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ENCHENTES

O primeiro anfíbio do mundo que parou uma hidrelétrica agora encara a crise climática

8 de dezembro de 2025
Thamys Trindade
10 min. de leitura
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Foto: Ibere Machado/Wikimedia Commons

O sapinho-admirável-de-barriga-vermelha tem o tamanho de um polegar, mas carrega feitos de gigante: em 2014, impediu a construção de uma pequena central hidrelétrica que ameaçava modificar para sempre seu único habitat. Endêmico de um pequeno trecho do Rio Forqueta, no município de Arvorezinha, interior do Rio Grande do Sul, o Melanophryniscus admirabilis é uma das espécies mais raras e ameaçadas do planeta. Recentemente, após as enchentes que devastaram o estado em 2024, pesquisadores retornaram a esse refúgio para avaliar se o sapinho que um dia parou uma hidrelétrica sobreviveu à força das águas.

Em outubro de 2025, quase um ano e meio depois do maior desastre climático do Rio Grande do Sul, me juntei à equipe de pesquisadores para documentar o que havia restado do pequeno habitat onde vivem pouco mais de de mil sapinhos-admiráveis . O destino era o Perau de Janeiro – uma dobra escondida de rochas e mata úmida. O lugar, cercado por plantações de fumo e pastos, parece um cenário comum de floresta visto do alto, mas basta descer uma trilha íngreme para o ar mudar. O cheiro de musgo, o brilho do lajedo molhado, o som do fluxo severo do rio que se acaba em uma cachoeira: foi ali que o sapinho barrou o progresso. E era ali que queríamos ver se ele ainda vocalizava.

Descrito pela ciência em 2006, o sapinho pertence à família Bufonidae, e, apesar de ter a habilidade de saltar, prefere caminhar devagar, como se medisse o chão antes de cada passo. Seu dorso verde, suas patinhas e seu ventre colorido formam um contraste improvável para quem prefere não ser visto, mas faz questão de ser lembrado. Essa coloração de advertência serve como um alerta para predadores visualmente orientados de que o animal é tóxico, perigoso ou impalatável – um mecanismo de defesa conhecido como aposematismo.

Os olhos de quem os observa correm rapidamente para os pontinhos verde-claro que formam desenhos no fundo na região abdominal. “Eu costumo dizer que, quando a gente observa essas manchinhas, elas meio que funcionam como constelações. Assim a gente consegue enxergar alguns padrões, como se estivesse olhando as estrelas”, comenta Michelle Abadie, bióloga e líder da pesquisa, comparando os pontos celestiais às macroglândulas, que liberam toxina como um mecanismo de defesa, mas que também servem como uma identificação individual, semelhante à impressão digital humana.

Michelle trabalha com a espécie há 15 anos, e desde o começo da sua pesquisa enfrenta desafios para manter a população do sapinho estável. Em agosto de 2010, a agência ambiental local concedeu uma licença preliminar para a construção de uma pequena central hidrelétrica no Rio Forqueta. Usinas desse tipo costumam alterar drasticamente o fluxo dos rios, bloquear o movimento de espécies que dependem da água e eliminar as variações naturais de nível d’água que sustentam ecossistemas inteiros. Para o M. admirabilis, cuja reprodução depende do regime de chuvas e da formação de poças efêmeras, a barragem seria uma sentença.

Então os pesquisadores decidiram agir de forma coordenada. Com as informações coletadas no campo, Michelle e seus colegas conseguiram avaliar o risco de extinção da única população conhecida da espécie, e, em 2013, o sapinho foi listado como “criticamente em perigo” nas listas estaduais, nacionais e globais de espécies ameaçadas. Somados à parceria com outras instituições de pesquisa, os esforços levaram o Ministério Público Federal a embargar a obra em 2014. “A barragem ficaria a menos de 300 metros do habitat. Qualquer mudança ali seria o fim”, lembra Michelle. Esse foi o primeiro caso documentado no Brasil — e, que se tem conhecimento, no mundo — em que um anfíbio conseguiu barrar uma obra dessa magnitude.

