Sejamos sinceros. Os animais não-humanos têm algo a comemorar com a chegada de um novo ano? Se os humanos já forçam a onda como se estivesse vindo um 1º de janeiro redentor de todas as chagas de cada um, e assim não será, os não-humanos têm pela frente apenas mais 365 dias de bombardeio, prisão, trabalhos forçados e caprichos sádicos. Há uma guerra contra eles, e nem ao menos têm direito a usar capacete — alô, bem-estaristas.
Sejamos sinceros. Aquele cavalo que neste momento está puxando uma carroça, alucinado de dor nos dentes, não ganhará asas para, como um Pegasus urbano, libertar-se da vida de submiserável. Voar para as planícies de onde vieram seus ancestrais, com longas crinas, a partir de janeiro? E a ficha não caiu também para os que ‘amam cavalos’, então querem um animal-motocicleta, já domado, ferrado, preso e docilmente esperando o peso da bunda que vai se sentar sobre as costas, para então ‘dar um passeio’. Ah, sejamos sinceros.
Na Voz do Brasil, esses dias uma senadora celebrava a construção de usinas de ‘beneficiamento de peixe’ na região amazônica. “Será possível produzirmos nosso próprio bacalhau”, discursou a pa-ra-lamentar. Referia-se ela ao bacalhau-produto, aquela múmia fedida que enlouquece as donas de casa às vésperas da Páscoa, que seria produzido com espécies nativas, uma espécie de uísque paraguaio obviamente ecológico e sustentável. Estarão poupados os peixes amazônicos de serem beneficiados — não há maior criador de eufemismos do que o Rei Mercado I – na próxima Páscoa?
E ali juntinho, já que a tradição dança de rosto colado com a ignorância, não teremos farra do boi no litoral catarinense, vaquejada no nordeste, Cavalgada do Mar aqui no RS, ‘country rodeo’ em SP e todas as demais atividades de cunho cultural, folclórico, histórico, cívico, patriótico e míope. ‘A lágrima é verdadeira’.
Ninguém vai chutar cachorro. Nenhum galo vai aparecer morto em encruzilhada. Nenhum passarinho vai passar a vida em aquário de metal. Nenhum javali vai ser caçado ‘para o bem da fauna e natureza’. Coelho algum vai ser piloto de teste da maquiagem das dondocas no próximo réveillon. Cobaia alguma vai ser o ouro de tolo para quem ainda acredita que a saúde é fornecida por aqueles que lucram somente quando as pessoas estão doentes. Porco zero. Vaca zero.
O leite não terá atravessadores, vai do úbere direto para o bezerro, sem hormônio, cruzamento genético, máquina suga-suga, patrão de olho nem financiamento do Governo. E uma ficha do tamanho dos anéis de Júpiter vai cair, fazendo que as pessoas percebam que, ora vejam!, não se toma leite de onça, nem de cadela, e se vive muito bem, e os ossos não se desintegram. E que os únicos humanos com ‘caninos’ são os vampiros, os demais têm a dentaura bem alinhadinha. Até pagam caro para alinhá-los, se assim não forem. E não têm pique para pular no pescoço de uma zebra, rolar com ela — enquanto alguém da NatGeo filma — e começar o almoço ali mesmo, em meio aos últimos coices. A tempo de voltar para o escritório.
Então me parece escárnio desejar ‘feliz ano-novo’ se há uma preocupação com quem está no andar de baixo, esmagado justamente pelo nosso próprio peso. Quem não se preocupa e só repete o que a mãe ou a TV ensinou, ainda traz desculpas-à-queima-roupa para justificar qualquer ato incompatível com as fotos de cãezinhos fofos numa cesta que posta no Facebook para os amigos ‘curtirem’. E isso resume a vida de muita gente, não só especificamente na indiferença frente à dor e/ou escravidão dos demais animais.
Haja champagne para acreditar nisso.