EnglishEspañolPortuguês

ARTIGO

O sacrifício de animais em rituais religiosos, o Direito Animal e as falácias lógicas

24 de outubro de 2023
Rafael Tocantins Maltez
37 min. de leitura
A-
A+
Foto: Ilustração | Freepik

Os utopianos não imolam animais nos seus sacrifícios. Pensam que a clemência divina, que deu a vida aos seres animados para que vivam, não pode se alegrar com a visão do sangue e da morte. Queimam incenso e outros perfumes, e velas em grande número (A Utopia -Thomas More)

“O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu (Max Weber)

1. INTRODUÇÃO

A relação dos seres humanos com os animais não-humanos é altamente problemática e perturbadora, marcada pela extrema desigualdade e desproporcionalidade, pois ocorre a partir de um poder quase absoluto sobre todos os demais que estão ao seu alcance no planeta, seja na terra, no ar ou no mar. Dessa forma, todos os animais não-humanos estão submetidos às vontades e desejos dos humanos, situação agravada com o avanço da tecnologia que possibilita um grau ainda maior de dominação. Aqueles que ainda não foram subjugados, não o foram unicamente porque o ser humano ainda não quis ou outros seres humanos impediram. Os humanos é que decidem, inclusive com justificativas jurídicas, como e quando os animais devem nascer, viver e morrer. Para tanto, os humanos se reúnem em locais nos quais podem fazer regras para sujeitarem os animais não-humanos, mas estes são excluídos da participação de sua elaboração. Depois, os humanos se reúnem em fóruns e tribunais para decidirem a validade, sentido e alcance das normas que os animais deverão se sujeitar, mas, mais uma vez, em nenhum momento participam ativamente dos respectivos processos. Atividades legislativas e judiciais, protagonizada por apenas uma espécie, que estabelece a forma de exploração, e as respectivas justificativas para os próprios seres humanos (pois aquelas apresentadas dificilmente convenceriam os animais não-humanos do acerto de serem espoliados), de todos os outros seres do planeta, sendo que vez ou outra, alguns dos seres dominantes ainda lembram que não faria muito mal ou não haveria tanto prejuízo econômico se fosse garantido um mínimo de bem-estar e dignidade aos seres ditos irracionais pelos autoproclamados racionais. Mas não mais que isso, ou seja, o mínimo do mínimo existencial. Afinal de contas, não podemos inverter valores. Onde já se viu a vida de uma galinha valer mais que a vida de um ser humano. Absurdo não é mesmo? Então vamos com calma. Assim, poucas pessoas de uma única espécie é que vão debater, deliberar e determinar, se é permitido ou não, que se puxem o rabo de animais com risco de lesões, fraturas e amputações e em alguns casos, morte, para diversão de outra espécie; se podem ser caçados de forma fria e covarde unicamente para o regozijo; se podem ser queimados, mutilados, envenenados e intoxicados por gases e mortos em locais que dizem ser de produção científica; se podem passar a vida inteira em jaulas, privados eternos de liberdade, com algumas saidinhas eventuais, forçados a viver dessa forma ou torturados a fim de se apresentarem para que uma outra espécie possa observá-los nos finais de semana; se podem ser sacrificados em nome de crença que sequer é a sua, obrigando-os a se sujeitar a procedimentos que irão lhe retirar a vida, sem compreenderem muito bem o motivo; se podem perder seu sossego, seu habitat e até sua comunidade para a construção de grandes obras ou empreendimentos, como hotéis de luxo, rodovias, hidroelétricas, extração de petróleo. Assim é a rotina de vida dos animais não-humanos, que diante de tanta desconsideração e indiferença esperam um olhar animal, um gesto de respeito ou ao menos de piedade, daquele que se autointitula homo sapiens sapiens. Há, portanto, nessa relação, uma parte vulnerável, frágil, fraca, situação que exigiria daquele que exercer o poder, um dever de cuidado e proteção, o qual não poderia ser ignorado e desconsiderado, notadamente pelo Direito.

Feita essa breve reflexão, depreende-se que a relação ser humano-animal não humano ainda está muito mal resolvida, em boa medida por conta do antropocentrismo arraigado e da consequente crença da superioridade sobre todas as coisas e sobre todos os seres, o que nubla a visão e o pensamento, objetifica o animal não humano e naturaliza desde atos lesivos leves aos seres vulneráveis que deveriam ser protegidos, até as mais ignomínias e inimagináveis práticas, que inclui body horror animal, que resultam em fraturas, mutilações, perda de funções e da própria vida.

No âmbito jurídico, há uma tendência crescente de debates, de cursos, de livros, de leis, de julgados, que envolvem a temática animais não humanos. Nesse contexto, percebe-se a utilização de argumentos não verdadeiros, falaciosos e desconectados com a realidade. A fim de se legitimar a exploração, inclusive cruel, são amiúde tratados como coisa, desconsiderando-se sua senciência e seus interesses, situação que normaliza e perpetua a barbárie e a selvageria, apesar da expressa vedação constitucional de práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII). São até inventadas normas pelos seres humano, inclusive constitucionais (§ 7º do art. 225), que para legitimarem e justificarem o injustificável, negam o real ao considerar, se preenchidos alguns requisitos, que não são cruéis atividades que se fato. Em outras palavras, os seres humanos se autolegitimam a explorar os animais por meio de um sistema que ele mesmo criou, o direito. O ser humano justifica que está procedendo daquela forma com os animais porque a norma permite, mas quem elaborou e criou a norma que permite foi o próprio ser humano. Os animais não-humanos não entendem muito bem como isso pode acontecer. Trata-se do circulus in probando ou argumento circular, o qual ocorre quando a conclusão é usada para respaldar as premissas usadas para chegar a essa conclusão. Tem a aparência de uma argumentação inteligente [2].

