Duas constantes atravessam nossa história nos dois últimos séculos: a escravidão e seu legado nas relações entre os humanos, e a destruição nas relações dos humanos com a paisagem natural e com as outras espécies. O presente artigo atém-se a uma breve análise desse segundo traço estruturante da sociedade brasileira.
O discurso proferido em 1823 por José Bonifácio de Andrada e Silva assinala o ponto de partida de um processo que só viria desde então a se agravar. Após 200 anos de destruição, três evidências se acumulam: 1- após 50 anos (1970-2020) de destruição e degradação de mais de 2 milhões de km2 dos biomas nacionais, a sociedade brasileira avança na direção de uma catástrofe ambiental sem precedentes em nossa história; 2- esse avanço se acelerou no último decênio; e 3- múltiplos indicadores permitem afirmar que já estamos nos estágios iniciais desse colapso.
Embora padeça das limitações de todo escorço histórico radical, a proposta de um sobrevoo da sociedade brasileira em 200 anos e em três escalas maiores (soberania, 1822, modernidade, 1922, e crise, 2022) é bem-vinda. O que se perde em inteligência das diversas situações históricas concretas ganha-se em percepção das constantes que definem essa trajetória. Desde bem antes de 1822, vinham se fixando os dois traços estruturais que formam nossa sociedade: a escravidão nas relações entre os humanos e a destruição nas relações dos humanos com a paisagem natural e com as outras espécies. Essas duas constantes outorgam à sociedade brasileira três recordes globais:
(1) O Brasil foi a colônia, e depois o país, que mais indivíduos escravizou em toda a história universal da escravidão. Segundo dados do slavesvoyages.org, o Caribe e a América do Sul receberam 95% dos escravos que chegaram às Américas, contra menos de 4% que tiveram a América do Norte por destino. A documentação disponível mostra 9.371.001 indivíduos traficados, mas essa documentação corresponde a apenas 88,5% das embarcações estimadas. E dos mais de 10 milhões desses indivíduos embarcados em navios negreiros na África, 5,8 milhões foram vítimas de traficantes brasileiros e portugueses e tiveram o Brasil por destino.2 Das 9.930.478 de pessoas registradas no Censo de 1872, 1.510.806 ainda estava em condição de escravidão (22 anos após a proibição do tráfico de escravos) e 58% se declaravam descendentes de escravos (Souza, 2013). Além desse recorde histórico mundial, o Brasil ostenta outro: foi o último país do mundo a abolir “oficialmente” a escravatura (Motta, 1994; Florentino, 2009, p.28-33). Esse dois recordes criaram e explicam o essencial do racismo e das desigualdades socioeconômicas abissais que nos consomem e que fazem do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.
(2) O terceiro recorde diz respeito às nossas relações com a biosfera. Nenhum país ou território do planeta em nenhum momento da história humana destruiu de modo tão fulminante a natureza como o fizeram os ditadores a partir de 1970 e, depois deles, os governos civis. É numa breve análise desse terceiro recorde que se centra este artigo. Baste, por enquanto, reafirmar que nenhum país do mundo rivaliza com o Brasil em termos de intensidade (relação escala/tempo) de desmatamento.
Todos os móveis e impasses das classes ou grupos sociais e todos os conflitos maiores que determinam a dinâmica histórica do Brasil, antes e depois da independência, bem como todas as formas de sensibilidade e de entender e reagir a esses conflitos estão dados por esses dois traços estruturantes e, por assim dizer, “naturalizados”: a escravidão e a guerra relâmpago de extermínio da natureza. Uma palavra preliminar sobre a escravidão. Durante quase quatro séculos de nossa história, a sociedade criada pelo colonizador, e depois pelos governantes locais, compôs-se em sua imensa maioria de escravos e de escravistas ou beneficiários da escravidão. A escravidão está na raiz da falta de senso de compartilhamento entre os membros de nossa sociedade. Os que estão no topo e na base da pirâmide da propriedade e da renda não se percebem como parte de uma mesma história e de um mesmo destino. O Brasil é a mais ampla realização histórica do conceito aristotélico do escravo “por natureza”. Ao dissertar, na Ética a Nicômaco (1161a-b), sobre as constituições perversas e as tiranias, Aristóteles (s. d.) parece descrever um país que viria a existir mais de dois mil anos depois, ao menos no modo fundamental de sentir do macho-branco-rico que se considera, e é considerado pela polícia e demais instituições,3 o único sujeito de direito:
Nas formas perversas de formações sociais […], onde não há nada em comum entre governante e governado, não há tampouco amizade, pois não há nem mesmo justiça. É como na relação de um artesão com sua ferramenta, ou da alma com o corpo (1161b), de um mestre com seu escravo: todos esses instrumentos podem ser objetos de cuidado de parte dos que os utilizam, mas não há amizade, nem justiça em relação às coisas inanimadas. Tampouco em relação a um cavalo ou a um boi, ou a um escravo, como escravo. Neste último caso, as duas partes nada têm, de fato, em comum: o escravo é uma ferramenta animada e a ferramenta um escravo inanimado.
