Por Mariana Vick
Um relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU) publicado na segunda-feira (20) afirma que, apesar do avanço da mudança do clima, ainda há esperança de um “futuro habitável e sustentável para todos” caso o mundo enfrente a crise.
As ações atuais ainda não são suficientes para atingir a meta de manter o aquecimento global no limite de 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, como define o Acordo de Paris. Mas a publicação destaca que há medidas eficazes para evitar o colapso climático e problemas como crises na produção de alimentos, inundações, epidemias e incêndios florestais.
Ou seja, é preciso fazer mais para evitar o pior — mas o mundo já tem os meios para isso. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chamou o documento de um “guia de sobrevivência para a humanidade”. Neste texto, o Nexo mostra o que isso significa na prática, listando ações já em andamento no Brasil e no exterior em setores como energia, indústria, transporte e alimentação.
Energia
O IPCC é um órgão das Nações Unidas que reúne cientistas do mundo todo para entender as mudanças climáticas e fazer propostas para o combate ao problema. O relatório publicado na segunda-feira (20) resume as descobertas do atual ciclo de avaliações, iniciado em 2015.
Segundo o IPCC, uma das principais ações que os países podem adotar para combater a mudança climática é transformar o setor energético, que, por ser baseado em combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão, hoje é o principal responsável pelas emissões de gases que causam o aquecimento global.
Diversos países têm tomado medidas para substituir esses combustíveis por fontes de energia limpa. Entre eles, estão a China, que construiu o maior parque solar do mundo na província de Qinghai, em 2020, e a Índia, que criou o chamado Integrated Renewable Energy Project (projeto de energia renovável integrada, em tradução livre), iniciativa ainda em construção que combina energia eólica, solar e hidrelétrica.
Iniciativas desse tipo também existem no Brasil. Enquanto, na Amazônia, comunidades até então sem acesso à energia elétrica têm se beneficiado da construção de painéis solares, no semiárido nordestino está em discussão, numa parceria entre governo e organizações da sociedade civil, a integração entre parques eólicos e solares, que operariam em complementaridade com os reservatórios da bacia do São Francisco.
Segundo Roberto Kishinami, mestre em física pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em energia dentro do Instituto Clima e Sociedade — uma das organizações que desenvolvem o projeto no Nordeste —, a iniciativa pode levar benefícios sociais e econômicos para a região e estabilizar o São Francisco, que, além da geração hidrelétrica, poderia ser utilizado em atividades como abastecimento e agricultura.
Para ele, o principal desafio desse tipo de iniciativa é a governança. No caso do Brasil, a gestão dessas fontes de energia exige participação federal, regional e até municipal, disse ao Nexo. Fora isso, segundo ele, há também a necessidade de estudos antes da implementação dos projetos.
Indústria e transporte
Outra proposta do IPCC para enfrentar a mudança climática é reduzir as emissões de gases de efeito estufa da indústria e do sistema de transportes, adotando biocombustíveis para carros, transporte público e aviões no lugar dos combustíveis fósseis ou criando frotas de veículos elétricos.
Esse tipo de iniciativa tem crescido, principalmente no setor de transportes. Países como Noruega, Holanda, Reino Unido e Áustria estão entre os lugares onde há maior participação de veículos elétricos individuais no mercado automotivo, segundo dados de 2022.
Essa participação é menor no Brasil, que tem investido, por outro lado, na eletrificação do transporte público. Prefeituras como São Paulo, Curitiba, Salvador e São José dos Campos (SP) estão entre as que têm renovado suas frotas de ônibus e BRT com veículos elétricos.
Segundo Marcel Martin, mestre em planejamento urbano e regional pela UFABC (Universidade Federal do ABC) e coordenador do portfólio de transporte do Instituto Clima e Sociedade, essas iniciativas ainda têm desafios, como a oferta insuficiente de veículos elétricos no Brasil e o modelo de negócios do transporte público, que, por ser baseado na receita tarifária, é deficitário.
Para ele, o governo federal deve apoiar o financiamento do setor, assim como faz com a saúde e educação (cuja gestão é dividida entre União, estados e municípios). Além de combater a mudança climática, a eletrificação das frotas tem benefícios para a saúde, já que diminui a poluição dentro das cidades.
Também há exemplos de ações contra a mudança climática no setor de aviação. Em 2023, a companhia United Airlines, dos Estados Unidos, criou um fundo de US$ 100 milhões para investir no uso de combustíveis alternativos para sua frota, como óleo de cozinha e algas.
Cidades e infraestrutura
Segundo o relatório do IPCC, mudanças nas cidades — que incluem, além do transporte, o planejamento urbano e setores como o de moradia, construção, saneamento e gestão de resíduos sólidos — também são importantes para o combate à crise do clima.
Essas ações podem tanto reduzir as emissões de gases de efeito estufa quanto ajudar as populações que vivem nas cidades a se adaptar aos impactos da mudança climática, como eventos extremos de chuvas.
68% da população global será urbana até 2050, segundo dados do ONU-Habitat
Entre os exemplos de ações tomadas até agora, está a criação de secretarias do Calor desde 2021 em cidades como Atenas, Santiago, Miami e Freetown. Financiados por iniciativas internacionais do terceiro setor, esses órgãos têm como objetivo combater o calor extremo no espaço urbano, redesenhando áreas verdes e mudando os materiais das construções locais, por exemplo.
