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ARQUEÓLOGO EDUARDO NEVES

O que a arqueologia da Amazônia nos conta sobre o presente

"A gente não pode pensar na história do Brasil sem pensar na história da Amazônia, esse lugar que hoje inclui o Brasil” disse o arqueólogo Eduardo Neves

23 de agosto de 2022
7 min. de leitura
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Mapeamento da cidade do povo Casarabe Descoberta na Amazônia Boliviana. Foto: Reprodução | Nature

Em junho de 2022, circulou nas redes sociais uma série de postagens com fake news sobre a descoberta de uma “cidade perdida” na Amazônia. A invenção dizia que o local, que recebeu até nome (“Ratanabá”) teria sido o “centro do mundo” há 450 milhões de anos, época em que nem sequer árvores existiam na região onde hoje é a Amazônia.

Sandices à parte, a Amazônia tem sítios arqueológicos que indicam que cidades antigas existiram na floresta em períodos antigos, contrariando a ideia difundida ao longo da história de que a região é uma área intocada ou um “vazio” a ser ocupado. Além de nos ajudar a entender melhor o passado da região, para especialistas essas descobertas reforçam que diferentes caminhos de convivência humana com a floresta já foram trilhados e podem ajudar a pensar o presente e o futuro da floresta.

Neste texto, o Nexo apresenta descobertas arqueológicas da região amazônica e fala sobre o que esse conhecimento pode nos ensinar.

Descobertas recentes

Pesquisadores da Alemanha descobriram vestígios de cidades da era pré-colonial na porção boliviana da Amazônia em maio de 2022. As pesquisas foram publicadas na respeitada revista Nature. Verdade se misturou com ficção para criar a história amalucada de Ratanabá.

Os locais foram povoados pelo povo Casarabe, que se desenvolveu na região no período de 500 a 1.400 dC. Os sítios arqueológicos foram descobertos usando um LiDar, sensor a laser que dispara feixes infravermelhos e que capta os sinais refletidos, podendo fazer medições precisas.

As cidades Casarabe demoraram tanto para serem descobertas porque a mata densa da região dificultava o mapeamento. Com o LiDar, o problema desaparece. “Nossos resultados derrubam os argumentos de que a Amazônia ocidental era escassamente povoada em tempos pré-hispânicos”, afirma o artigo.

“Os dados apontam para populações densas, paisagens geradas pelo homem, centros com arquitetura monumental e uma complexa hierarquia de assentamentos que podem ser indicativos de sociedades de nível de Estado”, disse Christopher T. Fisher, professor de antropologia na Universidade Estadual do Colorado, em nota divulgada junto ao estudo. Ele não participou da pesquisa, e foi revisor independente das descobertas.

Os sítios arqueológicos indicam que o povo Casarabe tinha sistemas de gestão de água, com canais e reservatórios, e construiu pirâmides cônicas de até 22 metros de altura.

“Propomos que o sistema de assentamento da cultura Casarabe é uma forma singular de urbanismo agrário tropical de baixa densidade, até onde sabemos, o primeiro caso conhecido para toda a planície tropical da América do Sul”, afirma o estudo.

Os dois assentamentos encontrados pelos cientistas, chamados de Cotoca e Landívar, foram, “centros primários na rede de assentamentos da cultura Casarabe, os principais de uma rede de assentamento regional conectada por calçadas retas ainda visíveis que saem desses locais em direção à paisagem”.

Vestígios de um caminho possível

Para o arqueólogo Eduardo Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e um dos principais pesquisadores do passado amazônico, a importância mais imediata desse tipo de estudo é o conhecimento do passado. “A arqueologia mostra que é um passado muito rico, dinâmico, com modos de vida diferentes. A gente não pode pensar na história do Brasil sem pensar na história da Amazônia, esse lugar que hoje inclui o Brasil”, disse ao Nexo.

O arqueólogo vê as descobertas dos vestígios do povo Casarabe, que foi parcialmente destruído pela colonização e se espalhou pela Bolívia, como importantíssimas. “É um estudo com impacto grande. Ele indica que houve uma mobilização de trabalho e uma organização social para concretizar essas cidades. Não sei se vamos encontrar coisas comparáveis a esses achados. O uso da tecnologia LiDar permitiu um mapeamento muito rápido e com um refinamento muito grande dessas estruturas”, avalia Neves.

Ele acha que as descobertas das cidades dos povos Casarabe têm muito a ensinar para a humanidade do século 21.

