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ESTUDO

O que está acontecendo na Antártica e por que isso importa para o Brasil?

O aumento da salinidade e outras descobertas científicas no extremo sul planetário alertam para riscos crescentes, da biodiversidade ao turismo

31 de julho de 2025
Aldem Bourscheit
7 min. de leitura
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Foto: Christopher Michel / Creative Commons

Cientistas observaram que desde 2016 as águas superficiais do Oceano Antártico estão mais salgadas, sinalizando que o sistema climático do sul do planeta estaria mudando drasticamente. Essa alteração histórica pode afetar a vida selvagem, o turismo e as pescarias.

O fenômeno ocorre com a transferência de calor de águas profundas para a superfície. Isso acontece porque, ao se tornarem mais salgadas, as águas superficiais ficam mais densas, afundam e se misturam com áreas mais quentes do oceano.

“Isso gera um ciclo que traz mais calor para a superfície e derrete o gelo marinho por baixo”, explicou Alessandro Silvano, pesquisador em Oceanografia Física na Universidade de Southampton (Reino Unido).

Silvano é um dos autores de um estudo que identificou essas mudanças no oceano e nas geleiras austrais, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

“O artigo revela o quão pouco ainda compreendemos sobre o funcionamento de um ecossistema tão importante como a Antártica”, avaliou Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano.

Um dos efeitos mais visíveis dessas alterações é a maior formação de icebergs, alertou Edward Doddridge, pós-doutor pelo MIT (sigla em Inglês do Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e pesquisador na Universidade da Tasmânia (Austrália).

“Aproximadamente o dobro de icebergs tem se formado nos verões”, ressaltou o cientista, coautor de um artigo veiculado na revista PNAS Nexus quanto aos efeitos colaterais dos meses mais quentes do ano sobre as geleiras do extremo sul.

A linha azul mostra a retração do gelo marinho antártico de 1979 a 2025, em milhões de km². A linha vermelha indica a perda de massa de gelo, em gigatoneladas, no mesmo prazo. Gráfico gerado por ((o))eco com apoio de IA e baseado em dados do National Snow and Ice Data Center (NSIDC), Copernicus Climate Change Service (C3S), NASA e consórcio IMBIE.

Impactos na fauna marinha

A acelerada perda do gelo continental, aquele depositado sobre camadas de terra, contribui para elevar o nível dos oceanos, mas também pode atingir em cheio espécies cuja vida depende desse imenso sistema natural.

Animais como a foca-caranguejeira (Lobodon carcinophagus) precisam de plataformas estáveis de gelo para parir e cuidar dos filhotes. Pinguins e outras aves marinhas se abrigam em ambientes similares para trocar as penas.

“Essas espécies evitam a água gelada enquanto crescem novas penas, ou correm o risco de morrer de hipotermia”, explica Doddridge. “A menor cobertura de gelo marinho no verão torna mais difícil encontrar grandes plataformas seguras”.

Não por acaso, colônias de pinguim-imperador (Aptenodytes forsteri) já tiveram quebras catastróficas quando o gelo derreteu antes que os filhotes pudessem nadar. Em 2023, ((o))eco noticiou que 10 mil crias da espécie morreram ao cair nas águas congelantes.

Conexões tropicais

A reportagem apurou que vários animais encontrados no litoral brasileiro têm ligação com a Antártica, seja por rotas migratórias ou pela influência de correntes oceânicas.

A lista tem baleias que migram para se reproduzir na costa do país, como a franca-austral (Eubalaena australis) e a jubarte (Megaptera novaeangliae). E também espécies de lulas e de peixes que servem de alimento a animais que circulam do Oceano Antártico ao Atlântico, como albatrozes.

Esses animais, embora avistados longe da Antártica, mantêm uma conexão com ela e podem ser afetados por mudanças nas geleiras polares. No Brasil e em outros países sul-americanos, podem vir efeitos severos, sobretudo por mudanças na cadeia alimentar.

Professor de Oceanografia da FURG (Universidade Federal do Rio Grande), Eduardo Secchi explicou a ((o))eco — em chamada da Nova Zelândia — que o krill depende do gelo marinho para se alimentar e se reproduzir. Ele é base da dieta de animais como baleias, focas e peixes.

“O impacto da redução do gelo sobre a biodiversidade é imenso”, resumiu o pesquisador, parte da rede do INPO (Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas). “Em anos ruins de krill, registramos que cai a taxa de nascimentos de filhotes de baleias”.

