem campanhas de vacinação em massa para animais domésticos em meados do século 20, mordidas de cães raivosos causavam a maioria dos casos de raiva humana nos Estados Unidos.

A maioria dos estados exige que os cães sejam vacinados contra a raiva, mas nem todos os estados o fazem, e algumas exigências são mais rigorosas do que outras. Com a crescente antipatia pela vacina, Motta teme que as autoridades possam ver uma vantagem política em revogar essas exigências.

“Como vimos muito nos últimos meses, a política de saúde é dinâmica”, disse Motta. “Ela está sujeita a motivações e orientações políticas. É um reflexo da opinião pública.”

Fonte: Folha de S.Paulo

    Você viu?

    Ir para o topo