A escravidão e a destruição são, em suma, nessa história estrutural do Brasil, os dois “fatos sociais totais”, vale dizer, os dois fatos que “colocam em movimento em alguns casos a totalidade da sociedade e de suas instituições” (Mauss, 1925).
A destruição: do primeiro ao segundo centenários
Para começar, valeria a pena lembrar que 2022 marca o aniversário de 20 anos da edição de um livro marco na história do primeiro centenário desse balanço: Um sopro de destruição, de José Augusto Pádua (2002). Tratar desse primeiro centenário no espaço de um breve artigo equivaleria a fazer uma resenha desse estudo pioneiro, que não teve, salvo melhor juízo, desdobramentos maiores nos últimos 20 anos. É obrigatório relembrar, no contexto desse escorço histórico de 200 anos, a profecia certeira de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), proferida em 1823, e que Pádua coloca justamente em epígrafe de seu livro seminal:
A Natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da Natureza. […] Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor, da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia.
Essa previsão motiva o subtítulo do presente artigo: passados os dois séculos antevistos por José Bonifácio e, sobretudo, os quatro anos de um governo civil-militar avassalador, que Brasil ainda haverá no terceiro centenário? Proponho-me aqui uma questão muito mais relevante: o que ainda restará do país já neste terceiro decênio do século XXI? Não é dado saber a que distância precisa ainda estamos dos “páramos e desertos áridos da Líbia”. O que sabemos é que o horizonte de tempo em questão é agora de decênios, pois temos avançado nessa direção no segundo centenário, e sobretudo nos últimos 50 anos, muito mais aceleradamente do que entre 1823 e 1922. A diferença entre o primeiro centenário da independência e o segundo é, basicamente, o instrumento: no primeiro, o machado e os incêndios locais; no segundo, os incêndios imensos e o maquinário industrial de extermínio, da motosserra ao trator, ao correntão e aos aviões que, tal como no Vietnã, lançam agente laranja e outros organoclorados desfolhantes sobre o organismo vivo da floresta.4
Em outras palavras, o que distingue o passado do presente é a escala e a velocidade incomparavelmente maior da destruição. Foram necessários mais de dois séculos para devastar quase por completo a Mata Atlântica (originalmente 1,36 milhão de km2), mas apenas 50 anos (1970-2020) para remover, degradar ou desfigurar completamente mais de 2 milhões e meio de km2 de vegetação natural no Brasil: cerca de 800 mil km2 da floresta amazônica brasileira foram totalmente suprimidos desde 1970; outros tantos foram degradados (337.427 km2 apenas entre 1992 e 2014) (Matricardi et al., 2020, p.1378-82). A degradação, menos percebida, afeta profundamente a habilidade da floresta de funcionar como um ecossistema. Como ressalta Antônio Donato Nobre: “Falar só de desmatamento quando falamos da destruição da Amazônia é o que eu chamo de a grande mentira verde. A perda de floresta amazônica até hoje é muito maior do que os quase 20% de desmatamento dos quais se fala nos meios de comunicação” (apud Costa, 2020). No Cerrado, 45,6% das três paisagens que compõem seus 2 milhões de km2 – campos, savanas e florestas – foram desmatadas ou profundamente antropizadas, sendo 265 mil km2 substituídos por monoculturas e pastagens entre 1985 e 2020, enquanto muito dos 54,4% restantes estão muito fragmentados e degradados.5 Além disso, a Caatinga perdeu 150 mil km2 de vegetação primária entre 1985 e 2020, uma redução de 26,36% no período, sendo 112 mil km2 substituídos pela agropecuária, e em algumas de suas áreas o processo de desertificação está em franca aceleração.6
