Nesta quarta-feira (30), o Superior Tribunal Federal (STF) dá início a um movimento histórico. De uma só vez, a Corte máxima do Judiciário brasileiro vai analisar um mutirão de pautas que questionam ações do governo Bolsonaro na seara ambiental. São sete processos, batizados de “Pacote Verde”, que podem definir, por exemplo, a resposta do Brasil à proteção da Amazônia, à crise do clima e à aderência das políticas ambientais à Constituição Federal.
Há muita expectativa em torno da agenda temática. Seis das ações foram ajuizadas por partidos políticos e uma, relativa aos padrões de qualidade do ar, pela Procuradoria Geral da República (PGR). Em comum, todas contestam políticas socioambientais adotadas no país sob o atual governo e questionam violações à Carta Magna, como o Artigo 225, um dos mais celebrados no direito constitucional ambiental.
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, diz o dispositivo, que confere ainda mais potência ao papel que a sociedade civil tem no exercício de uma democracia participativa.
E a população nunca esteve tão vocal. O anúncio da sessão totalmente dedicada à pauta verde, feito pelo ministro Luiz Fux, ocorreu na esteira dos protestos em Brasília do “Ato pela terra”. Com forte participação da classe artística, encabeçada pelo cantor e compositor Caetano Veloso, o ato foi uma crítica às tramitações que ocorrem no Congresso sobre temas críticos, como garimpo, demarcação de terras indígenas e agrotóxicos.
Para especialistas ouvidos por Um Só Planeta, o movimento do STF é um recado para as demandas cada vez mais crescentes da sociedade por políticas que garantam a preservação do meio ambiente, o direito a saúde e qualidade de vida, e que respondam ao desafio do século – a crise climática –, que já afeta a geração presente e ameaça minar as bases para um futuro mais próspero e sustentável.
“Estamos diante de um dos maiores desafios da vida, que são as mudanças do clima. E o atual governo vai na contramão das questões ambientais, que são a base da nossa existência”, diz Evangelina Vormittag, uma das principais especialistas em interface entre sustentabilidade e saúde do Brasil. A médica afirma que há “um movimento forte para consertar esse desgoverno e uma grande expectativa de que as ações [em pauta no STF] sejam julgadas à favor da vida”.
O desmatamento na Amazônia, que vem quebrando recorde atrás de recorde, vai na contramão de um futuro desejável para o Brasil, diz a especialista, com graves implicações para o clima mundial e a saúde humana. À frente do Instituto Saúde e Sustentabilidade, ela acompanha há décadas os efeitos nocivos da poluição urbana, causada principalmente pela queima de combustíveis fósseis, e que vêm se agravando com as queimadas florestais.
“Toda ação para redução de poluição tóxica tem como benefício imediato a redução das emissões de gases de efeito estufa”, reforça. Por isso, diz que é de extrema importância o julgamento do STF sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6148, que questiona a Resolução 491 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, sobre os padrões aceitáveis de qualidade do ar.
O atual padrão em vigência no país permite níveis de duas a três vezes mais tóxicos do que determinava a Organização Mundial da Saúde em 2005, com o agravante de que, em 2021, o órgão da ONU reviu o padrão antigo e adotou níveis mais rígidos para medir a qualidade do ar. Na prática, aqui no Brasil, o nível considerado “bom” seria considerado uma emergência na Europa, que possui padrões mais elevados, compara a doutora. E alerta para as falhas de comunicação sobre a real magnitude do problema para a população. “Ter um padrão defasado é uma coisa, mas ao dizer que a qualidade do ar está boa, a pessoa não tem como se defender nem cobrar seus direitos”, critica.
O fenômeno da judicialização
Indignação e sentimento de desilusão com as demais instâncias institucionais são fatores que têm alimentado a judicialização de questões ambientais pelo mundo, segundo Rebeca Stefanini Pavlovsky, advogada associada de Direito Ambiental do escritório Cescon Barrieu Advogados. “As ações chegam neste nível por conta do sentimento de vácuo da atuação dos poderes Legislativo e Executivo. Então, vai para o Supremo a demanda de resolver o problema”, pontua.
A especialista observa que, embora o tema seja tratado em todos os três Poderes, há muita polarização, especialmente no Congresso, onde ambientalistas e ruralistas travam embates frequentes. “As pessoas têm batido à porta do Judiciário para que haja uma resposta mais expressiva de politica ambiental”, acrescenta, dizendo que todos aguardam “ansiosamente” o julgamento.
E a expectativa não vem apenas de dentro. “O mais importante nesse julgamento é a conversa entre Judiciário, Executivo e Legislativo, de deixar claro quais são nossos objetivos e metas como país. O mundo está todo acompanhando”, diz, referindo-se às tratativas do Brasil integrar a OCDE, cada vez mais dependentes do desempenho do país em meio ambiente, as promessas do país no Acordo de Paris, e os compromissos ESG que têm mobilizado o empresariado e o mercado financeiro nos últimos anos.