No debate e na argumentação jurídica envolvendo o tema animais não-humanos, para a defesa e sustentação do entendimento de lado a lado, são utilizadas além de raciocínios sólidos, lógicos, consistentes, o recurso das falácias lógicas, artifício engenhoso que na mínima perda de atenção, pode-se embarcar com adesão involuntária a um entendimento sem fundamento válido, pois eivado de erro de raciocínio.

É certo que a lei não precisa ser lógica e muitas vezes não é. Entre as quais destaca-se a EC 96/2017 [3], em relação à qual a lógica passou ao largo. Contudo, deve-se ao menos dar a aparência de lógica, até para se conseguir certa legitimidade. Os argumentos jurídicos, por seu turno, não devem ter erros de raciocínio para que possam sustentar a respectiva conclusão.

O presente artigo visa a, dentro da temática animais não-humanos, identificar e analisar casos de falácias lógicas utilizadas na atividade jurídica, como em audiências públicas, processos judiciais e projetos de lei. O foco não é adentrar no mérito dos temas abordados, mas nos raciocínios utilizados. Não se trata de artigo crítico de crenças ou pessoas (até porque a depender da situação pode caracterizar-se a falácia ad hominem [4], ou seja, de fundamentação inválida por erro no raciocínio). Assim, propõe-se tão somente fazer um corte metodológico para que se possa ajudar a perceber, de forma objetiva, a utilização de falácias, o que pode levar a uma conclusão diferente se fosse utilizada argumentação jurídica sem falhas ou erros. A intenção é o despertar para a forma como às vezes é estruturado o argumento na atividade jurídica. Uma espécie intervenção pedagógica com o objetivo de colaborar com o estudo do processo argumentativo. São ideias que se lançam e que não esgotam o tema, ao invés, existe a possibilidade de se incorrer em novas falácias ao se discorrer a respeito do emprego de falácia, ou de se utilizar uma falácia para sustentar a veracidade de uma afirmação [5], o que demanda a continuidade das reflexões, com ajustes, correções, acréscimos, complementos, cortes, e é o que se pretende fazer em futuros artigos e livros.

O tema proposto justifica-se na medida do perigo das falácias lógicas, pois se trata de eficaz e poderosa técnica de convencimento, mesmo sem se ter razão ou fundamento, e, se bem formulada, de difícil percepção e identificação, o que pode levar à criação, reforço, reprodução e compartilhamento de argumentos falsos por sua potencialidade de enganar com argumentos falhos. São capazes de iludirem nossas faculdades críticas. São como uma ilusão de ótica para a mente.

2. FALÁCIAS LOGICAS

Falácia é um erro argumentativo, um erro de raciocínio. Um argumento falacioso é aquele que em um primeiro momento parece ser o que é, não havendo nada mais a ser revelado, já que tudo foi dito e nada mais haveria a dizer (aparente do aparente), mas olhando-se melhor e mais atentamente apenas em aparência é correto, existindo outra camada, mas para os desavisados somente o que salta é assimilado (aparente do oculto). Tem aparência de ser verdadeiro, mas possui outro plano (o oculto do aparente) que é encoberto pelo aparente. Assim, esse argumento pode parecer correto, mas ao ser adequadamente examinado, revela-se não ser. Importante destacar que mesmo no caso de premissas e conclusões corretas, um argumento pode ser falacioso se o raciocínio utilizado para chegar à conclusão não for logicamente válido.

As falácias são classificadas em formais e informais. Na falácia formal, o argumento é falso porque sua estrutura é falha; viola as regras fundamentais da lógica. A falácia informal é mais sofisticada e de maior dificuldade de identificação. A conclusão não segue as premissas, não por conta da estrutura lógica do argumento, mas pelo conteúdo das premissas e da conclusão. Para refutá-la, além da análise do conteúdo das premissas e da conclusão, é necessário verificar o uso que se faz do argumento.

De acordo com Damer, são falácias lógicas informais: a) falácias que violam o critério da relevância, ou seja, quando são apresentadas premissas irrelevantes para a sua conclusão; b) falácias que violam o critério da aceitabilidade, isto é, quando uma premissa não é do tipo que qualquer pessoa razoável deva aceitar, c) falácias que violam o critério da suficiência, nas quais as premissas apresentam evidências insuficientes ou inexistentes para fundamentar sua conclusão e; falácias que violam o critério da refutação que são aquelas que fracassam em fornecer uma refutação robusta para as críticas feitas aos argumentos e aos argumentos mais robustos do interlocutor.

O argumento falacioso contém um ou mais erros não factuais em sua formação. Erros factuais não são falácias. Por exemplo, se alguém disser que um cachorro não tem sistema nervoso central, não se trata de falácia, mas apenas de um erro. No argumento de que na vaquejada não há crueldade intrínseca não há uma falácia lógica, apenas está errado.

O raciocínio falacioso consiste na utilização de um raciocínio equivocado ou que não usa a razão ou a lógica ao avaliar ou criar um argumento, objeção, proposição. Na falácia intencional, utiliza-se, de forma deliberada, um raciocínio falso para que haja aceitação ou adesão às conclusões.