Os efeitos das enchentes

Segundo um estudo da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o Sul do Brasil é a região com maior projeção de aumento de cheias nos próximos anos, com vazões máximas que podem aumentar cerca de 20% e cheias extremas que podem se tornar até cinco vezes mais frequentes na região. As enchentes de 2024 foram o exemplo mais dramático dessa tendência, com impactos que afetaram cerca de 2,4 milhões de pessoas em 478 municípios.

Naquela ocasião, o Rio Forqueta subiu e engoliu o próprio curso. As pedras e o lajedo sumiram. Ninguém sabia se o sapinho ainda existia. Enquanto Michelle permanecia isolada em sua cidade, as informações sobre o Perau de Janeiro vinham de uma parceira local fundamental para o projeto, a moradora Graziela Civa.

A família de Grazi, como é conhecida, arrenda a propriedade onde o sapinho também faz morada e, atualmente, ela é tida como uma espécie de guardiã do animal. Em 2024, tanto ela quanto a comunidade rural do entorno afirmam que nunca haviam presenciado chuvas como aquelas . “A paisagem mudou tanto que nem parecia o mesmo lugar”, lembra Grazi, enquanto aponta para onde o rio carimbou a árvore que testemunha: durante as enchentes, o Forqueta subiu pelo menos 20 metros de altura.

A expectativa dessa primeira expedição após o desastre foi encontrar sapinhos-admiráveis vivos e ocupando os mesmos lugares onde eles normalmente ocupavam. A preocupação era a força da água ter mudado a dinâmica espacial do lugar, arrancado a vegetação e arrastado indivíduos adultos, girinos e ovos para longe.

Apesar do rio ter uma extensão de mais de 150 km, somente um trecho do lajedo oferece as condições ideais para a presença e reprodução dessa espécie, tanto que eles nunca foram encontrados em nenhum outro lugar até hoje. “A gente procurou locais parecidos com esse nas amostragens, mas não encontramos o mesmo padrão: lajedo e vale encaixado com floresta que mantém a umidade e possibilita as poças temporárias”, conta Michelle.

No campo com o admirável

Em campo, outras três biólogas se juntaram a Michelle: Debora Bordignon, Karoline Zenato  e Jaqueline Becker, todas parte do Laboratório de Herpetologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Botas de borracha, luvas e sacos plásticos para a coleta, prancheta, canetas e a máquina fotográfica para os registros compunham a mochila de cada pesquisadora, além de sanduíches e água para um dia inteiro fora da base.

Uma vez próximo da margem do Forqueta, todo cuidado era pouco para evitar o pisoteio de algum indivíduo , pois os sapinhos costumam se esconder no mato adjacente ao rio. A bióloga Débora acredita que, no período reprodutivo, os machos descem do morro até o lajedo, chamam as fêmeas, e então elas vão ao encontro deles, iniciando o processo de reprodução. Chegamos já de frente ao quadrante 24, onde as pesquisadoras adiantaram ser o lugar com maior concentração de indivíduos. Desde o começo das pesquisas, o projeto dividiu o trecho amostrado em 31 quadrantes transectos de 15 metros.

“Achei!”,  avisou Karolina, depois de muito procurar em uma pequena fenda entalhada na pedra coberta por folhas. Era uma fêmea. Perguntei se já era possível saber se esse era um indivíduo novo ou uma recaptura; Michelle respondeu que isso só seria feito depois nos relatórios de campo. A partir dos registros fotográficos que ilustram os padrões de manchas da barriga, elas incluem as imagens em um software que integra o banco de dados do projeto desde 2010. A partir dessa metodologia, é possível comparar as fotografias e estimar o tamanho populacional ano após ano.

O sapinho-admirável apresenta uma estratégia de reprodução de caráter explosivo, na qual a maioria dos indivíduos se reproduz simultaneamente sob condições climáticas específicas: fortes chuvas seguidas de períodos de sol, que aquecem as poças temporárias. “O melhor momento pra gente encontrar a espécie em atividade reprodutiva é entre fim de agosto e início de dezembro, em dias nos quais a temperatura varia entre 15 e 30 graus”, afirma Michelle.