A supressão da Mata Atlântica, o caso de São Paulo
O título do livro de José Augusto Pádua – Um sopro de destruição – refere-se a um discurso de Joaquim Nabuco, de 1883, quando a Mata Atlântica, sobretudo no Nordeste, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, já ostentava marcas brutais dessa destruição. O caso do estado de São Paulo, de desmatamento relativamente tardio, foi bem estudado (Victor et al., 2005). Até o início do século XIX, 81,8% do território correspondente aos limites atuais do estado (248.209 km2) eram recobertos por florestas. Segundo Millet (1946, apud Victor et al., 2005, p.12), em meados do século XIX, “estima-se que se sacrificara 510.000 hectares de matas [5.100 km2], com maior concentração naturalmente no Vale do Paraíba”. Em 1886, a área desmatada crescera para 28 mil km2, de modo que a área de cobertura florestal caíra de 81,8% para 70,5%. Em 1907, São Paulo perdera 59.600 km2 e as florestas cobriam então apenas 58% da área do Estado. Vejamos o que ocorre nos 13 anos sucessivos em que o “Modernismo” é gestado nos salões dos fazendeiros paulistas (Victor et al., 2005, p.22):
Neste intervalo de quase 13 anos, o Estado vê-se despojado de cerca de 3.285.000 hectares de floresta [32.850 km2], de tal forma que um corte vertical efetuado em 1920 irá revelar um percentual de cobertura arbórea de cerca de 45%, ou seja, 11.200.000 hectares [112.000 km2]. É a floresta latifoliada tropical que está sendo inapelavelmente arrasada.
Em 15 de novembro de 1923, em sua famosa carta a Tarsila do Amaral (2003, p.78-9), então em Paris, Mario de Andrade exorta-a a voltar ao Brasil: “Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam”. O escritor decerto não se dava conta de que cerca de metade de sua “mata virgem” por então já se fora, e que nos 22 anos de vida que ainda lhe restavam muito mais dela desapareceria. Os três decênios sucessivos mostram, efetivamente, uma imensa aceleração nesse processo de perda da Mata Atlântica, pois se até 1920 o Estado ainda conservara quase metade de sua área de cobertura vegetal nativa (45%), apenas 32 anos depois, em 1952, a cobertura florestal fora reduzida a 18,2% do território paulista e 20 anos atrás, a cerca de 3%.
Segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica 2019-2020, restam hoje apenas 12,4% de remanescentes de vegetação nativa acima de três hectares de todo o bioma nos 17 estados brasileiros da Mata Atlântica. No século XXI (2000-2020) foram suprimidos mais 485.311 hectares (4.853 km2) de vegetação nativa, o que torna sempre maiores os riscos de colapso dos serviços ecossistêmicos – entre os quais a disponibilidade hídrica – de que dependem 70% da população brasileira que vive nesse território.7 A perda de espécies é outra consequência direta desse processo de extermínio da floresta. Um recente inventário das espécies de aves, por exemplo, realizado à luz das últimas versões da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas (IUCN), conclui que na Mata Atlântica (Develey; Phalan, 2021):
[…] entre cinco e sete espécies de pássaros foram provavelmente levadas à extinção na natureza neste bioma nas últimas décadas, além de outras duas espécies que ocorreram em outras partes do Brasil. Essas extinções foram o resultado da perda de habitat em combinação com outras ameaças. Outras nove espécies de aves da Mata Atlântica estão criticamente ameaçadas, além de seis de outras partes do Brasil.