3. SACRIFÍCIO DE ANIMAIS EM RITUAIS RELIGIOSOS ( RE 494601/RS)

Esse é um dos temas mais delicados na temática direitos animais. No menor descuido, existe o risco de se partir para a falácia ad hominem [6], ante as emoções, sentimentos e crenças envolvidas.

i) Na audiência pública realizada no STF, a respeito do sacrifício de animais em rituais religiosos ( RE 494601), foram apresentados os seguintes argumentos: “Os sapatos dos narradores são todos sapatos de couro. Há um fenômeno que talvez a psicologia chamasse de esquizofrenia em que se faz um discurso acalorado, entusiasmado, em favor dos animais, calçando sapatos de couro…Alguém pode acreditar que bife dá em árvore? Estamos tratando de uma hipocrisia”.

A utilização da hipocrisia como base para afirmar que a posição contrária é falsa é conhecida como falácia de apelo à hipocrisia ou ad hominem tu quoque (inconsistência pessoal). Apontar a existência de hipocrisia nem sempre é uma falácia lógica, embora possa parecer, a depender das circunstâncias, como um ataque pessoal.

Tu quoque (‘você também’) consiste na acusação de que a pessoa não age de acordo com o que declara. Contudo, o caráter ou a conduta da pessoa é irrelevante e não estão relacionados com a verdade de um argumento. Mesmo que a pessoa aja de forma contraditória ao comportamento debatido, não significa que esteja errada em defender esse comportamento. Não é o calçado ou o tipo de alimentação de uma pessoa que irá demonstrar a veracidade ou não de um argumento. Um vaqueiro pode argumentar que a vaquejada deveria ser proibida ante a impossibilidade de realização da prática sem maus-tratos e sofrimento profundo dos animais e não é só pelo fato de participar da crueldade ao puxar o boi pela cauda, após torcê-la com a mão, provocando luxação das vértebras, lesões musculares, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, rompimento da conexão entre a cauda e o tronco, comprometendo a medula espinhal, e derrubá-lo, causando traumatismos graves da coluna vertebral, fraturas ósseas e paralisia, que há por isso inverdade em sua afirmação, não significa que há erro no argumento de que na vaquejada há crueldade intrínseca. Se um produtor rural que aplica agrotóxico argumentar que este é um veneno que, além de ser capaz de biocídio, desequilíbrio ecológico e pode causar doenças e alterações genéticas, essas afirmações não deixam de ser verdadeiras somente porque esse agricultor aplica o agrotóxico.

Essa falácia é muito utilizada, inclusive contra o Direito Animal, porque há uma pressão para que sejamos coerentes em tudo, o tempo todo e durante a vida inteira. Contudo, é praticamente impossível todas as pessoas serem totalmente coerentes em absolutamente tudo desde o nascimento até a morte, ainda mais se considerarmos que o sistema atual ainda é estruturado na exploração animal e na sua normalização (nos cursos jurídicos amiúde se ensina que animais não-humanos são coisas). A inconsistência faz parte da vida e até pode ser salutar, como quando alguém tinha determinado comportamento ou entendimento e é levado a mudá-lo ao perceber seu erro. De qualquer forma, não é o comportamento da pessoa que irá ditar a veracidade ou não do argumento. Se alguém afirma que os testes em animais são errados por n motivos, não deixam de ser errados por esses n motivos somente porque a pessoa usa cosméticos testados em animais não-humanos. Da mesma forma, se existem estudos que associam o consumo de carne vermelha ao aumento de probabilidade de câncer, é indiferente para a veracidade desse argumento o fato de o pesquisador comer carne vermelha. Nessa modalidade de falácia, o objetivo é mudar o tema. Para isso direciona-se o foco para a pessoa que emite o argumento em vez de se discutir as razões para se aceitar ou não a conclusão.

Quanto à alegação de esquizofrenia, o professor e filósofo Gary Francione explica a esquizofrenia moral, que consiste numa conduta contraditória relacionada à moral. No caso dos animais não-humanos, a pessoa pode desejar a proteção da vida do animal, mas ao mesmo tempo pode manter-se inerte quanto à crueldade animal e nada fazer ou pode mesmo consumi-lo após ser submetido à crueldade. Esse comportamento contraditório pode ocorrer por conta de inúmeros fatores como a cultura, os hábitos, a educação, os costumes, o entorpecimento psíquico. Por exemplo, a salada é vista como guarnição ou mero acompanhamento e o protagonista é o “produto” de origem animal. Esse consumo existe por conta do paradigma antropocêntrico e da objetificação dos animais, ou seja, todos os animais não-humanos do planeta são coisas que estão à disposição de uma só espécie, inclusive para serem sacrificadas em nome de crenças dessa única espécie.

Assim, realmente existe esquizofrenia moral, bem como o especismo seletivo, os quais podem servir para camuflar não só a consciência como também ações que em tese poderiam constituir ações delituosas. Há preconceito e discriminação em relação a determinados animais e a outros não, inclusive com especial proteção seletiva, sem justificativa lógica para tanto. Nesse sentido, é sintomático que a Lei n. 14.064/2020 que alterou a Lei n. 9.605/1998, para aumentar as penas cominadas ao crime de maus-tratos aos animais tenha se restringido a cão ou gato. A ementa original tenha a seguinte redação: “Altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 para estabelecer pena de reclusão a quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos; e instituir penas para estabelecimentos comerciais ou rurais que concorrerem para a prática do crime” (grifo nosso). A lei foi sancionada com a seguinte redação: “Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”. Quase todo o projeto original foi rejeitado, restando apenas e tão somente maus-tratos e quando se tratar de cão e gato. “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Seria o caso de esquizofrenia e especismo seletivo?

