A denúncia, apresentada em Paris nesta manhã, se concentra na cadeia da pecuária, mas também aponta irregularidades na soja brasileira que chega nos supermercados franceses por meio de frango e ovos vendidos na rede Carrefour. O relatório é resultado de uma investigação promovida pela organização Mighty Earth no Brasil junto aos fornecedores do grupo francês.
“Dos 102 produtos analisados, descobrimos que uma maioria vinha de zonas de risco de desmatamento. Descobrimos também que 12% vinham de abatedouros conectados ao desmatamento em territórios indígenas. Três quartos da venda desses produtos estava ligada à JBS, que consideramos a Monsanto do desmatamento”, afirma Boris Patentreger, diretor da entidade na França. “Podemos dizer que a cada mês, tem novas denúncias das ligações entre a JBS e o desmatamento. Com essa campanha, pedimos ao Carrefour que, devido a todas as conexões que estabelecemos no relatório, pare de comprar da JBS.”
De acordo com o documento, entre os produtos verificados, 12 têm origem em dois dos abatedouros que mais ‘exportam desmatamento’ para clientes do Brasil: Pimenta Bueno e Vilhena, ambos de Rondônia e fornecedores da JBS – que, por sua vez, revenderia a carne ao grupo francês. O controle do conjunto da cadeia do gado, que inclui diversos intermediários entre a fazenda e a prateleira, representa o maior desafio para a rastreabilidade da carne brasileira.
Áreas de risco
A JBS, maior vendedora de carnes do mundo, é frequentemente acusada de receber gado produzido em áreas desmatadas legal ou ilegalmente, principalmente na Amazônia.
Ao tomar conhecimento da denúncia, o Carrefour – que se transformou no maior varejista do Brasil depois de comprar o Big – decidiu não aceitar mais carne destes dois fornecedores.
“Nós ficamos bastante surpresos, porque, de um lado, temos um diálogo aberto e franco com a Mighty Earth há bastante tempo. Mas, sobretudo, porque fazemos muito contra o desmatamento no Brasil, há muito tempo. Este assunto é chave para a gente”, garante Carine Klaus, diretora de Engajamento do Grupo Carrefour, em Paris.
Desde 2017, os abatedouros suspeitos de serem responsáveis por desmatamento são “sistematicamente suspensos”, diz Klaus. Este compromisso será em breve ampliado, ressalta. Entretanto, a possibilidade de romper com a JBS, como pedem os ambientalistas, ainda é descartada.
“O grande compromisso que assumimos é cortar completamente os fornecedores de zonas de risco de desmatamento. Estabelecemos grandes áreas onde há risco e paramos de analisar caso a caso – simplesmente paramos de comprar dali. Até hoje, nenhuma ator se comprometeu desta forma”, argumenta. “Vamos reduzir em 50% a compra dessas áreas até 2026 e 100% até 2030. A JBS é uma das fornecedoras, mas tem outras também. E foi nesse sentido que um comitê de especialistas no orientou: sairmos das zonas de risco. É mais amplo e chegamos à conclusão de que, desta forma, será mais fácil de controlar.”
Na semana passada, o Carrefour anunciou a criação de um Comitê de Florestas para melhor orientar as políticas ambientais do grupo no Brasil, do qual fazem partes especialistas renomados no assunto, como o cientista Carlos Nobre.
Segundo processo?
A organização ambiental indica que o relatório e a campanha lançada nesta segunda-feira – “Carrefour nos enfume”, que pode ser traduzido como “Carrefour nos engana” – têm o objetivo de servir de alerta ao varejista, antes de uma eventual abertura de um processo contra o grupo. A Mighty Earth, associada às principais entidades indígenas do Brasil, está por trás de uma ação movida na França contra o grupo Casino, por razões semelhantes.
Na primeira audiência do processo, em junho, a Justiça francesa determinou uma tentativa de mediação entre as partes. O processo tem no cerne uma lei inédita francesa, a Lei do Dever de Vigilância, aprovada em 2017.
“É a primeira lei que responsabiliza as multinacionais quanto a qualquer violação ao meio ambiente, à saúde ou aos direitos humanos, e envolve o conjunto das suas atividades, inclusive fornecedores, e em todo o mundo. Além disso, o Conselho Constitucional francês tomou uma decisão extremamente importante em julho: o Código Ambiental pode prevalecer sobre o direito de empreender das empresas. Isso significa que o direito fundamental a um meio ambiente sadio pode prevalecer sobre os interesses das multinacionais”, comemora François de Cambiairte, advogado associado do escritório Seattle Avocat e defensor da organização.
Rumo à obrigatoriedade de compromissos ambientais
Em uma coletiva de imprensa nesta manhã, a deputada europeia Michèle Rivasi, membro do Grupo dos Verdes/ Aliança Livre Europeia no Parlamento em Bruxelas, também se associou à denúncia. Ela realizou recentemente uma missão ao Brasil e ficou revoltada ao sobrevoar as áreas devastadas em benefício da pecuária – responsável por 75% do desmatamento no país, conforme o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
“Nós já temos os instrumentos, diretivas e regulamentações europeias. Mas é preciso que as empresas participem. Uma nova diretiva está para chegar sobre a due diligence. Até agora, a responsabilidade das empresas poderia ser apenas voluntária: elas podiam assinar compromissos, convenções etc. Mas nada era obrigatório”, explicou. “Nós queremos que, em nível europeu, seja não só obrigatório, como sujeito a sanções. Carrefour e Casino nos dizem que adotam as melhores práticas, mas quando chegamos lá e vemos como funciona… Todos esses produtores que vendem gado resultado de desmatamento e só na última etapa tenha rastreabilidade, é algo que não nos serve. Tem que ser desde o início”, defendeu.
A rastreabilidade da cadeia de alimentos é uma exigência cada vez maior dos mercados europeus, na medida em que aumenta a sensibilização para a contribuição de atividades como a pecuária para o aquecimento global. O tema, associado aos recordes incessantes de desmatamento e queimadas na Amazônia nos últimos anos, são as principais razões evocadas pelo lado europeu para que o acordo comercial entre o bloco e o Mercosul ainda não ter sido ratificado. O tratado foi assinado entre as duas partes há mais de três anos.
Fonte: rfi