No mundo todo, espécies de plantas dotadas de sementes (espermatófitas) têm sido extintas desde 1900 à taxa média de cerca de três espécies por ano, uma taxa até 500 vezes mais alta do que a taxa de base (extinções apenas por forças naturais) (Ledford, 2019). Mas a Mata Atlântica, em sua porção meridional, tem perdido entre 21 e 30 espécies dessa categoria de plantas por ano desde 1900. Ela está, junto com o oeste da Austrália e a Índia, entre as regiões do mundo que mais perderam espécies dessa categoria, sendo superada apenas pelo Havaí e pela África do Sul. Embora mais tardio, o caráter industrial do desmatamento do Sudeste no segundo século da independência gerou impactos muito maiores sobre a biodiversidade do que no Nordeste. Por ser muito mais fulminante, ele roubou às espécies a variável mais preciosa para a sua sobrevivência: o tempo requerido para se adaptar.
O último cinquentenário: a guerra de aniquilação
Uma “Grande Aceleração” em todos os parâmetros de interferência antrópica no sistema Terra tem início em meados do século XX, como demonstrado desde 2004 pelo International Biosphere-Geosphere Programme (IBGP) e depois por Will Steffen e colegas (Steffen et al., 2015; McNeil; Engelke, 2014). No Brasil, a grande aceleração da destruição chega pelas mãos da ditadura instaurada pelo golpe de estado de 1964, a página mais portadora de crimes contra a humanidade e contra a natureza no arco histórico aqui considerado. Em 1967, a descoberta das jazidas de ferro em Carajás, no SE do Pará, anuncia o que estava por vir. Apenas três anos depois, tendo já neutralizado por exílios, prisões, torturas e assassinatos a oposição democrática, os militares voltam suas armas contra os grandes biomas do Brasil central e setentrional: o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia, bem como contra as comunidades indígenas, ribeirinhas e extrativistas. Em 9 de outubro de 1970, Emílio Garrastazu Médici descerrava na Amazônia um placa supostamente autocomemorativa, em que se lia: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”. Com a Transamazônica, a abertura de novas frentes de mineração e a colonização predatória, a ditadura deflagra nos anos 1970 o ecocídio que está agora redundando no suicídio ecológico, e consequentemente socioeconômico, do Brasil.
Ricardo Cardim (2020) analisou e recolheu em um acervo importante a propaganda textual e visual de apoio à destruição, promovida pela ditadura. Ela é construída a partir da retórica militar de uma floresta em vias de ser “vencida”. Nessa propaganda de guerra, a Amazônia, uma vez destruída, oferecia fantásticas “oportunidades” de negócios. Em novembro de 1972, a Superintendência da Amazônia (Sudam), com o patrocínio do Ministério do Interior e do Banco da Amazônia S.A., publica a revista Isto é Amazônia. Um de seus anúncios bem resumia o ideário programático da aliança entre o regime militar e o grande capital:
Chega de lendas. Vamos faturar. Muitas pessoas estão sendo capazes, hoje, de tirar proveito das riquezas da Amazônia. Com o aplauso e o incentivo da SUDAM. O Brasil está investindo na Amazônia e oferecendo lucros para quem quiser participar desse empreendimento. A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro. […] Há um tesouro à sua espera. Aproveite. Fature.
O saldo dessa aliança entre ditadores e o grande capital é razoavelmente conhecido. Além dos riquíssimos dossiês fotográficos de autoria de Sebastião Salgado, Pedro Martinelli (2000), Araquém Alcântara,8 Carlos Carvalho,9 Rogério Assis (Araújo, 2018) e de outros grandes fotógrafos da Amazônia, ele foi bem analisado, seja por Rubens Valente (2017) em 2017, seja no capítulo “Violações dos direitos humanos dos povos indígenas” do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). O levantamento pioneiro da CNV foi capaz de documentar uma pequena parte das atrocidades cometidas, ressaltando que o número real de indígenas mortos no período: “Deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (Brasil; Farias, 2014). Como bem resumido por Kátia Brasil e Elaíze Farias (2014),
No período investigado [1964-1985], ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Muitos sofreram tentativas de extermínio. […] Entre os índios mortos estão, em maior número 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA).
No que se refere à destruição do bioma amazônico, vale mencionar o extermínio da fauna amazônica. Ricardo Cardim (2020) cita uma passagem da revista Realidade, de 1971:
A grande caçada coletiva de felinos começou em 1965, quando umas três dezenas de firmas de pele profissionalizaram como caçadores boa parte dos homens do baixo Xingu, Tocantins e Tapajós. Em 1970, somando peles exportadas, perdidas na caça e no contrabando, calcula-se que foram mortas 30 mil onças e 370 mil gatos menores. […] 1970 foi um ano ruim para os vendedores de peles: mataram apenas 500 mil jacarés.
