Por Regina Schöpke
Quando Voltaire chamou de estúpida a ideia de que os animais são seres destituídos de sentimentos e de emoções, era a Descartes (e a sua ignóbil noção de “máquinas sem alma”) que ele pretendia atingir. Afinal, mostrar os animais como engrenagens ocas, vazias, que nada sentem (nem dor, nem amor, nem alegria, nem coisa alguma) serviu de justificativa para toda a forma de exploração e de abusos cometidos contra eles. É claro que pode soar estranho que algumas pessoas dêem tanta atenção ao bem-estar dos animais quando os próprios homens não se entendem, se matam e se escravizam. Aliás, costuma-se argumentar que se até hoje os seres humanos não conseguem respeitar nem a sua própria espécie, por que respeitariam as outras?
Argumento irrefutável, sem dúvida. Mas, também é, com toda certeza, um argumento de má-fé, já que sua função é paralisar uma discussão que vai muito além da relação dos homens com os animais. Tal discussão termina (ou começa) no interior do próprio homem e de sua tirânica relação com a vida. Sim… Quem pode negar que a história humana tem sido marcada mais pela tirania do que pelo bom-senso de nossa aclamada razão? Ódio, intolerância, preconceito, racismo, ambição, guerras sem fim… O homem parece mesmo o tal “rei das bestas”, como disse ironicamente o grande gênio da Renascença, Leonardo da Vinci, aludindo ao fato de que ele é, sem dúvida, a maior de todas elas.
Parece que a vida não tem mesmo muito valor para o homem. Eis porque Nietzsche sempre falou que era preciso recuperar “o sentido da terra”, como um despertar da existência. O prazer de fazer valer cada instante que passamos aqui… os pés enterrados no solo, a brisa suave acariciando nosso rosto… Viver é o supremo bem de todo ser! E ser é estar no mundo! Nesse ponto, sob o aspecto da vida, todo ser é ser, homem ou animal, sem distinção. Ser não é pensar, nem é ter raciocínios mais elaborados. Não é mais ser quem pode fazer a pergunta sobre o próprio ser (que suprema tolice!). Ser é viver, é estar presente, é afetar e ser afetado, é fazer encontros, é estar no tempo do mundo. Daí porque nenhuma tirania é justificada, absolutamente nenhuma. É uma questão simples de poder, de indiferença e de desrespeito. Quem não se opõe a ela, portanto, está negando a si mesmo o direito de ser livre e de viver.
Está na hora, portanto, de olharmos de frente para o que fazemos. Sairmos de nosso solipsismo pueril. Das duas uma: ou não existem direitos naturais à vida e à liberdade, como o homem tanto acredita e defende para si, ou tais direitos existem para todos que partilham conosco dessa exuberante existência. Eis o ponto onde deve começar a verdadeira discussão sobre os direitos dos animais! Eis o grande desafio que precisamos encarar: o da tirania (seja com a nossa espécie, seja com as outras)! Não podemos mais ficar na posição de ressentidos, nos fazendo de vítimas das circunstâncias. Está na hora de entendermos até que ponto também somos coniventes e cúmplices dessa tirania, seja por ignorância, seja por total desprezo à vida alheia.
É sobre essa difícil e, em geral, menosprezada questão dos direitos dos animais que trata o livro Jaulas Vazias, do filósofo norte-americano Tom Regan (lançado, recentemente, pela editora Lugano). Regan, que é conhecido mundialmente pela sua luta em prol do que ele chama de uma “consciência animal”, ou seja, desse despertar do homem para a sua própria condição de membro ou parte da natureza, tornou-se uma espécie de porta-voz daqueles que não podem falar e que, em função disso, tornaram-se escravos das nossas necessidades e comodidades. Um clamor pela vida, mas também um apelo para o enfrentamento de nós mesmos e de nossa postura no mundo. Eis o que é esse livro: uma exposição clara da situação degradante em que vivem os animais.
Sim… é, de fato, degradante. O homem fez da Terra uma enorme gaiola, onde todos os animais vivem escravizados, privados de sua liberdade de ir e vir, de constituir família, de compartilhar a vida com outros seres de sua espécie, enfim, de serem senhores de suas próprias vidas. Eis, aliás, um conceito que Regan desenvolve na obra: os de “sujeitos-de-uma-vida”, como ele chama todos os seres vivos (independente de pensarem com conceitos gerais e abstratos ou de viverem a partir de suas sensações mais imediatas). Aliás, é para tal fato que Regan deseja chamar a atenção: se temos o direito à liberdade, eles também têm. Negar isso é, como já dissemos, aceitar como natural a nossa própria escravidão.
