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LEGISLAÇÃO DO ABISMO

O PL 347/03 e a consolidação do especismo de Estado

Projeto de lei que endurece penas para o tráfico de fauna silvestre, esconde armadilhas que podem fragilizar o amparo de milhões de outros animais e consolidar o especismo jurídico no país.

3 de novembro de 2025
Silvana Andrade
7 min. de leitura
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Foto: Niklas Garnholz | Unsplash

A promulgação de uma lei é, antes de tudo, um ato de definição moral. Por meio da construção normativa se estabelecem os contornos do que uma sociedade elege como digno de proteção e, por oposição, o que ela autoriza a ser violado. O Projeto de Lei 347/03, que se apresenta dentro do movimento animalista como um avanço no combate ao tráfico de fauna silvestre no Brasil, é um desses momentos decisivos em que a letra da lei, sob um véu de progresso, esconde uma regressão ética de profundas consequências. O que temos aqui não é uma simples medida de política ambiental, mas a consolidação legislativa do especismo: a crença de que o valor de uma vida é determinado por sua espécie. Trata-se da institucionalização de um apartheid moral, onde a compaixão é um recurso seletivo, distribuído não com base na senciência ou qualquer direito intrínseco ou reconhecido, mas na utilidade econômica.

Um cavalo de Tróia legislativo

À primeira vista, a proposta parece inquestionavelmente louvável. Ao aumentar as penas para o tráfico de animais silvestres, responde a uma demanda urgente e legítima de defesa da biodiversidade. Mas, aninhado ao texto, reside um parágrafo aparentemente técnico, uma exceção que funciona como a chave de todo o retrocesso, que é a exclusão explícita dos animais explorados na indústria pecuária das garantias contra maus-tratos previstas no Artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (“§ 3º Os animais de produção agropecuária ficam excluídos do resguardo conferido pelo art. 32 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.”).

Este trecho do PL não é um detalhe inocente, é o cerne de uma manobra ideológica, porque transforma o projeto de lei de um instrumento de salvaguarda em um mecanismo de segregação jurídica. Edifica, no âmago do ordenamento jurídico, um muro entre os animais que merecem compaixão e os que estão destinados ao sofrimento institucionalizado. Sob a lógica fria do PL 347/03, um papagaio arrancado de seu habitat é uma vítima e seu explorador, um criminoso — legítimo e perfeito.

Mas um porco confinado numa granja industrial, uma vaca submetida à rotina de ordenha mecânica ou uma galinha amontoada em uma gaiola são meros instrumentos e podem continuar sendo legalmente torturados sob o rótulo de “atividade econômica”. A senciência, capacidade neurologicamente comprovada de experimentar dor, medo e angústia, é juridicamente anulada por um artifício redacional. A mensagem transmitida é brutal em sua clareza: o sofrimento só configura crime quando não gera lucro para determinados setores.

A perversidade dessa lógica fica ainda mais evidente quando observamos que o próprio Estado autoriza, em nome da “gestão ambiental”, práticas cruéis contra animais classificados como “espécies exóticas invasoras nocivas”. Matar a tiros, envenenar ou caçar javalis — seres igualmente sencientes — não é considerado maus-tratos, mas política pública. Assim, a violência, quando legitimada por uma narrativa de controle ou de utilidade, é transformada em dever institucional. O mesmo país que criminaliza o sofrimento de um silvestre em cativeiro naturaliza o assassinato de outros seres sob o argumento de que estão “fora do lugar”. Essa seletividade moral é a essência do especismo de Estado.

O PL não se baseia em qualquer critério ético ou científico robusto, mas apenas em uma hierarquia de conveniência. É a discriminação de espécie em sua forma mais pura e perigosa, porque agora vestida com a autoridade do Estado e apoio de ativistas. A filosofia moral, desde os trabalhos de pensadores como Peter Singer e sua ética baseada no princípio da consideração igual de interesses, até a abordagem abolicionista de direitos animais de Tom Regan, que defende o valor inerente dos sujeitos-de-uma-vida, tem insistido que a senciência é a fronteira moral fundamental.

Reconhecer a capacidade de dor física e emocional, como o fundamento para a consideração moral, é um imperativo de justiça ampliada. Portanto, a imposição de qualquer sofrimento a um ser senciente, especialmente quando evitável ou infligido por negligência, crueldade ou interesses triviais, configura uma violação ética grave e deveria ser tipificada como ato passível de criminalização.