O decreto do Governador do Estado do Rio Grande do Sul é também sintomático: “Para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte”. Não há lógica em restringir os animais a serem sacrificados aos que são destinados à alimentação humana, a não ser o arbítrio humano eo especismo seletivo.

Na ADI 4983, levantou-se uma interessante questão:”- Se o animal a ser sacrificado for uma arara azul que está em risco de extinção? – Para cada um dos orixás, há exatamente quais são os animais a serem sacralizados. Não há inovações. Não há animal em extinção, nenhum animal que chamamos de pets – cachorro, gato. Se eventualmente vier a surgir, obviamente deveremos analisar”. Paira, assim, a seguinte questão: se os animais sacrificados em rituais religiosos fossem cães Golden Retriever ou gatos Ragdoll, o resultado seria o mesmo? Quando se tratou de farra do boi ( RE 153531), briga de galo ( ADI 2514), rinha (ADI-MC 1856) e vaquejada ( ADI 4983), o resultado não foi o mesmo.

Na mesma audiência pública realizada no STF a respeito do sacrifício de animais em rituais religiosos ( RE 494601), foram apresentados os seguintes argumentos: “Não há comoção social em relação ao abate halal, ao abate judaico…As instituições jurídicas não vêm reclamar”. “Há estatísticas no Brasil que comprovam que nas periferias das cidades jovens negros são chacinados como animais, mas não há comoção na sociedade brasileira”. Arguiu-se que diferenciar as religiões é racismo religioso.

Contudo o recurso extraordinário apresentou três fundamentos: 1) inconstitucionalidade formal por invasão, pelo Estado, de competência legislativa, que seria da União; 2) violação ao princípio da isonomia, ou seja, da igualdade, porque se estaria tratando preferencialmente uma específica linhagem religiosa; 3) violação ao princípio da laicidade do Estado, que significa que o Estado não deve apoiar nenhuma religião estabelecida. Identifica-se, portanto, nas argumentações citadas, a utilização de diversas falácias lógicas.

A primeira falácia utilizada consiste no apelo à emoção, na qual são utilizados fatos ou situações que despertam sentimentos, como indignação ou piedade, ao invés de se apresentar argumentos lógicos e racionais ou provas ou evidências. Essa é a falácia utilizada quando pais dizem aos filhos: “Existem crianças passando fome na África. Coma tudo o que está no seu prato”. Não há nenhuma relação entre o filho não comer aquela comida específica e o problema das crianças famintas. Faria mais sentido o seguinte argumento: “devemos doar alimentos às crianças famintas”. Trata-se de argumento enganoso porque as emoções das pessoas não provam o argumento.

Eventualmente, seriam dados pertinentes aqueles relacionados à questão do sacrifício: a senciência dos animais utilizados e a dinâmica do procedimento de sacrifício para se verificar se há ou não crueldade. Do ponto de vista do animal que é sacrificado, o que importa é seu direito de não ser submetido à crueldade, sendo a ele indiferente em nome de qual religião ele está perdendo sua vida de forma cruel.

No caso da discussão da constitucionalidade ou não da Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2.º da Lei 11.915/03-RS, faria sentido lógico a seguinte argumentação: “A Lei n. 11.915/2003 que trata da proteção aos animais no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, no art. 2º em sua redação original, não permitia o sacrifício de animais em rituais religiosos, pois expressamente vedado ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde – OMS -, nos programas de profilaxia da raiva. A Lei n. 12.131/04-RS que acrescentou um parágrafo único ao artigo 2º da Lei n. 11.915/2003, o qual tratava de vedações, introduziu uma única exceção: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”. Fazendo-se uma interpretação sistemática, lógica, teleológica e racional, essa norma é constitucional e a exceção não significa permissão para que se possa praticar as condutas vedadas e descritas no art. 2º, inclusive para não se descumprir o art. 225, § 1º VII, da CF, mas assegura a realização do sacrifício de animais segundo os respectivos dogmas e preceitos, independentemente do consumo da carne como alimento, já que tratando-se de liturgia religiosa, não há necessidade de se aproveitar o animal sacrificado como alimento. Ademais, deveria haver uma interpretação extensiva para estender a constitucionalidade para todos os ritos religiosos que realizem o sacrifício, abate de animais, segundo seus dogmas e preceitos religiosos, que, afastam maus-tratos, tortura, crueldade contra animais”. Aqui há argumentos, sem falácias.

Falácias que violam o critério da relevância. A questão da violência nas periferias é importante e em nada se relaciona com a questão dos animais sacrificados. Se for proibido o sacrifício, o impacto ou a repercussão na violência das periferias será zero. Assim, apesar de ser uma falácia lógica, uma vez que não há conexão entre os temas, faria mais sentido propor, por exemplo, políticas públicas na periferia, já que a proibição de sacrifício de animais em nada ajudaria, afetaria, impactaria positivamente, melhoraria na diminuição da violência nas periferias (mas ajudaria na diminuição da violência contra os animais, tema pertinente à ADI).

Foi utilizada a falácias da generalização precipitada ou falácia das estatísticas insuficientes (consiste no estabelecimento de uma regra geral baseada em fatos pontuais, considerando que não se pode tomar a exceção como regra). São feitas suposições para um grupo inteiro de casos com base em uma amostra inadequada, porque é atípica, pequena ou não representativa. Um caso particular não representa o universal. Toda generalização é uma armadilha lógica.