“Os vestígios que esses povos deixaram apontam para um caminho de vida diferente do que temos tomado hoje em dia, de destruição da Amazônia, de destruição da diversidade biocultural, da perseguição dos povos indígenas. Eles tinham um modo de vida com aumento de agrobiodiversidade, de outros manejos de solo, muitas coisas que podemos aprender”

Eduardo Neves – arqueólogo

De acordo com Neves, os povos indígenas, do passado e do presente, têm transformado a Amazônia. “Eles têm feito isso há milhares de anos, é isso que a arqueologia nos mostra.”

Um estudo de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, por exemplo, sugere que povos indígenas interferiram na distribuição das espécies vegetais da floresta muito antes da chegada dos europeus à região. De acordo com os pesquisadores, essa manipulação da paisagem, decorrente da domesticação das plantas, contribuiu para a biodiversidade da região e é fundamental para as características atuais da maior floresta tropical do mundo.

Sítios arqueológicos na Amazônia

Por volta de 1542, o frei espanhol Gaspar de Carvajal descreveu “grandes cidades” à beira dos rios da região amazônica, no primeiro relato europeu do tipo. Carvajal era cronista da pioneira expedição do explorador Francisco de Orellana, que desceu o rio Amazonas a partir dos Andes. Uma dessas cidades ficava no exato local onde hoje se ergue Santarém, fazendo da metrópole paraense um assentamento urbano muito mais antigo que sua data de fundação oficial, 1661.

A região do povo kuikuro, no alto Xingu, por exemplo, teve identificados 19 povoados pré-colombianos, que eram ligados por um sistema de estradas largas, distando em média entre 3 e 5 km uns dos outros. Um estudo encabeçado pelo arqueólogo americano Michael Heckenberger descreve diferentes categorias de aglomerados: centros maiores com praças centrais e desenho radial de ruas, vilas menores com praças, e vilas sem praça central. Os centros maiores poderiam ter populações de 2.500 e 5.000 indivíduos.

Bing | Images – Gráfico – Caroline Souza

Os habitantes da Amazônia pré-colombiana interferiram muito no meio ambiente, contrariando a ideia de que eram basicamente “caçadores-coletores” se abastecendo da floresta selvagem. Para Heckenberger, obras públicas desenvolvidas através de engenharia habilidosa (como praças, ruas, fossos e pontes) “sugerem um ambiente construído altamente elaborado”.

O material de construção vinha principalmente do solo, que, de acordo com Neves, foi “a principal matéria-prima utilizada pelos povos antigos da Amazônia para erguer as estruturas de suas construções, seus canais de irrigação e seus locais de culto religioso”.

Muitas dessas sociedades amazônicas eram hierarquizadas. Os pesquisadores usam o termo cacicado para definir uma organização social existente à época da chegada dos europeus que incluía estratificação social e concentração política de poder. Descobertas arqueológicas apontam para estratégias de política regional, redes de troca, circulação de bens e mobilização de mão de obra.

As cidades perdidas e o imaginário popular

A ideia de grandes cidades perdidas sempre povoou o imaginário popular. As duas lendas mais famosas são Atlântida, ilha grega que teria sido engolida pelo mar, e Eldorado, cidade feita de ouro que estaria em algum lugar da floresta amazônica entre o estado brasileiro de Roraima e a Venezuela.

A presença de cidades perdidas no inconsciente coletivo inspirou diversos produtos da cultura pop. Filmes como “Indiana Jones” e games como “Uncharted” bebem dessa ideia.

Na visão de Neves, o fascínio com a ideia de cidades perdidas dialoga com a herança colonialista dos países ocidentais. “Para mim, isso é reflexo de uma mentalidade colonialista, que associa a arqueologia à ideia de aventura. Eu até acho Indiana Jones um personagem interessante, mas é uma imagem fantasiosa e que vem de uma herança colonialista, da ideia de um cara sozinho explorando lugares ‘selvagens’, buscando tesouros”, disse ao Nexo.

Segundo David S. Anderson, professor de arqueologia na Universidade de Radford, nos EUA, a pseudoarqueologia que gera fantasias como Ratanabá sempre tenta maquiar discursos racistas e iniciativas de exploração de recursos naturais.

“Ideias sensacionais sobre o passado são parte de buscas por mitos, experiências religiosas alternativas e pseudociência racista a serviço de projetos nacionalistas”, escreveu no livro “Lost City, Found Pyramid” (Cidade Perdida, Pirâmide Encontrada, inédito no Brasil), de 2012.

Algumas versões da história de Ratanabá diziam que a cidade teria sido parcialmente construída por alienígenas – retomando elementos de outra ideia fantasiosa popular, que credita a extraterrestres a construção de grandes monumentos do passado, como as pirâmides do Egito.

A ideia dos “Alienígenas do Passado”, além de não ter lastro na realidade, também tem cunho racista, já que assume que nenhuma civilização fora da Europa seria capaz de construções grandiosas e com uma preocupação estética apurada.

Fonte: Nexo

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