Na coluna de hoje daremos sequência às objeções comuns à extensão da ideia de igualdade aos animais não humanos. Antes de continuarmos é importante fazer um parêntese sobre o que a ideia de igualdade implica. Como vimos nas duas colunas anteriores, pelo menos uma característica que normalmente reconhecemos como compondo e sendo fundamental para o erro em assassinar seres humanos (a saber, o impedimento do desfrute) se apresenta também no caso de animais não humanos sencientes. Assim, reconhecer que animais não humanos sencientes são iguais, no sentido eticamente relevante, implica reconhecer seu interesse em continuar a viver quando há alguma possibilidade de desfrute. Contudo, rejeitar o especismo não implica somente deixar de assassinar. Há outras implicações da aceitação da ideia de igualdade. Por exemplo, deixar de fazer sofrer.
Mas a coisa não para por aí. Se levamos a sério o raciocínio ético, e reconhecemos como errado explorar e usar seres humanos para nossos fins, então temos de reconhecer como errado o uso de animais não humanos, mesmo que isso não acarrete morte (lembrando que na maioria dos casos acarreta morte e muito sofrimento). E isso é assim porque seu status como objetos de propriedade[1] provavelmente abrirá portas para que lhes sejam causados danos. Portanto, rejeitar o especismo implica em reivindicar a abolição desse status. Mas, a rejeição do especismo não termina com o abolicionismo. Caso reconheçamos que temos deveres positivos quanto a humanos (prestar ajuda, impedir que novos danos aconteçam, etc.), mesmo quando os danos em questão não foram causados por nós (doenças, catástrofes naturais, etc.), então temos o mesmo dever no caso de animais não humanos. Os animais (principalmente na natureza) estão sujeitos a muitos danos que não provêm do uso que fazemos deles (nem direta, nem indiretamente); portanto, rejeitar o especismo requer ir além do abolicionismo. Aceitar que o princípio da igualdade exige a extensão aos animais não humanos implica em reconhecer que, toda vez que encontramos um interesse em um animal não humano, devemos dar igual consideração àquela que damos quando um interesse similar aparece num humano. Isso não é novidade. Essa fórmula foi sugerida por Singer[2] desde a década de 1970. Acontece que talvez ela tenha mais implicações do que imaginamos. Voltaremos a esse assunto daqui a algumas colunas.
Tendo feito esse parêntese para explicar melhor o que entendo pela ideia de igualdade e a rejeição do especismo, podemos passar à objeção que vamos discutir: “Mas esses animais não existiriam se não os criássemos para explorá-los”. Diferentemente de todas as objeções que discutimos até agora aqui nessa coluna, essa objeção tenta apontar um possível benefício para os animais atingidos pela decisão de explorá-los. Assim, aparentemente, esse argumento cumpre um requisito mínimo para se classificar como ético: ele afirma estar preocupado com o benefício para os atingidos pela decisão. Apesar disso, esse argumento tem inúmeros problemas. Para começar, não é verdade que esses animais não existiriam se não os criássemos para o abate ou outras formas de exploração. No nosso país existem muitos cães, e a maioria deles não nasce em criadouros. Contudo, é possível reformular o argumento, alegando então que “se explorá-los os dá a vida, então explorá-los é justificável”. O argumento pode ser resumido da seguinte maneira:
Argumento A
(A1) Tudo o que traz algum benefício para os atingidos é correto;
(A2) Trazer alguém à vida é sempre um benefício a esse alguém;
(A3) Criar animais para explorar traz eles à vida;
(A4) Logo, criar animais para matar é benéfico para os próprios animais.
(A5) Logo, criar animais para matar é correto
A premissa A3 é verdadeira. Mas, podemos notar, logo de cara, um problema com a premissa A2. Não é verdade que trazer alguém à vida é sempre um benefício para esse alguém. Tudo dependerá se a vida em questão for minimamente boa ou não. A imensa maioria da vida dos animais criados para serem explorados é ruim ao extremo. Faz todo sentido afirmar que, para um animal nascido numa granja industrial, melhor teria sido não nascer. A maioria dos animais criados por humanos se encontra nas granjas industriais, portanto, a premissa A2 não se aplica à imensa maioria dos casos. Ela teria de então ser re-escrita assim: (A2’): “trazer alguém para uma vida boa é sempre um benefício”.
Outro problema se dá na premissa A1. Não é verdade que toda decisão que traz algum benefício para os atingidos é a decisão correta. Como sabemos, a criação de animais para exploração, além de trazê-los à vida, o que é supostamente um benefício (como vimos na análise de A2, na maioria dos casos não é), também encurta essa vida, quando ela poderia ser mais longa e melhor, o que é um malefício. Então, a primeira coisa que precisa ser enfatizado é que, se esse tipo de decisão causa algum benefício, com certeza causa malefícios também. Para estar correta, uma decisão que causa ao mesmo tempo benefício e malefício precisa mostrar que não há nenhuma outra alternativa possível que seja melhor, ou seja, uma alternativa que cause mais benefício e menos dano aos atingidos.
Assim, se o presente argumento ainda pretende fazer algum sentido, as premissas A1 e A2 teriam de ser reescritas da seguinte maneira:
(A1’) Uma ação é correta quando é a única, ou, a que mais tem chances, de causar o maior benefício e menor dano para os atingidos pela ação;
(A2’) Trazer alguém para uma vida boa é sempre um benefício.