Em que pese os argumentos da comoção social e da inércia das instituições jurídicas não guardarem relação com o objeto da ADI, não se indicaram dados para sustentar a argumentação. De toda a forma, existem reações, reclamações, protestos, ações e comoção, no Brasil e no mundo, a respeito do sofrimento do animal sacrificado em outras religiões. Apenas como exemplos: a) Na Bélgica, foi questionada a ética por trás de ritual de sacrifício de animais, argumentando-se que a morte dessa forma é brutal porque aumenta a agonia do animal e o submete a muito estresse antes de morrer. Em janeiro de 2019, em Flandres, uma norma proibiu a matança de animais sem que eles tenham sido previamente insensibilizados. A insensibilização tem o objetivo de deixar o animal inconsciente, para que ele possa ser abatido sem dor. Mas certas religiões seguem preceitos em que vacas, cabras, ovelhas ou aves de curral devem ser sacrificadas com um corte na garganta e deixadas dessangrando por horas até morrer. Contudo, se o animal estiver consciente, como estabelece o Alcorão e a Torá, os livros sagrados do Islã e do judaísmo, respectivamente, esse rito, com pequenas diferenças, é ilegal em 11 países europeus, entre os quais Suécia, Noruega, Dinamarca, Eslovênia, Islândia e Bélgica, exigindo-se que se aplique algum sistema que faça o animal perder a consciência antes de se passar a faca por seu pescoço. Os grandes frigoríficos brasileiros aplicam a insensibilização no abate de frangos. Lá como cá, houve alegação de discriminação religiosa e de restrição à liberdade religiosa. Lá como cá, o principal interessado, que é o animal não-humano que não quer morrer de forma cruel, amiúde é deixado em último plano e a discussão foca-se nos interesses humanos; b) O Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal ajuizou Ação Civil Pública em face da União, visando a obter provimento jurisdicional que proíba as exportações de quaisquer animais vivos, inclusive para abate religioso no exterior, por meio de navios que partam de quaisquer portos do país [7]; a Agência Nacional de Notícias de Direitos Animais – ​ ANDA e a Associação Itanhaense de Proteção aos Animais​ ajuizaram Ação Civil Pública em face da Companhia Docas do Estado de São Paulo​ ​ – Codesp, para que as operações de embarque de animais e o consequente transporte deles ao porto destinatário internacional ​ sejam canceladas terminantemente [8]​.

Por outro lado, foi utilizada falácia que viola o critério da suficiência em relação ao argumento de que “a vida de preto não tem relevância nenhuma; a vida de preto não move instituições jurídicas”. Ao invés, há inúmeros estudos acadêmicos a respeito, há ações judiciais; há normas constitucionais (é princípio da República Federativa do Brasil o repúdio ao terrorismo e ao racismo; a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão) e infraconstitucionais (existe lei específica para punir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).

Utilizou-se a falácia da cortina de fumaça, na qual se relaciona o argumento para outro assunto mais fácil de responder e consiste em atrair atenção para assuntos irrelevantes para o tema debatido, ou mesmo falsos, de forma a tirar o foco da questão central. Tem a seguinte estrutura: 1) o tema A está em discussão; 2) Se introduz o tema B sob falsa aparência de ser relevante para o tema A; 3) O tema A é abandonado e se discute o tema B.

Não se comprovou, por exemplo, que não há crueldade no sacrifício; ao invés houve acusação de racismo religioso e de que ninguém se importa com os jovens negros das periferias. Assim, as acusações, que em nada têm pertinência com o objeto da ADI, foram trazidas como uma forma de confundir e tirar o foco.

Contudo, mesmo que não houvesse ações da defesa de animais utilizados em sacrifício em outras religiões (o que seria um erro, mas conforme visto, não é verdade, já que existem ações na defesa dos direitos animais violados por qualquer religião), é mais uma falácia lógica a argumentação nesse sentido, uma vez que dois errados não fazem um certo. Pela lógica, não faz sentido querer justificar um erro cometendo outro. Por exemplo, “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão” é uma falácia lógica.

ii) Analogia fraca

Trata-se do argumento de falácia analógica ou da falsa equivalência. Se dá quando um argumento analógico não é forte o suficiente para suportar adequadamente a conclusão. A falácia é produzida não pela forma, mas porque o argumento específico não satisfaz as condições de um argumento analógico forte.

Um argumento analógico deve ter três premissas e uma conclusão. As duas primeiras premissas tentam estabelecer a analogia, no sentido de que as coisas em questão são similares em alguns aspectos. A terceira premissa estabelece um aspecto adicional sobre uma das coisas e a conclusão afirma que, por serem as duas primeiras premissas iguais em alguns aspectos, também são semelhantes neste aspecto adicional.

Tem a seguinte estrutura: a) Premissa 1: X tem propriedades P, Q e R; b) Premissa 2: Y tem propriedades P, Q e R; c) Premissa 3: X também tem a propriedade Z; d) Conclusão: Y também deve ter a propriedade Z. Z e Y representam o que está em comparação. P, Q, R e Z representam propriedades ou qualidades. O uso das propriedades P, Q, e R é apenas para auxiliar na explicação, mas as variáveis comparadas poderiam ter muitas propriedades comuns.