Embora não tão precisas quanto as mensurações realizadas desde 1988 pelos satélites do Inpe, as estimativas de aniquilação da floresta amazônica pelos tiranos mostram números superiores aos ocorridos em qualquer momento de sua história, incluídos os dias de hoje: cerca de 21 mil km2 por ano na média entre final de 1970 e 1987, resultando na perda total de 355.430 km2 nesse período de apenas 17 anos, ou seja, quase a metade de toda a perda em 50 anos (1970-2020). Na década 1978-1987, destroem-se 211.300 km2 de florestas nativas, uma área maior que a do Estado do Paraná (199.315 km2).
Apenas em três anos – 1988, 1995 e 2004 – o desmatamento da Amazônia exibiu números iguais ou superiores à média anual de 21 mil km2 do perío- do 1970-1987, de modo que os militares permanecem os maiores culpados pela destruição de quase 10% da parte brasileira da maior floresta tropical do mundo.
Arrombada a floresta e terminada a ditadura, os governos civis sucessivos continuaram a destruição. Em 1985, segundo o Projeto MapBiomas,10 o Brasil como um todo ainda possuía magníficos 4.812.286 km2 de formações florestais. Em 2017, essas formações se haviam reduzido a 4.256.883 km2, uma perda por corte raso de floresta, portanto, de 555,4 mil km2. Já não eram mais necessárias as ridículas fantasmagorias geopolíticas, “integrar para não entregar”, tão caras às mentes fardadas. O objetivo agora era desintegrar a floresta para integrar Amazônia e Cerrado no circuito de commodities do sistema alimentar globalizado que se vinha expandindo a partir dos anos 1980. A soja, por certo, mas sobretudo a pecuária: dos 555,4 mil km2 desmatados entre 1985 e 2017, 462,7 mil km2 o foram para dar lugar às pastagens, grande parte delas, hoje, muito degradadas. Nada menos que 84% da área total de desmatamento nesse período converteu-se em pastagens para dar lugar a um rebanho bovino que é hoje maior que a população humana no país, que duplica no Centro-Oeste e decuplica na Amazônia entre 1985 e 2016. Mantêm-se, assim, altíssimas, e por força sobretudo da abertura de pastagens, as taxas de desmatamento, de modo que nunca desde 1986, com exceção dos anos 2009-2018, o desmatamento da Amazônia foi inferior a 10 mil km2 nos 12 meses entre cada agosto e cada julho do ano sucessivo. Observa-se um decréscimo encorajador do desmatamento amazônico entre 2005 e 2012. Em 2010, com a regulamentação da Política Nacional sobre a Mudança do Clima (Lei n.12.187/2009), o Brasil estabelecia uma primeira meta de redução de emissões de gases de efeito estufa, o que supunha, tal como inscrito na lei, reduzir o desmatamento na Amazônia em 80% em 2020 comparado com a média do período 1996-2005 (17.684 km2).
