Então hoje, 22 de maio, é o Dia da Biodiversidade, esquema da ONU e afins. Tal termo virou clichê, como ‘sustentabilidade’, ‘ecologia’, ‘bem-estar animal’, ‘responsabilidade social’, ‘ética na política’ e outras palavras-chave-171. A maioria repete sem saber nem aplicar no dia a dia.
Que conversa é essa de biodiversidade, se a vida no planeta é mero parafuso na máquina insana no extrativismo, mascarada por outro clichê, ‘desenvolvimento’? Os animais entram como ingrediente no fordismo da indústria, engrenagens azeitadas a dor e argolas no pescoço, para que uma outra espécie, a humana, autointitulada dona das escrituras do mando, tenha um supermercado colorido e variado. Se os animais foram retirados a fórceps da natureza, que biodiversidade de museu é a que vemos agora? Um habitat derrubado, queimado, terraplanado e pavimentado, onde os animais silvestres tornam-se fantasmas ou, em caso de desproporção entre quantidade e espaço, motivo para justificar a caça.
Enquanto isso, temos a pecuária usando aquelas cartolas de ilusionista, com uma espiral que gira, hipnotizando quem a olha. Cabeças de gado em maior número que a população humana, pisoteando o que seria o espaço de vida para outros animais – estes, por nao serem ‘de serventia’, não passaram pelo processo de captura, seleção e cruzamento durante séculos, inseminação, multiplicação, cotação no mercado, incentivo público, apoio moral da população-autômata etc. Segundo o sonho dessa gente, só haveria grama pros bois comerem e alface pra acompanhar o churrasco de domingo. Mesmo que não admitam.
Quem acha a preocupação ética com os animais uma grande bobagem de quem não tem o que fazer, dirija-se a um matadouro – não, não precisa entrar. Dê a volta e procure a saída de dejetos. Se lhe parecer adequado um esgoto de água suja de sangue e resíduos de vísceras, significa que você não está preocupado nem com a água que bebe, e aí é uma opinião um tanto comprometida para ser pesada.
Se a substituição do couro por materiais não animais lhe parece algo em que só os xiitas veganos pensam, dirija-se a um curtume – não, não precisa entrar. Dê a volta e procure a saída de dejetos, lembrando de tapar o nariz. Se lhe parecer adequado um processo industrial tão poluente, fedido e que joga na natureza – perdão, já não há tanta ‘natureza’ assim disponível, ou melhor, nos centros urbanos, tantos resíduos tóxicos, é porque você não está preocupado com o ar que respira nem com a água que bebe, e nem mesmo com os alimentos consumidos. É uma opinião um tanto comprometida etc.
Então há muito que a biodiversidade deixou de ser o panda dando tchauzinho pros turistas, fagocitando milhões de animais que nasceram já zumbis, com data de validade e hora certa para morrer, ansiosamente aguardados pelas donas de casa que precisam fazer almoço para a família.
Paradoxalmente, essa produção que reza o evangelho do especismo está esfolando aos poucos as salvaguardas da sobrevivência de todos – inclusive de quem não concorda com ela. É carne com gosto de mato queimado, é leite dando arrependimento em quem acaba de ganhar um carimbo de osteoporose do médico, é sapato de couro embarrado de tanto ter pisado nos outrora rios, é a dedada na próstata que cutuca até a consciência e o medo de morrer dos cidadãos mais respeitáveis.
No Dia da Biodiversidade, como explicar a cada boca que mastiga a dor dos animais, que paga pelas correntes sempre bem presas, que a vida não é uma palavra poética como ‘esperança’, ‘nuvens’, ‘sentimento’. Ao contrário, para milhões de seres sencientes é a única propriedade e bem de valor que carregam – e a mineração humana se encarrega de escavar tudo que brilhe a seus olhos, sem se importar com os buracos.