O “Pacote Verde”:
Veja abaixo as ações que serão analisadas no “Pacote Verde” do STF a partir desta quarta (30). Elas integram três categorias diferentes – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI):
1) ADPF 760 – Esta ação cobra a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). Lançado em 2004 e considerado um marco na defesa ambiental, o plano visava reduzir as taxas de desmatamento da floresta e criar condições para um modelo de desenvolvimento sustentável na região, mas foi descontinuado por Ricardo Salles quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente.
2) ADPF 735 – Ação contesta a Operação Verde Brasil 2 e o uso das Forças Armadas em ações contra delitos ambientais. O ponto principal aqui é garantir a retomada do protagonismo do IBAMA como principal órgão de comando e controle no combate ao desmatamento no país, atribuição que foi enfraquecida sob o governo Bolsonaro.
3) ADPF 651 – Ação contra o decreto que excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). A participação da coletividade na defesa do meio ambiente é considerada um direito e, portanto, a retirada da sociedade civil, bem como a redução dos representantes dos estados e municípios do FNMA, fragiliza o sistema.
4) ADO 54 – Ação que acusa o governo federal de omissão no combate ao desmatamento e, por consequência, de descumprimento da meta da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC), que inclui metas para redução drástica da perda florestal, em consonância com a Agenda 2030 da ONU.
5) ADO 59 – Ação pede a reativação do Fundo Amazônia, que foi paralisado em 2019 sob a gestão de Salles na pasta ambiental. O Fundo recebia doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento na floresta. Também questiona a extinção do Comitê Técnico do Fundo Amazônia (CTFA), responsável pelo cálculo do desmate e emissões de CO2 associadas, e do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA), órgão de governança do Fundo.
6) ADI 6148 – Ação de inconstitucionalidade alerta que o país não está adequado às recomendações da Organização Mundial de Saúde sobre os padrões aceitáveis de qualidade do ar, colocando a vida da população em risco. Foi proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR), com base no fato de que a Resolução Conama 491 é ineficaz para o controle da poluição e não cumpre seu objetivo final de salvaguardar os direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente equilibrado, como prevê a Constituição Federal.
7) ADI 6808 – Contesta a Medida Provisória que prevê concessão automática de licença ambiental para empresas de grau de risco médio e impede órgãos de licenciamento de solicitarem informações adicionais àquelas informadas pelo solicitante no sistema da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).
Implicações políticas do julgamento
Especialistas em políticas públicas e clima analisaram as potenciais implicações dessa sessão histórica do STF, que pode se estender por semanas.
Para a Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio), organização de análise e consultoria em finanças e políticas climáticas, o Brasil tem sofrido com uma “política (anti)ambiental” que deixa no seu rastro impactos sociais, econômicos e ambientais de âmbito local, regional e mundial.
“Com o aumento do desmatamento, o país não cumpre as suas metas nacionais e internacionais, contribui para o agravamento da crise climática, espanta os investidores internacionais, impacta negativamente a exportação de produtos agropecuários”, afirma Cristina Leme Lopes, gerente de Pesquisa do Programa de Direito e Governança do Clima do CPI/PUC-Rio.
A especialista elenca potenciais desdobramentos em caso de julgamento positivo das ações pelo STF, a começar pela responsabilização do governo caso não sejam retomadas as políticas de combate à devastação ambiental.
“Há uma clara sinalização para os mercados e investidores internacionais de que podemos sair dessa crise ambiental, uma sinalização ao poder Legislativo de que retrocessos legislativos não serão permitidos quando claramente inconstitucionais, e um fortalecimento do poder Judiciário como um todo, colocando-o como ator importante na agenda climática ambiental”, avalia Cristina.
Em um documento meticuloso que avalia cada ação “verde” do pacote, o instituto Talanoa, think tank que trabalha com análises técnicas e monitoramentos de políticas públicas, defende que todas as sete ações sejam julgadas procedentes. Na avaliação do instituto, esse desfecho melhoria a reputação internacional do país, que efetivamente avançaria “com políticas públicas que estão há anos escanteadas na agenda governamental e precisam urgentemente entrar na pauta prioritária”.
“Entendemos que o julgamento da procedência das ações poderá gerar efeito positivo sobre o ambiente institucional e de implementação de políticas públicas climáticas e ambientais, com consequente impacto no nível de emissões brasileiras, nesta década”, diz o Talanoa.
Nos próximos dias, o meio ambiente e o futuro do Brasil estarão nas mãos dos ministros do STF. É uma responsabilidade e tanto.
Fonte: Um Só Planeta