A trégua ou, melhor dizendo, a guerra de baixa intensidade do agronegócio contra a floresta e contra seus povos durou pouco. As hostilidades recrudescem a partir da capitulação de Dilma Rousseff diante dos ruralistas encastelados no Congresso Nacional. Sua aliança com Kátia Abreu (presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e, a partir de 2014, ministra da Agricultura) e com Aldo Rebelo, relator do projeto de reformulação do Código Florestal (2010) consagra-se em lei em 2012.11 O novo código indultava as multas por desmatamento ilegal em áreas de preservação e reserva, aplicadas até 22 de julho de 2008 e significava uma renúncia aos cofres públicos de cerca de R$ 10 bilhões, como protestava então, em vão, a ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira (Bresciani, 2010). Em 2014, a não adesão do Brasil à “Declaração de Nova York Sobre as Florestas”, no qual mais de 200 signatários propunham-se a diminuir pela metade o desmatamento global até 2020 e erradicá-lo até 2030, dava mais um sinal do abandono final da Amazônia ao agronegócio. O desmatamento, como previsto, voltara a crescer já a partir de 2013. Nos seis anos entre agosto de 2012 e julho de 2018, a perda acumulada por corte raso da floresta amazônica brasileira atingiu 39.576 km2. Uma área de floresta amazônica quase igual à do Estado do Rio de Janeiro (43.750 km2) virara fumaça num piscar de olhos! Algo muitíssimo pior, no entanto, estava por vir. Enquanto a média anual de desmatamento nesses seis anos foi de 6.596 km2, ele superaria já no primeiro ano do governo Bolsonaro, 10 mil km2, atingindo 13.235 km2 entre agosto de 2020 e julho de 2021. Longe de ser o resultado de uma capitulação diante do agronegócio, a destruição da floresta ocupa o centro da agenda de Bolsonaro, razão pela qual a perda florestal atinge 20.980 km2 entre agosto de 2018 e julho de 2020. Mantido esse ritmo de devastação de mais de 10 mil km2 por ano, comemoraremos em 2022 uma perda da floresta amazônica, tão somente desde 2010, de uma área equivalente à do Estado de Santa Catarina (95.346 km2). Ela será possivelmente maior porque os últimos cinco anos (2017-2021) são marcados por crescimentos sucessivos, culminando com um aumento de 7,13% do desmatamento amazônico em 2020 em relação a 2019. Tudo leva a crer que em 2022 a trajetória ascensional do desmatamento continuará, inclusive porque a expectativa de que Bolsonaro não seja reeleito deve provocar no agronegócio algum temor de ressurgimento de um mínimo de governança e, portanto, uma corrida desabalada ao desmatamento numa típica tática do “fato consumado”. Algo semelhante ocorreu, de resto, ao longo do primeiro ano do governo Lula.
Aumento do fogo, diminuição da água e colapso da biodiversidade
Desmatamento, degradação florestal e incêndios são processos complementares e sinérgicos de destruição da floresta e de sua substituição por monoculturas e pastagens (Barlow et al., 2019, p.319-21). O aumento da intensidade, frequência e abrangência geográfica de incêndios no Brasil resulta da ação do agronegócio, a exemplo do chamado “Dia do Fogo”, uma iniciativa coordenada de fazendeiros em Novo Progresso (PA), que provocou em 10 de agosto de 2019, segundo o Inpe, um súbito salto de 300% dos focos de calor. Não se trata de um episódio isolado. Os incêndios ocorridos em 2020 e 2021 no Pantanal, por exemplo, foram igualmente coordenados por fazendeiros (Ribeiro, 2020). Como bem afirma o Instituto Socioambiental, o “Dia do Fogo”, desde então, nunca acabou (Aragão, 2021). Mas ao lado dessa causa direta e principal, dois fatores sistêmicos tornam a floresta mais vulnerável ao fogo e agem como alças de retroalimentação da destruição e degradação do tecido florestal: as secas crescentes de 2005, 2010 e 2015/16 na Amazônia (Barkhrdarian et al., 2019; Jimenez et al., 2015: A Cloud Cover Perspective) e o aquecimento global. Segundo o Projeto MapBiomas Fogo, entre 1985 e 2020, o fogo já impactou, pelo menos uma vez, 1.672.142 km2, ou quase 1/5 (19,6%) do território brasileiro, e a cada ano, nesses 36 anos, ele destruiu em média uma área maior que a da Inglaterra: 150.957 km2. O Cerrado e a Amazônia representam 85% da área queimada no período. Eis, nesse quadro assombroso, o mais acabrunhante: quase dois terços da área queimada nesses três decênios e meio, mais precisamente 65%, eram recobertos por vegetação nativa. Ane Alencar, coordenadora do Map- Biomas Fogo, sublinha uma distinção fundamental no que se refere aos diferentes impactos dos incêndios na Amazônia e no Cerrado: “A Amazônia não é um bioma do qual o fogo faz parte da dinâmica natural do ecossistema, diferentemente do Cerrado onde o fogo natural faz parte de sua dinâmica evolutiva”.12 Carlos Nobre lembra que “quando a floresta não é perturbada, somente 4% da radicação solar chega na superfície. Então, ela é muito úmida e o fogo não se propaga. Nas áreas degradadas, a radiação solar penetra e seca o chão da floresta. Quando o fogo chega, ele anda por quilômetros pelo chão da floresta degradada e inúmeras arvores morrem” (Betim, 2021). Segundo Bernardo Flores, os incêndios na floresta amazônica destroem 60% a 90% das árvores. Seus impactos sobre a capacidade de regeneração da floresta são crescentemente irreversíveis, sobretudo nas florestas inundáveis, chamadas florestas de igapó ou de igarapé, ainda menos resilientes do que as florestas de terra firme. Como observa Flores (Arantes, 2021; Flores; Holgren, 2021):
Essa degradação da floresta, ao longo do chamado “arco do desmatamento”, continua ocorrendo e constitui algo muito preocupante.