A consistência de um argumento analógico depende de três requisitos. Caso não sejam preenchidos, tem-se um argumento analógico fraco. Se é suficientemente fraco, pode ser considerada uma falsa equivalência, ou seja, uma falácia. São os três requisitos: 1) Quanto mais propriedades tiverem em comum, melhor o argumento. Mas, mesmo no caso de haver muitas semelhanças em muitos aspectos, existe a possibilidade de que não sejam iguais em termos da propriedade em questão; 2) Quanto mais relevantes são as propriedades comuns para a propriedade em questão, mais forte será o argumento. Uma propriedade específica X é relevante para a propriedade Z se a presença ou ausência de P afeta a probabilidade de que Z está presente; 3) Deve se determinar se X e Y têm diferenças relevantes. Quanto mais relevantes são as diferenças, mais fraco será o argumento.

Na audiência pública realizada a respeito do sacrifício de animais em rituais religiosos, foi apresentado o seguinte argumento: não seria cabível reivindicar que o sangue representado na eucaristia fosse substituído por suco de uva em nome da modernidade da liturgia. Como o vinho é utilizado no exercício do culto, a prática não seria possível de ser realizada com a presença de crianças ante a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em nome da liberdade de culto e de crença, deve-se respeitar o uso do vinho nas liturgias que utilizam bebida alcoólica pública na presença de crianças.

Foi utilizada uma analogia fraca. Nenhum requisito é preenchido. O vinho, que tem origem vegetal, não tem nada em comum com animais sencientes; não há nada em comum entre beber vinho e degolar um animal que não foi insensibilizado. Há uma distância considerável entre beber um gole de vinho por alguns segundos e o abate de carneiros, bodes, galinhas, galos, animais sencientes, com sentimentos e consciência, que possuem sistema nervo e mantém relações significativas, sentem dor e prazer. Vinho não tem sistema nervoso. Não há semelhança em um menor de idade presenciar o padre beber um líquido por alguns segundos e um menor de idade assistir ao processo de abate de um animal senciente desesperado que quer viver e não quer morrer por uma religião que não é a sua. Há, portanto, uma falsa equivalência. A analogia seria forte se houvesse comparação entre sacrifícios de animais não-humanos sencientes praticados por religiões diferentes.

iii) No argumento da “desproporcionalidade em impedir todo e qualquer sacrifício religioso de animais, aniquilando o exercício do direito à liberdade de crença de determinados grupos, quando diariamente a população consome carnes de várias espécies” foi utilizada uma falsa analogia exagerada a qual visa a minimizar o ato, como se o fato de diariamente se subtrair a vida de milhares de seres sencientes de várias espécies servisse de atenuante ou de justificativa para se subtrair a vida de uma quantidade menor por grupo menor de pessoas. Tudo depende da perspectiva. Se tomarmos aquela do animal considerado como indivíduo, e se for considerado que tudo o que ele tem é a própria vida e o próprio corpo, que é o que ele tem de mais valioso para ele mesmo, para ele mesmo não é desproporcional sua vida ser preservada mesmo que milhares de outras sejam comidas.

“A par das imolações rituais, seguirão os abates de forma extensiva dos mesmos animais, já agora como fonte de proteína na cadeia alimentar. Não há como pressupor tenha o sacrifício religioso requintes de crueldade e que seja obsequiosa a extensiva matança comercial”. “Perversidade se tem em outras práticas, que, no entanto, são feitas, adotadas e tidas e havidas como legítimas”.”Existem situações nas quais o abate surge constitucionalmente admissível, como no estado de necessidade – para a autodefesa – ou para fins de alimentação”. “Como é que se realiza o abate comercial do boi, com extrema crueldade; e é um bate comercial para consumo”.

Na utilização do estado de necessidade, há a inversão do acidente que é uma falácia que consiste em tomar uma exceção como regra. O estado de necessidade é exceção à regra e tem requisitos próprios.

Nos outros argumentos ora analisados, para se justificar o sacrifício de animais, utilizou-se o argumento do “abate comercial do boi com extrema crueldade”, o qual representa uma falácia lógica, uma vez que dois errados não fazem um certo. Pela lógica, não faz sentido querer justificar um erro cometendo outro.

Também se identifica a analogia fraca, consistente num falso paralelismo ou falsa equivalência. Nesse caso, não houve comparação entre sacrifícios de religiões diferentes, mas entre atividades e práticas totalmente diferentes (abate religioso e abate para alimentação). A discrepância é tão acentuada que a Portaria n. 365/2021 que trata de manejo Pré-abate e Abate Humanitário, os métodos de insensibilização trazem regras totalmente diferentes quando se trata de abate religioso, dispensando de qualquer obrigatoriedade. Se houvesse equivalência, a portaria regularia da mesma forma ambos os abates. No abate para alimentação existem requisitos rígidos e obrigatórios a serem seguidos conforme critérios técnicos e científicos, notadamente quanto ao bem-estar do animal e sua insensibilização, quanto à questões sanitárias e de saúde humana. No abate religioso, como devem ser observados os dogmas e liturgias, a portaria nada obrigou, deixando tudo à decisão da autoridade religiosa. Não há fiscalização e controle. São mundos diversos e regimes jurídicos próprios, inclusive o tributário. O abate de animais não humanos para alimentação deve seguir um rigoroso conjunto de regras e está sujeito a controle e fiscalização. O sacrifício de animais em rituais religiosos segue sua liturgia e dogma, não havendo controle e fiscalização. Como constou da ADI, “as religiões de matriz africana são muito antigas e nunca mudaram os seus dogmas e preceitos”. Se é assim, não se utilizam qualquer método de insensibilização ou procedimentos para se evitar a dor e o sofrimento animal e garantir seu bem-estar, já que somente recentemente foram criados se considerarmos a escala histórica. Pela Portaria n. 365/2021 do Mapa não há obrigação de se observar o abate humanitário e indolor quando se trata de sacrifico religioso (art. 42). O art. 56 dispõe que a avaliação do serviço oficial de inspeção sobre os procedimentos humanitários de abate não abrange os aspectos específicos relacionados aos preceitos religiosos de abate.

