Tem três pés e muita dificuldade para andar. Não desiste. Entre passos e pequenos saltos, se aproxima de um homem comendo tranquilamente um sanduíche. À sombra da sibipiruna, o rapaz de bermuda leva um susto quando sente um focinho gelado tocando-lhe a panturrilha descoberta.
Solta um gemido doloroso e aponta o focinho para o próprio ferimento. Falta-lhe uma perna. O estranho continua sem entender o que aquilo significa. Entre mastigadas e desinteresse, se irrita quando o porquinho toca-lhe a mão com a cabeça.
— Pelo amor de Deus, né? Você quase derrubou meu lanche. Vá pra lá, tá me irritando.
Mais uma vez. Persistência. Entre duas fatias de pão, o último pedaço de pernil cai sobre um punhado de folhas. O rapaz se levanta. Sisudo, furibundo, esfaimado. Suor quente. A ameaça do chute não intimida. O pequeno o observa sem se mover. Ameaça. Sim, ameaça humana.
— Te mato, caramba! Mato mesmo!
O porquinho empurra o pequeno pedaço de carne. Faz um desenho com o focinho.
— O que você tá fazendo?
Continua arrastando o focinho pelo solo.
— Hã?
Um pernil, disforme, mas um pernil riscado na terra. No núcleo, um pedaço da carne suja.
O porquinho deita no chão. Ganha uma perna incapaz de mover. Pouca carne. Carne sem vida. Riscos. É o que resta.
— Você quer dizer que comi sua perna?
O porquinho se levanta, o observa e vai embora. Dor, passos curtos e incertos, pulinhos, pulinhos alternados.
A carne já não é carne. O rapaz cava um pequeno buraco com as mãos, enterra o pedaço de pernil e cobre com terra. Escreve no chão: “Que a minha busca pelo perdão triunfe sobre o prazer da gustação.”