Mas verificamos que, além dela, está acontecendo também um processo de savanização13 no coração da Amazônia, bem longe da fronteira agrícola. […] Nossa pesquisa mostrou que as savanas nativas estão em expansão e podem se expandir ainda mais na Amazônia. Não ao longo do “arco do desmatamento”, onde as gramíneas exóticas estão se espalhando, mas sim a partir de manchas de savana de areia branca disseminadas por toda a bacia, em regiões remotas.
Segundo o Projeto MapBiomas, apenas no século XXI (2000-2019), 17,5% da área do país já foram vitimadas por incêndios. O Pantanal teve 57% de sua área total queimada; o Cerrado, 41%; e as áreas supostamente protegidas por lei, 18%. A Amazônia como um todo teve 28,7% de sua área total destruída ou degradada pelo fogo dos criminosos impunes, que, encorajados por Bolsonaro, invadem cada vez mais os territórios indígenas.
Um dos efeitos do desmatamento, do aumento das superfícies perturbadas e destruídas pelo fogo e das secas crescentes que se vêm abatendo sobre a Amazônia é a diminuição das superfícies cobertas de água. Como mostram Carlos Souza Jr. e colegas, “há uma tendência geral de queda nas águas superficiais no bioma Amazônia e nas escalas das bacias hidrográficas, sugerindo uma conexão potencial com mais recentes secas extremas na década de 2010”.14 O Projeto MapBiomas Água, coordenado por Carlos Souza Jr. (Imazon) e pelo WWF-Brasil, mostrou uma redução de 15,7% na superfície de água no Brasil, que caiu de 197 mil km2 em 1991 para 166 mil km2 em 2020. Para se ter uma ideia do que significa essa perda em 30 anos, ela “equivale a uma vez e meia a superfície de água de toda a região Nordeste em 2020”.15 Todos os biomas brasileiros tiveram perda de superfície de água. A Amazônia perdeu 10,4% e a Caatinga, 17,5%. São perdas imensas, mas que se apequenam diante dos números terminais do Pantanal: 68% de perda de sua superfície coberta de água em apenas 30 anos!
São muitas, as consequências já percebidas desses vetores de destruição do Brasil. A porção leste, sul e sudeste da floresta amazônica já está morrendo e largas extensões da floresta estão no limite de sua resiliência, pois as condições de umidade e integridade que permitem sua existência estão cada vez mais precárias (Lovejoy; Nobre, 2018; 2019; Gatti et al., 2021). Mantida a atual trajetória, neste segundo quarto do século pode ocorrer um gigantesco dieback florestal, uma perda irreversível de até 70% da floresta amazônica.16 Perdas catastróficas de biodiversidade estão ocorrendo sob nossos olhos. Em 2014, segundo o IBGE, o país (considerado em 1988 o mais exuberante de espécies endêmicas entre os 17 países megadiversos do planeta17) contabilizava 3.299 espécies em risco de extinção, ou 19,8% do total de 16.645 espécies avaliadas (Campos, 2020). Resultados preliminares mostram que os incêndios de cerca de 40 mil km2, provocados por fazendeiros, apenas no Pantanal e apenas entre janeiro e novembro de 2020, causaram a morte imediata por calcinação de 17 milhões de vertebrados (Ito, 2021). As mortes sucessivas da fauna por perda de hábitat não foram ainda estimadas, mas não devem ser menores. “Nas comunidades tropicais, 94% das plantas são polinizadas por animais”18 e todos os vetores de destruição acima mencionados, aos quais se devem acrescentar a poluição atmosférica e o uso crescente de agrotóxicos pelo agronegócio, estão produzindo um dramático declínio dos polinizadores no Brasil. Agindo sobre esses fatores, as mudanças climáticas devem causar, ao longo do século, no Brasil, “declínio de polinizadores agrícolas em aproximadamente 90% dos municípios”.
