“O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. […] Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto.” (Clarice Lispector, 1971. In “O ovo e a galinha”, in “Felicidades Clandestinas”).
Na verdade, é sobre aquela coisa que está em cima do ovo mas a que na hierarquia panorâmica de valores e importâncias é subordinada e está embaixo do ovo, pois não é vista, é apagada. Não só é o ovo invisível, inimaginável, irrealizável, inatingível, inconcebível embora sempre ali já dado e óbvio; como também, aquela coisa que, estando encima, é biopoliticamente dada abaixo e apagada. Também é invisível, inimaginável e irrealizável, mas mesmo assim pousa, como um fantasma: quando enxergamos a galinha, já não a vemos no ovo.
Assim como confundem os direitos de um embrião (iguais aos direitos de uma fruta) com os direitos de mulheres; as pessoas confundem os direitos de ovos com os direitos de mulheres animais não-humanas. Usar o termo fêmea é também usar o termo mulher, já que femina significa mulher.
Eu oponho-me aos ovos não pelos ovos em si (inclusive ovos fecundados, ovos não fecundados não são nem como que fruta, são como que excremento, algo cuspido pra fora), eu me oponho aos ovos pelos direitos transfeministas e antietaristas (etarismo é o preconceito dirigido a seres em virtude de sua faixa etária) de pintos e galinhas, pelos papeis de gênero biopolítica agronegociados e impostos aos animais não humanos, pelo binarismo de identidades de gênero na relação política entre espécies.
Não como ovo e não tomo leite, por ser ecoanimalista anarcotransfeminista, não por misticamente idolatrar o ovo ou o leite, abomino-os como sinais de um patriarcado antropocêntrico! Não como ovo e não tomo leite pelas vacas, bezerros, pintos, galinhas e abelhas. Apagamento de vacas, galinhas e abelhas, está na hora de acabar com isso!
Pessoas às vezes nos vêm, e nos veem, volta e meia com “ah, mas nem um pouquinho de mel de eucalipto da agrofloresta feliz?!?”, como que seiva de arbustos e não suor e sangue. Ao ficarmos presos no tesão da mercadoria e sua castração que separa os frutos da exploração (os lucros roubados e escravizações máximas) de quem os produz; não vemos a vaca, a galinha, a porca humilhada e entupida de filhotes, essas crias cujo assassinato é premeditado e calculado, porcas essas em uma jaula, coliseu da produção de carne suína, e as abelhas. Vemos os ovos, os leites, as carnes, o mel!
“O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul.”
(Clarice Lispector, 1971. In “O ovo e a galinha”, in “Felicidades Clandestinas”).