Foi utilizada a distinção sem diferença. Trata-se de uma afirmação de que uma posição é diferente de outra baseado apenas na linguagem usada para descrever ambas as posições, mas na realidade são exatamente as mesmas.” Sacralização “ao invés de “sacrifício”. Para o animal que vai morrer de forma cruel, por uma religião que não é a dele, não há diferença nos dois termos, não é relevante o nome do ato, do eufemismo, que lhe retira tudo o que tem, sua própria vida, se se trata de”sacrifício”ou”sacralização”.

Ao se argumentar que “são rituais religiosos antigos, tradicionais” utilizou-se o apelo à tradição (argumentum ad antiquitatem). Ocorre quando se argumenta que algo é correto porque é antigo, é tradicional, porque sempre foi assim, porque é cultural. Se somente pela tradição o argumento fosse válido, seriam legítimas práticas que hoje consideramos bárbaras, como o apedrejamento de adúlteros, o sacrifício de bebês, a circuncisão feminina, a escravidão. Esse argumento é atrativo pois as pessoas amiúde preferem continuar a fazer o que sempre fizeram do que pensar no erro do que está sendo feito. Antiguidade pode não ter nada que ver com a qualidade ou veracidade de alguma coisa. Contudo, em alguns contextos a antiguidade tem influência e pertinência. Em todo caso, é possível argumentar não apenas por meio do apelo à tradição, mas com justificativa coerente e convincente de porquê deveríamos mantar a prática já adotada.

iii) O apelo à autoridade religiosa ou a livros sagrados é problemático. Há inúmeros textos sagrados e inúmeros personagens religiosos, com crenças conflitantes. Para uma religião determinado bode pode ser sagrado e para outra, o mesmo bode, pode ser escolhido para ser sacrificado. O bode que tudo assiste, no meio do conflito de interesses humanos, pensa que é dureza morrer pela fé dos outros e o que lhe resta é a sua própria fé para que a escolha daqueles que possuem o poder de decisão a respeito de sua vida e morte, penda para a sua vida.

Por outro lado, apelar para a crenças religiosas é sempre uma falácia quando usada para fundamentar uma conclusão na ausência de provas. Na ADI não havia prova técnica a respeito da existência ou não de crueldade no sacrifício de animais. A conclusão de que não há crueldade se deu com base no apelo à autoridade religiosa, nas normas religiosas e na tradição.

Contudo, em termos técnicos, considera-se maus tratos adotar métodos não aprovados por autoridade competente ou sem embasamento técnico-científico para o abate de animais (art. 5º, XVIII, da Resolução n. 1236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária – CFMV) e sob esse prisma, há crueldade no sacrifício de animais não-humanos (e também humanos).

iv) Por fim, destaca-se a seguinte falácia da citação fora de contexto: “O respeito à fé alheia ou a ausência de qualquer crença religiosa é primordial para a garantia de segurança de nossa própria fé, pois a verdadeira liberdade religiosa consagra a pluralidade, como bem lembrado por THOMAS MORE em sua grande obra, ao narrar que as religiões, na Utopia, variam não unicamente de uma província para outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade, estes adoram o Sol, aqueles divinizam a Lua ou outro qualquer planeta. Alguns veneram como Deus supremo um homem cuja glória e virtudes brilharam outrora de um vivo fulgor. O respeito a esse direito fundamental consagrado como garantia formalmente prevista pelas diversas constituições democráticas, lamentavelmente, ainda, não se transformou em uma realidade universal, mas se mantém no campo da utopia como um mandamento fundamental, conforme também lembrado por THOMAS MORE: os utopianos incluem no número de suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião”. Essa citação feita no contexto de uma ação que trata de sacrifício de animais em rituais religiosos induz a se pensar que Thomas Morus ao defender a liberdade de fé e a importância de se respeitar todos as religiões, que se apresentam em ampla diversidade, fosse a favor se se respeitar as respectivas liturgias e dogmas, quaisquer que fossem, inclusive os sacrifícios. Contudo, a Utopia é diametralmente oposta: “Os utopianos não imolam animais nos seus sacrifícios. Pensam que a clemência divina, que deu a vida aos seres animados para que vivam, não pode se alegrar com a visão do sangue e da morte. Queimam incenso e outros perfumes, e velas em grande número. Sabem muito bem que a natureza divina não tem necessidade dessas coisas nem das preces dos homens; mas gostam de render a Deus este culto de paz. Aliás, não sei como, sob a influência dessas luzes, desses perfumes, dessas cerimônias, o homem sente sua alma elevar-se e, com fervor, entrega-se à adoração do Todo Poderoso”.

REFERÊNCIAS

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 9ª ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 2ª ed. São Paulo: Landy Editora, 2005

ALVES, Alaôr Caffé. Lógica: pensamento formal e argumentação: elementos para o discurso jurídico. 4ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

LEVAI, Laerte F. Direitos dos animais: a teoria na prática. Curitiba: Appris, 2023.