Conclusão
À questão formulada no início deste texto sobre o que ainda restará do Brasil após 2022 e ao longo deste terceiro decênio do século XXI, pode-se avançar uma reposta na forma de duas certezas: 1. o Brasil avança aceleradamente em uma trajetória de perda irreversível do que resta de suas florestas e demais coberturas vegetais; 2. a habitabilidade do Brasil, nomeadamente seu clima, chuvas, salubridade, segurança alimentar e hídrica, depende em larga medida de sua capacidade de cessar imediatamente a destruição e de passar à restauração do ainda restaurável. A destruição em curso do que ainda resta desses quatro biomas riquíssimos de biodiversidade que são a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e a Caatinga afetará, na realidade, o planeta como um todo. A perda da Amazônia é por certo a que mais repercussões terá em escala global. “A Amazônia é fundamental para o equilíbrio ecológico do planeta”, reafirma Carlos Nobre (2020). De fato, a maior floresta tropical do mundo constitui um elemento crítico do sistema Terra e suas interações com outros elementos críticos desse sistema são de imensa importância para o equilíbrio do sistema climático global (Lenton et al., 2008; Steffen et al., 2018). O Mediterrâneo, os Estados Unidos e a região Norte-Central do Brasil sofrerão um aquecimento médio de 2 oC acima do período industrial até 2030, ou seja, antes da média global (Seneviratne et al., 2016). E isso, no Brasil, em qualquer cenário de emissões de gases de efeito estufa, como mostram Carlos A. Nobre, José A. Marengo e Wagner R. Soares. autores de um livro de referência sobre o clima futuro em nosso país.19
O decênio que se abre com o Bicentenário da Independência será decisivo. Os pilares biológicos da vida no Brasil estão dia a dia mais vulneráveis e têm altíssima probabilidade de ruir se o Brasil se condenar a mais quatro anos de governo civil-militar. Mas mesmo num cenário livre de Bolsonaro, reverter o processo de colapso socioambiental em curso requererá uma inflexão radical na trajetória pós-2022, infelizmente não proposta ainda por nenhum partido político brasileiro. Cabe à sociedade impor ao sistema político, ao agronegócio e ao pensamento econômico dominante a percepção de que a economia é um subsistema da ecologia e que essa lhe imporá doravante seus limites. Quanto mais cedo o reconhecermos, menos traumático será o decrescimento futuro a que já estamos, de qualquer modo, condenados. Sem essa inflexão de trajetória, sem um esforço de guerra para restaurar as florestas e demais biomas degradados, diminuir as emissões de gases de efeito estufa, reprimir o “agrocrime” e diminuir corajosamente as desigualdades sociais, teremos, numa estimativa muito conservadora, não mais de um quarto de século, na realidade talvez nem dez anos, de uma sociedade ainda minimamente organizada. Carlos Nobre, José Marengo e Wagner Soares abrem o Prefácio de seu já citado Climate Change Risks in Brazil com a seguinte afirmação: “Em um cenário de altas emissões de gases de efeito estufa, o país tem alta probabilidade (mais de 70%) de sofrer um aumento de temperatura superior a 4 oC antes do final do século”. Já hoje, durante os meses de estiagem, a Amazônia e o Cerrado estão 3 oC e 4 oC mais quentes, respectivamente, que nos anos 1960 (Zorzetto, 2021, p.52-7). Com níveis de aquecimento acima de 2 oC na média anual brasileira, previsto para algum momento em torno de 2030, alças de retroalimentação do aquecimento e de perda de biodiversidade poderão elevar ainda mais as temperaturas médias do país, provocar secas muito mais intensas e picos de calor recorrentemente acima da capacidade de regulação térmica dos organismos. O Brasil mostrará então aos jovens de hoje feições socioambientais bem mais lúgubres do que as previstas por José Bonifácio de Andrada e Silva dois séculos atrás.
Fonte: Ecodebate