Outra iniciativa está na cidade de Recife. Em 2023, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) aprovou crédito de US$ 1,3 bilhão (ou R$ 6,8 bilhões, na cotação de 23 de março) para a prefeitura aplicar no programa ProMorar, que busca investir em urbanização, reassentar de famílias que vivem em locais de risco, ampliar a rede de coleta de esgoto e criar parques lineares. Segundo a prefeitura, as obras devem começar em 2023.
Terra, agricultura e água
Manter a resiliência da natureza contra os impactos da mudança climática depende de medidas como a conservação de florestas, da água doce e dos oceanos, segundo o IPCC. Manejo florestal, reflorestamento e agricultura de baixo carbono estão entre as medidas possíveis para atingir esse objetivo.
Iniciativas como o Fundo Amazônia, criado no Brasil, têm contribuído de forma ampla para essa tarefa. De 2008 a 2019, recursos doados pela Noruega e a Alemanha para o fundo financiaram projetos de combate a incêndios florestais, restauração de nascentes de rios e pesca sustentável em terras indígenas, por exemplo.
Entre os beneficiados pela iniciativa, estão agricultores da Reca (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado), cooperativa de 300 famílias criada em 1989 em Porto Velho (RO) que recebeu recursos do fundo em 2018. Pioneiro no uso de sistemas agroflorestais, método agrícola que mistura cultivos e no qual as plantações imitam florestas, o grupo contribui para a manutenção da biodiversidade local.
Reportagem do portal Mongabay sobre a Reca mostra que ainda há desafios para implementar esse tipo de produção em maior escala, como a falta de especialização dos produtores sobre o tema, financiamento insuficiente e também falta de tecnologia. Apesar disso, projetos bem-sucedidos podem se tornar uma fonte de renda estável para pequenos agricultores.
49% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil são causadas por mudanças no uso da terra (que inclui desmatamento), segundo dados de 2022; outros 25% vêm da agropecuária
Outra maneira de preservar a biodiversidade é demarcar áreas protegidas, seja na terra ou no mar. Em 2012, por exemplo, a Austrália criou o maior conjunto de reservas marinhas do planeta até então, somando mais de 2,3 milhões de km². Em 2021, o país anunciou o investimento de cerca de US$ 100 milhões na conservação dos oceanos, grande parte dedicada ao cuidado de manguezais e ervas marinhas.
Saúde
Segundo o relatório do IPCC, ações como fortalecer os sistemas de saúde, melhorar programas ligados a doenças sensíveis ao clima (como doenças respiratórias, dengue e malária), aumentar o acesso à água potável, melhorar a vigilância contra eventos climáticos extremos, desenvolver vacinas e ampliar o acesso a cuidados de saúde mental estão entre as medidas que podem ajudar as pessoas a enfrentar a mudança do clima.
Estudo publicado em 2020 na revista científica The Lancet mostrou que todos os países, sejam ricos ou pobres, têm sistemas de saúde despreparados para lidar com a crise climática. De 101 países analisados, apenas 51 tinham planos de preparar a infraestrutura de saúde para o problema e menos ainda, quatro, tinham recursos o suficiente para implementá-los.
Algumas iniciativas tentam mudar esse cenário. Em 2018, a OMS (Organização Mundial da Saúde) iniciou um projeto em Moçambique para fortalecer o sistema de saúde local contra os impactos da mudança climática, capacitando o ministério da área para adotar novas políticas e melhorando o monitoramento de riscos ligados ao clima.
Outro projeto implementado pela ONU em 2022 pretende criar sistemas de alerta precoce contra perigos climáticos em todo o mundo, para evitar mortes causadas por eventos extremos (como inundações). A iniciativa foi lançada em Barbados e planeja se expandir para outros países até 2027.
Países como as Filipinas e a Índia também adotaram políticas que relacionam saúde e mudança climática. Em 2022, a OMS afirmou que as Filipinas melhoraram serviços de saúde mental após o impacto do tufão Haiyan em 2013, enquanto, na Índia, um projeto nacional tem reduzido o risco de desastres no país ao mesmo tempo que tenta atender às necessidades de saúde mental da população.
Sociedade e economia
Outras medidas que as sociedades podem adotar para enfrentar a mudança climática, segundo o IPCC, envolvem políticas sociais e a economia. Entre as propostas do grupo, está combinar políticas sociais com as ambientais e criar fundos de combate à mudança do clima.
Em 2011, por exemplo, o Brasil criou o programa Bolsa Verde, cujo objetivo era pagar um benefício de R$ 300 a cada três meses a famílias em situação de extrema pobreza que desenvolvessem atividades de conservação em áreas com recursos naturais relevantes, como florestas nacionais, reservas extrativistas ou assentamentos.
O programa foi descontinuado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2017. Em seis anos, auxiliou cerca de 76 mil famílias que viviam em áreas protegidas da Amazônia. Segundo reportagens de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva planeja retomar o programa em 2023.
Outro exemplo de política que se insere no rol das listadas pelo IPCC é o programa “cap-and-invest” do estado de Washington, nos Estados Unidos. Adotado na lei em 2021 e implementado pela primeira vez em 2023, o programa obriga empresas poluentes a adquirir permissões para a emissão de gases de efeito estufa no estado e usa o valor arrecadado para medidas como a construção de infraestrutura de energia limpa.
Fonte: Nexo