MALTEZ, Rafael Tocantins. A evolução dos direitos humanos: dos direitos animais e dos direitos da natureza no contexto dos animais refugiados, do holocausto animal e do ecocídio. In PIOVESAN, Flávia; LAZARI, Rafael de; NISHIYAMA, Adolfo Mamoru (organizadores). Declaração Universal dos Direitos Humanos 70 anos. São Paulo: D’Plácido, 2018.

MALTEZ, Rafael Tocantins; CUSTÓDIO, Roberto Montanari. Análise da (in) constitucionalidade da Emenda Constitucional 96/2017 em face da vedação de tratamento cruel contra animais ( CF, art. 225, § 1º, VII). Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, [s. l], v. 8, p. 31-74, abr. 2020.

MALTEZ, Rafael Tocantins. Manual de direito ambiental. Brasília: Sê-lo, 2016.

MALTEZ, Rafael Tocantins. O animal não humano como sujeito de direito? In CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach (organizadores). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada: Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Volume I. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

WALTON, Douglas N. Lógica informal: manual de argumentação crítica. Tradução Ana Lúcia R. Franco, Carlos A. L. Salum. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

Especialista em Direito Público. Mestre em Direito do Consumidor. Doutor em Direito Ambiental. Juiz de Direito – Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor Universitário. Integrante do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental da Escola Paulista da Magistratura. Láurea do Mérito Docente pela dedicação e destacada atuação no exercício do Magistério Superior. ↑

Um outro exemplo pode ser destacado: Devemos aceitar argumento dos humanos de que os animais não-humanos são seres irracionais. Afinal, eles devem estar certos, já que o único animal racional é o ser humano. Não há outro animal racional. Quem afirma isso? O único animal racional. Por que não existem outros seres racionais? Porque só há um ser racional que pode dizer quem são os seres racionais. As premissas só suportam a conclusão se também assumirmos que a conclusão é verdadeira. O ponto de apoio desse argumento é a afirmação humana de que o único ser racional é ele próprio, ou seja, é o único que pode avaliar quem é racional ou não. Como se pode duvidar dos argumentos de um ser racional? ↑

A EC 96/96, que teve tramitação relâmpago, em efeito backlash do Congresso, para manutenção do status quo da cruel exploração de animais não-humanos, positivou o nonsense, já que, ignorando a regra que veda as práticas que que submetam os animais à crueldade, estabeleceu que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais”, que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro. Assim, a EC 96/2017 considera que não são cruéis práticas cruéis, a de fim permitir as atividades cruéis. Sem sentido. Por isso essa emenda é inconstitucional. A respeito, conferir o artigo “Análise da (in) constitucionalidade da Emenda Constitucional 96/2017 em face da vedação de tratamento cruel contra animais ( CF, art. 225, § 1º, VII)”. ↑

Consiste na substituição das evidências contrárias a um argumento por ataque pessoal. A raciocínio é enganoso porque o ataque é direcionado para a pessoa que faz a objeção e não à própria objeção. O valor e a veracidade da objeção são independentes da pessoa que a faz. Esse tipo de argumento é irrelevante, pois não contribui com o argumento em si, só afirma algo em relação a pessoa. A recurso a ataques pessoais pode revelar que não há nada a dizer contra o argumento em si e que a pessoa atacada apresenta argumentos de qualidade. Ex. Greta Thumberg não sabe nada de questões climáticas e deveria ir para a escola ou namorar. Ela não falou nada e ficou quietinha quando o coala de Queensland quebrou a patinha. ↑

Argumentum ad logicam: Trata-se da falácia falácia que consiste na afirmação de que uma declaração é falsa porque um erro logico foi cometido para “confirmar” essa afirmação. Apresenta a seguinte estrutura: 1) a falácia X foi cometida para argumentar a favor de afirmação Y; 2) Portanto, a afirmação Y é falsa. Trata-se de falácia porque a veracidade ou falsidade de uma afirmação não pode ser deduzida unicamente pela qualidade de raciocínio. A falácia é um erro de raciocínio, o que não implica necessariamente que a conclusão seja falsa, uma vez que é possível demonstrar seu acerto por outros meios e de outra forma. Uma coisa é o erro de raciocínio; outra coisa os fatos não serem verdadeiros. ↑

Ad hominem: em vez de se confrontar o argumento, faz-se ataque pessoal. Ad hominem abusivo: ataque pessoal, insulto. O raciocínio é enganoso porque o ataque é direcionado para a pessoa que argumentou e não ao próprio argumento. O valor e a veracidade do argumento não dependem da pessoa que o expõe. Essa falácia não contribui com a objeção em si, apenas afirma algo em relação à pessoa, a qual é irrelevante nos argumentos. Se um médico pesquisador apresenta argumento de que agrotóxico pode causar doenças e mutação genética e é atacado porque é bêbado ou porque não acredita em Deus, o argumento não deixa de ser válido simplesmente porque quem fez a afirmação apresenta essas características. Talvez a utilização do recurso a ataques pessoais revele que não há nada a se dizer contra o argumento e que a pessoa atacada apresenta argumentos de qualidade. ↑

AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL (65) Nº 5000325-94.2017.4.03.6135 / 25ª Vara Cível Federal de São Paulo. ↑

ACP n. 1000419-39.2018.8.26.0562 – TJSP. ↑

    Você viu?

    Ir para o topo