Por Sérgio Augusto (do Estadão)
Não adianta resistir: por decreto ou não, as touradas desaparecerão um dia, como desapareceu há 32 anos o garrote vil.
Para as touradas na Catalunha, soou a hora da verdade. Por 68 votos a favor, 55 contra e 9 abstenções, o Parlamento catalão decidiu, na quarta-feira, 28, que as corridas estão fora da lei na região. Ou melhor, estarão a partir de 1º de janeiro de 2012. Até lá, as Ilhas Canárias continuarão sendo a única comunidade autônoma da Espanha onde tourear é proibido, desde 1991. O verdadeiro “esporte nacional” das Canárias agora é o futebol.
Da Catalunha também. Já o era bem antes do triunfo da Fúria na Copa, pois há décadas as touradas vêm perdendo público em todo o país; hoje é passatempo de uma minoria, minguante sobretudo entre os jovens e os turistas. Abandonadas até por aficionados da velha guarda – “cansados de suportar com estoicismo um espetáculo caduco, tedioso e manipulado”, na avaliação de Antonio Lorca (El País, 29/7/2010) -, as touradas sobrevivem à custa de subsídios do governo que o status de “patrimônio cultural” lhes garante.
Barcelona, a capital catalã, só dispõe atualmente de uma arena de touros (La Monumental), palco de 15 corridas anuais; a outra virou shopping. A que existia nas Canárias renasceu como arena musical. Deverá ser esse o destino de La Monumental. Sai José Tomás, entra José Carreras (e assim mesmo como Don José, não como Escamillo).
Os touros agradecem. “Chega de fazer da tortura a animais um entretenimento”, festejou Nacho Paunero, presidente do grupo de defesa dos direitos de animais que comandou a coleta das 50 mil assinaturas que deram origem à histórica votação abolicionista de quarta-feira.
A criminalização da tourada não foi, portanto, ao contrário do que muitos taurófilos e diversos neutros espalharam, um golpe parlamentar, uma jogada política eleitoreira, um xaveco nacionalista visando a distinguir a Catalunha do resto da Espanha, mas a última faena de uma luta popular, democrática, seguindo os trâmites exigidos pela ordem jurídica, após amplo debate canalizado institucionalmente desde novembro de 2008, à luz de depoimentos de etólogos, filósofos, toureiros e defensores dos direitos dos animais. Em questão, apenas uma questão: o sofrimento inútil de um ser vivo para deleite de uma assistência sadomasoquista.
O filósofo Fernando Savater, a quem muito admiro, saiu em defesa da tauromaquia. Não porque aprecie touradas, mas por ser contra que assembleias “estabeleçam pautas de comportamento moral para os cidadãos”, muito menos um Parlamento laico, como o da Catalunha. Até aí morreu Manolete. Savater, porém, não precisava ter comparado a decisão dos deputados catalães às sanções do Santo Ofício, exagero incompatível com sua fina inteligência, ainda mais comprometida pela acrítica acolhida que em seu protesto deu aos clichês propagandísticos da taurofilia: “costume arraigado no país”, “uma forma de vida popular”, uma arte secular a ser preservada, etc.
Tradições não são eternas, nem sagradas. Se o fossem, ainda estaríamos queimando feiticeiras e empalando gatos pretos ou sacrificando as viúvas, como se fazia na Índia, e os criados, como se fazia no Egito. Também pertencem à ordem das tradições e dos costumes mutilar a genitália feminina, em alguns países africanos, e judiar dos bois, como naquela farra de origem açoriana promovida todos os anos em Santa Catarina. Tradições e costumes bárbaros, incompatíveis com o que reconhecemos como mundo civilizado, ainda que nele se pratique a caça à raposa e se comam foie gras e carne de vitela.
“Comparada à vida de outros animais, a do touro é principesca”, ponderou Savater. Pode ser. Mas, como provam os etólogos, o touro se estressa e sente dor, e esse é o limite da polêmica. Houve um tempo em que o mundo das touradas era sempre glamourizado e romantizado, na imprensa, na literatura, no cinema. Mesmo em romances cujos autores se diziam ideologicamente contra as corridas, como Sangue e Areia, do valenciano Vicente Blasco Ibáñez, a aura romântica não sofria um arranhão. Ernest Hemingway, primeiro com O Sol Também se Levanta, depois com Death in the Afternoon, contribuiu como nenhum outro para a sacralização da tourada como uma obra de arte, como um espetáculo transcendental, como uma tragédia sobre a fragilidade da vida e a ritualização da morte – verônicas retóricas diversas vezes denunciadas como afetações típicas de um machão suicida.
Enquanto durou o encanto, a indústria de criar e matar touros de lida faturou horrores (literalmente, inclusive) e os toureiros curtiram uma dulce vida de artista pop e ídolo esportivo, com permanente acesso aos mais nobres salões da Europa e aos mais cobiçados leitos de Hollywood. Só Luis Miguel Dominguín namorou Ava Gardner, Lana Turner, Rita Hayworth, até casar com a italiana Lucia Bosé. Antonio Ordóñez foi íntimo de Hemingway e Orson Welles. Os comuns mortais babavam de inveja.
De todo modo, já havia naquele tempo quem reverenciasse mais a memória de Bailador e Islero, os legendários touros que deram cabo, na arena, de Joselito e Manolete, quiçá os maiores matadores de todos os tempos. Do nome do touro que chifrou mortalmente Juan Gallardo não me lembro. Gallardo era o fictício toureiro de Sangue e Areia, encarnado no silencioso por Rodolfo Valentino e, no falado, por Tyrone Power.
Os socialistas ibéricos sempre simpatizaram com os touros. Antes da tomada do poder pelo franquismo, os mais radicais entre eles deram uma de MST (ou de PETA, como queiram), invadindo fazendas de criação de touros para soltar os bichos e, não raro, punir exemplarmente ganadeiros e toureiros. “Um matador a menos é um fascista a menos”, justificavam-se. É histórica a ligação dos fascistas espanhois com taurófilos e toureiros. Dominguín foi companheiro de caçadas de Franco.
Os políticos conservadores da Espanha são contra a proibição das touradas. Maioria em diversas regiões, tudo farão para evitar que a lição da Catalunha frutifique pelo resto do país. Esforço inútil. Por decreto ou não, as touradas desaparecerão um dia. Como desapareceu há 32 anos o garrote vil.
Fonte: Estadão