Ao legislar contra esse princípio basilar, o PL 347/03 comete uma injustiça ontológica. A proposta oficializa a ideia de que alguns seres sencientes podem ser legalmente reduzidos à condição de objetos, de propriedades cujo sofrimento é um detalhe administrativo, ou melhor, nada. Isto representa um retrocesso humanitário profundo, pois fragiliza a própria noção de que a norma deve proteger os mais vulneráveis da arbitrariedade do poder. A lei, que deveria ser um farol de justiça, torna-se aqui o carimbo de um sistema de opressão.

A sociologia do cínico acordo: concessões e holocaustos permitidos

O projeto é um artefato perfeito daquilo que o pensamento crítico poderia denominar de “racionalidade instrumental perversa”. Ele opera por meio de um cálculo político cínico e oferece à sociedade o alívio simbólico de punir um crime espetacular e midiático, o tráfico, para obter, em troca, a licença social e legal para perpetuar um holocausto cotidiano: a opressão animal em escala industrial.

É um jogo de soma zero onde o suposto avanço de alguns serve para escamotear o aprofundamento da opressão de muitos outros. O lobby do agronegócio, nesta equação, é o arquiteto de uma estrutura legal que protege seu direito de explorar, confinar e matar sem o incômodo de enquadrar suas práticas como maus-tratos.

O PL 347/03 é a materialização de um poder econômico que consegue se traduzir diretamente em poder de definir quem sofre e quem não sofre perante a legislação. Ele expõe as entranhas de um Estado que, em vez de moderador de conflitos, torna-se cúmplice de um dos setores mais poderosos da economia.

Aceitar esta proposta legislativa é capitular a uma lógica fragmentada e incoerente de direitos. É normalizar a esquizofrenia moral de uma sociedade que chora por um cachorro abandonado, mas financia, com seu consumo, o confinamento e morte de um porco, ou a execução de um javali “em nome da conservação”.

O movimento abolicionista, que luta pelo fim de toda a subjugação animal, vislumbra neste projeto um gigantesco salto para trás na longa caminhada em direção a uma sociedade verdadeiramente justa. A reivindicação não é por bem-estarismo ou por crueldade zero, em um sistema que permanece intrinsecamente exploratório; a reivindicação é por uma ética radicalmente inclusiva, que não negocie quais vidas merecem ser protegidas.

O caminho para uma legislação baseada na integridade não é misturar temas incompatíveis, mas tratá-los com coerência e profundidade. Não é o de endurecer penas para um crime criando uma permissão explícita para outro. O caminho é a coragem de separar as questões e tratá-las com a profundidade que exigem. O Brasil precisa, sim, de uma lei robusta e específica contra o tráfico de silvestres, que ataque as redes criminosas e proteja os ecossistemas. Mas precisa, com igual ou maior urgência, de um debate nacional profundo sobre um marco legal que reconheça todos os animais não humanos como sujeitos de direito.

A lei fundada no senso de justiça não pergunta “o que este animal pode fazer por nós?”; ela pergunta “o que nós podemos fazer para defender este animal?”. O PL 347/03, em sua forma atual, é a antítese desta pergunta. Ele é um documento que nos força a encarar o abismo entre nosso discurso compassivo e nossa prática econômica e legal.

A eventual aprovação do PL 347/03 nos termos atuais representaria muito mais que ajuste normativo. Significaria a chancela oficial a uma valoração discriminatória em nosso código jurídico, a rendição final da moral à conveniência. Rejeitá-lo não é um obstáculo ao progresso da causa pelos direitos animais, é a condição fundamental para que qualquer avanço, de fato, seja ético, justo e digno de ser chamado de evolução. A luta contra este projeto é, em última instância, uma batalha pela alma do nosso ordenamento jurídico e pela definição daquilo que estamos dispostos a considerar como uma comunidade moralmente coerente.

O país precisa avançar com um marco legislativo unificado para a proteção de todos os animais não humanos, reconhecendo-os como sujeitos de direito, e não como propriedades. Essa é a direção transformadora que o século XXI exige.

O Brasil não precisa de “avanços parciais” que servem de cortina para retrocessos estruturais. Precisa de uma legislação consistente e igualitária, capaz de refletir o princípio básico da ética animalista de que todo ser senciente tem direito à vida, à liberdade e à proteção contra a crueldade.

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