Enquanto alguns preveem a queda do krill, outros apontam que o aumento de nutrientes trazidos das profundezas pode favorecer sua proliferação.  “Pode ocorrer um crescimento na biomassa desses organismos e prejudicar outras espécies por competição”, avaliou Turra (USP).

Outro efeito deletério é o possível avanço da pesca industrial de krill sobre áreas que se tornarão navegáveis pela redução da cobertura de gelo. Isso engrossaria os prejuízos sobre os estoques de peixes e outros animais, em vastas regiões globais.

“Isso compromete a alimentação de inúmeras espécies e o equilíbrio dos ecossistemas ligados a elas”, reforçou Doddridge (Universidade da Tasmânia).

Turismo e clima ameaçados

Além das implicações diretas ecológicas e sobre a biodiversidade, o turismo da mesma forma pode sentir os efeitos das transformações antárticas.

Viagens que partem rumo ao continente gelado e saem com frequência de portos como Ushuaia, na Argentina, podem ser prejudicadas por alterações nas condições de navegação e na quantidade de vida selvagem para observação.

“É provável que haja efeitos também nas principais áreas de reprodução, como Abrolhos, para a baleia-jubarte, e Santa Catarina, para a baleia-franca”, ponderou Eduardo Secchi (FURG).

Tais impactos podem retardar a recuperação de populações desses cetáceos, hoje crescendo graças a medidas de conservação. “Isso mostra a fragilidade de elos essenciais à nossa capacidade de prever os efeitos das mudanças climáticas”, explicitou Turra.

O clima também não será perdoado. Afinal, as mudanças no oceano e na atmosfera antárticos aumentaram a frequência de tempestades no Hemisfério Sul e podem influenciar outros eventos extremos nos trópicos planetários.

“Há evidências de que menos gelo antártico leva maior perda de calor para a atmosfera e a mais tempestades”, pontua Alessandro Silvano, vencedor do prêmio Division Outstanding Early Career Scientist da EGU (sigla em Inglês da União Europeia de Geociências) por suas contribuições à oceanografia.

Tais alterações climáticas também poderiam prejudicar as pescarias, estimou Turra. “Essas conexões não se dão só pela cadeia alimentar, influenciam igualmente massas de água e ar que afetam o clima e os cardumes regionais”.

Cortar emissões é urgente

Diante desses alertas e do avanço acelerado da crise mundial do clima, a principal medida demandada pelos cientistas é reduzir rapidamente o lançamento de poluentes que ampliam o efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO₂).

“Cada molécula de gás que deixamos de emitir torna o futuro melhor”, afirma Doddridge. “Um mundo mais quente terá menos gelo marinho e os impactos dessa mudança se espalharão pelo planeta”.

Para encontros internacionais como a COP 30 da Convenção do Clima, marcada para novembro, em Belém (PA), Doddridge tem uma mensagem direta. “Eu adoraria ver ações concretas [nos resultados do encontro] para reduzir as emissões globais”.

Outro passo crucial, para o oceanógrafo Silvano, é fortalecer a coleta de dados ambientais. “Precisamos de mais satélites e de medições locais, com veículos autônomos, de boias e de sondagens embarcadas, no verão e no inverno”.

Todavia, as pesquisas podem tropeçar em ações do governo Donald Trump. Os dados usados em estudos como os abordados nesta reportagem dependem de satélites do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O fornecimento dos dados pode acabar esta semana.

“A ciência climática depende de medições de alta qualidade que podemos usar para avaliar as mudanças ao longo do tempo. Compreender essas mudanças já é bastante difícil quando trabalhamos juntos. Será muito mais complicado se pararmos de compartilhar nossos dados”, destaca Doddridge.

A redução do gelo antártico é um alerta de que um imenso sistema natural está sendo transformado por ações humanas. Isso reforça a urgência de medidas internacionais firmes, coordenadas e eficazes para cortar emissões de gases de efeito estufa e para proteger os ecossistemas marinhos.

De acordo com Turra, sem isso ficaremos reféns de medidas de adaptação, que, no caso da Antártica, são praticamente inviáveis, pois o continente já é um ambiente protegido e de baixíssimo impacto direto, mas ainda assim sendo transformado por atividades humanas.

“O planeta depende visceralmente da Antártica e vice-versa. Essas mudanças são um apelo urgente para que os acordos climáticos saiam do papel e sejam realmente implantados, especialmente no que diz respeito à redução de emissões”, ressaltou.

Fonte: O Eco

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