Após horas de captura isolada dos exemplares, finalmente conseguimos documentar os girinos e, logo em seguida, dois indivíduos realizando o abraço nupcial, conhecido como amplexo. Algumas vezes, outros machos concorrentes podem permanecer ao redor, atrapalhando o casal e tentando copular com a fêmea.

Esses machos são chamados de machos-deslocadores.

Em dois dias de amostragem, a equipe registrou 111 indivíduos, entre adultos e juvenis. “Eles estão se reproduzindo, o que significa que o ciclo se manteve”, explica Michelle. “Isso não é o máximo que a gente já conseguiu, mas é um número razoável. A vegetação está se recuperando, então está retomando o micro-habitat que a gente conhece. Mas o quadrante 24, aparentemente, não é mais o lugar favorito dos sapinhos.”

que restou do sapinho?

Apesar dessas primeiras observações, muitas perguntas ainda permanecem sem resposta, e uma única expedição não é suficiente para compreender toda a complexidade da espécie nesse momento. Por isso, o sapinho-admirável foi uma das espécies escolhidas para fazer parte do Plano Nacional de Ação para a Conservação de Espécies Ameaçadas, coordenado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Esta foi a fase inicial de um projeto de três anos de monitoramento pós-desastre, baseado em dados preditivos da pesquisa e na aplicação da mesma metodologia que vem sendo utilizada desde 2010, o que permite estimar o tamanho populacional e a sobrevivência dessa população única.

As mudanças climáticas talvez sejam uma das principais ameaças ao sapinho-admirável, mas não a única. Plantações de tabaco, soja e eucalipto estão associadas ao desmatamento na região onde a espécie ocorre. Em 2018, o local foi reconhecido como Área-Chave para a Biodiversidade (KBA, na sigla em inglê) e sítio da Aliança pela Extinção Zero (AZE), mas até hoje não há uma unidade de conservação formal.

No planejamento de conservação, os conjuntos de dados de KBA e AZE podem ser usados para orientar a criação de áreas protegidas, mas o único local onde a espécie é encontrada fica dentro de uma propriedade privada,

com paisagens cênicas e uma cachoeira que é utilizada como atração turística local. Nesse sentido, é preferível que atividades econômicas sustentáveis sejam promovidas nas proximidades.

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio do Laboratório de Herpetologia, tem se dedicado a pesquisas e ações que vão além da academia. O objetivo é criar pontes com a comunidade local, levando a conservação para perto das pessoas, especialmente das escolas da região, e também no campo político.

Junto ao deputado estadual Matheus Gomes, autor do Projeto de Lei 119/2024, os pesquisadores sonham em reconhecer o sapinho-admirável como Patrimônio Genético do Rio Grande do Sul. A ideia é muito mais do que uma proposta legislativa: é um convite para que sociedade, empresas, governos e instituições repensem sua relação com a biodiversidade. Com a aprovação do projeto, o sapinho, que reflete as cores da própria bandeira do estado, pode se tornar um símbolo de esperança e aprendizado; um lembrete de que a conservação também é uma conexão profunda com nossas raízes.

Ao mesmo tempo que o colorido do sapinho pode ser uma poderosa ferramenta para chamar a atenção para a conservação, essa mesma característica pode representar uma ameaça. Sua aparência marcante pode aumentar sua vulnerabilidade, reforçando o risco de extinção. Traficantes e colecionadores buscam exemplares exóticos por sua raridade e beleza marcante, alimentando o comércio ilegal de animais silvestres.

Apesar de ainda não ter sido documentado especificamente com essa espécie, quase 450 anfíbios já estão registrados na cadeia global de comércio de animais de estimação. Segundo dados, o tráfico de vida selvagem é um dos principais fatores que ameaçam a sobrevivência de vertebrados em todo o mundo, afetando cerca de 25% de todas as espécies terrestres.

Cada passo, seja em campo, no laboratório ou no âmbito do poder público, revela a resiliência de um mundo quase invisível que insiste em sobreviver. Uma pequena espécie carrega a força de nos lembrar que, quando o assunto é conservação, as miudezas não são menos importantes. Essa história talvez tenha sido como um espelho que revela nossos erros, mas também nossas possibilidades de mudança.

Fonte: Mongabay

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