É certo que muitos poderão dizer que isso é uma utopia ou uma ficção. Mas, que idéia não é uma ficção, uma criação humana? A questão, no entanto, é saber quais ficções servem à vida e quais estão a serviço do niilismo e da destruição. E, principalmente, saber de que lado o homem deseja ficar. Regan deseja ficar do lado da liberdade e do respeito a toda forma de vida. Afinal, já está mais do que na hora de pararmos de usar o discurso da superioridade para justificar nossos atos cruéis e nosso desprezo pela existência.
Como mostra o autor, não nos contentamos apenas em dispor indiscriminadamente de todas as vidas para nos alimentar; nós enjaulamos todos os animais. Nem mesmo os animais que dizemos estimar, os cães e os gatos, escapam de um tratamento indigno. Também eles são mercadorias que colocamos à venda e que, muitas vezes, tratamos como bibelôs e brinquedinhos para nossa diversão e proteção. Daí porque basta que envelheçam para serem substituídos como uma roupa velha. Não satisfeitos, ainda usamos os animais como cobaias em laboratórios, não ligando a mínima para o sofrimento que lhes infringimos (afinal, é para o “nosso” progresso). Nos divertimos nas touradas, nos circos, zoológicos e caçadas. E chegamos a tal ponto de insensibilidade que usamos a pele dos animais apenas por um luxo, uma manifestação vulgar de status e riqueza (pele, essa, que é retirada enquanto eles ainda estão vivos e se debatendo de dor). Humano, demasiado humano… Nosso desrespeito pela vida e pelo sofrimento dos animais é tão ilimitado e irracional quanto a crença de que temos o privilégio sagrado de usar e de abusar da natureza.
É claro que, como Nietzsche, reconhecemos que a vida é luta. Mas, não aceitamos a idéia de que abusar de tudo e de todos seja lutar. Trata-se de um jogo sujo, de uma trapaça, que não depõe em nada a favor de nossa inteligência e superioridade. Aprisionar os pássaros e furar seus olhos para que eles cantem melhor não é, certamente, uma questão de sobrevivência. Assim como amontoar cães e gatos em gaiolas, como fazem certos restaurantes da China, para que eles sejam escolhidos pelos fregueses e mortos na hora, só se explica por uma brutalização ainda maior do homem, já que nem os animais que se tornaram nossos mais fiéis companheiros são poupados. Tudo isso é apresentado no livro de Regan, que não poupa detalhes (embora sem qualquer sensacionalismo) de como vivem os animais nas granjas, de como são os matadouros, de como milhões deles são mortos ou mutilados diariamente pelas indústrias alimentícias, de cosméticos, etc. O intuito do autor é, de fato, tocar a “alma” dos relutantes, daqueles que ainda não tomaram consciência clara desta situação. É assim que, numa linguagem simples e direta, Regan vai fazendo reflexões teóricas profundas sobre nós mesmos, nossos hábitos e nossas práticas.
Da Vinci é, com razão, muitas vezes citado no livro. Afinal, ele, que desde criança tornou-se vegetariano por não suportar as atrocidades que se cometiam, dizia que o homem transformou seu estômago num túmulo para todos os animais. Da Vinci nem colocava a questão se somos ou não carnívoros (tudo em nossa compleição indica que não somos); ele apenas chamava a atenção para a brutalidade de nossas ações, pois nem mesmo isso justificaria a escravidão dos animais.
Dizem que Da Vinci também teria dito que um dia se consideraria um crime, um assassinato, matar um animal. Esse dia ainda parece distante, mas hoje já existem menos dúvidas sobre os seus sentimentos e emoções. Aliás, Darwin estudou tais emoções e, mais do que isso, ele foi o primeiro cientista a desferir um golpe profundo em nossa arrogância ao mostrar que nossa espécie evoluiu de outras inferiores e que somos apenas animais, ainda que muito inteligentes. Nesse caso, falar de “consciência animal” não é falar apenas de cães, gatos, porcos, bois ou patos, mas de todos nós, humanos ou não. Regan está certo. Jaulas vazias, sim! Só isso poderia libertar o homem de sua própria jaula e escravidão. Eis um sonoro grito da vida… Eis o sonoro grito da natureza!
Regina Schöpke é filósofa, medievalista, tradutora e autora dos livros Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade”, “Matéria em movimento: a ilusão do tempo e o eterno retorno” e “Dicionário Filosófico”.