Mas, então, os passos restantes do argumento precisam ser modificados, haja vista que a imensa maioria das criações de animais para exploração não os traz para uma vida minimamente boa. O argumento inteiro reformulado ficaria assim:
(A1’) Uma ação é correta quando é a única, ou, a que mais tem chances, de causar o maior benefício e menor dano para os atingidos pela ação;
(A2’) Trazer alguém para uma vida boa é sempre um benefício.
(A3’) É possível que algumas criações de animais para exploração tragam-nos para uma vida boa;
(A4’) Logo, criar animais para matar nessas ocasiões é correto.
O problema agora é que a conclusão A2’ não segue de A1’. Tudo o que se pode concluir de A2’ e A3’ é que, nessas ocasiões, talvez algum benefício aconteça para os animais, mas não que são a única alternativa, ou a que causa o maior benefício e o menor dano. Por exemplo, o nascimento deles poderia ser permitido para que tenham uma vida feliz e morram de velhice. Não é necessário refletir muito para pesarmos as probabilidades do maior benefício e menor dano acontecer em cada uma dessas alternativas. Numa criação de animais para explorar, a intenção, já desde o início, não é ajudá-los, e sim, tirar proveito deles. Portanto, trazer animais para uma vida boa quando a intenção é ajudá-los têm muito mais chances de ter melhores consequências, pelo próprio objetivo da prática. Esse ponto é importante, pois, mesmo que fosse verdade que, em curto prazo, maiores benefícios para os próprios animais sejam garantidos com a existência da exploração, ainda assim poderíamos responder que um ideal de garantir que tenham uma vida boa e não sejam explorados tem muito maiores chances, em longo prazo, de superar de longe os aparentes benefícios instantâneos da decisão oposta. Isso tudo sem levarmos em conta uma avaliação sobre a própria motivação. A coisa toda já começa errada quando a intenção é explorar, e não ajudar.
Outra pergunta ainda seria: dar um benefício a alguém cria o direito de matar esse alguém? Parece que toda análise sobre o erro em assassinar, que fizemos em colunas anteriores, aponta para uma resposta negativa. Para evitarmos cair em especismo, uma analogia com casos envolvendo humanos é sempre bem-vinda. Não pensamos que aqueles que trazem à vida têm direito de assassinar quando o assunto são seres humanos. Do contrário, pensaríamos que os pais têm o direito de matarem os filhos quando bem entenderem, só porque foram eles que os fizeram nascer. Pelo contrário, costumamos ver com extrema revolta crimes desse tipo. Além disso, costumamos reconhecer que, muito pelo contrário, provocar o nascimento de um indivíduo, ao invés de criar o direito explorá-lo, cria responsabilidades por ele. Se isso é verdade no caso de humanos, pensar de outro modo no caso de animais não humanos é especismo. Portanto, os produtores de animais para exploração não apenas tem de parar de explorá-los, como têm uma dívida para com esses animais pelo resto da vida.
Aqui alguém pode objetar com o “argumento da substituição”[3], que diz o seguinte: “mas, somente se matarmos esses animais será possível que outros tenham chance de existir”. O primeiro problema com esse argumento é que seus proponentes não gostariam de serem substituídos “para que novos humanos tenham chance de existir”. Portanto, aparentemente, são culpados de especismo. Poderiam responder que os animais não humanos em questão são menos sofisticados mentalmente, o que os torna substituíveis, enquanto que humanos adultos não. Poderia-se afirmar, por exemplo, que humanos adultos fazem planos para o futuro, enquanto que determinados animais não o fazem. Essa resposta apresenta então o segundo problema com o argumento, pois, não importa a sofisticação mental do ser em questão, o novo indivíduo criado será outro. A perda num indivíduo não é compensada pela criação de outro. Não é uma quantidade de prazer anônima que é removida do mundo quando um animal senciente (por mais simples intelectualmente que seja) é morto[4]. É um indivíduo identificável para quem faz todo sentido afirmarmos que sofre uma perda ao morrer (ainda que não tenha consciência da perda). Além do mais, quando analisamos o erro em assassinar, listamos duas características importantes, sendo a presença de pelo menos uma delas já suficiente para haver erro em matar. As duas características foram preferência em continuar vivo e, principalmente, a possibilidade de continuar o desfrute. Esse argumento tem ainda uma implicação curiosa, pois, se a intenção de substituir é dar chance para novos seres existirem, então cada um de nós deveria se matar para que o espaço seja ocupado por muitos animais sencientes pequenos. Afinal de contas, de acordo com o argumento, seria ótimo que a perda de apenas um indivíduo abrisse a possibilidade para vários outros existirem.
Podemos concluir então que, se a intenção dos argumentos discutidos era apontar uma razão contra matar humanos que ao mesmo tempo autorize matar animais não humanos, logo vemos que o argumento do “eles não existiriam de outra forma” é falacioso, tanto porque eles poderiam existir de outra forma, quanto pelo fato de fazê-los existir não justificar matá-los.
[1] Cf. FRANCIONE, Gary L. Animals, Property and The Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995.
[2] Cf. SINGER, Peter. Ética Prática. 3a ed, Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[3] Tal argumento é discutido em SINGER, Ibid, cap. 4 e 5.
[4] Cf. SAPONTZIS, Steve F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987, p. 170.