Cientistas buscam explicações para o encolhimento da única população do pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) no Tocantins, numa das poucas regiões no país que mantêm condições ambientais para abrigar a espécie, altamente ameaçada de extinção.
Dedicado à proteção de aves desde os anos 1970, o doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB) Paulo Zuquim Antas faz parte de equipes que todo ano descem o Rio Novo para estimar os números do raro emplumado.
A maratona aquática percorre 145 km de águas cristalinas. Nos costumeiros 5 dias de remadas, enfrentam corredeiras e pedrais. As maiores barreiras forçam os botes infláveis a serem carregados pelas margens arenosas. Descanso mesmo, só nos acampamentos para pernoite. “Os pontos mais críticos estão mapeados. Isso ajuda a ganhar tempo a cada descida do rio”, detalha Antas. “Todos usam capacetes, coletes e outros equipamentos para evitar riscos ao máximo”, ressalta o coordenador de projetos de conservação na ong Fundação Pró-Natureza (Funatura).
Tocados por ONGs e órgãos estaduais, com apoio de um programa federal, os censos da espécie vêm desde 2008. Eles ocorrem logo após a reprodução da ave, quando a atenção aos filhotes e a troca de penas reduzem seus movimentos no rio. Isso facilita a contagem.
Em 2019, foram estimadas 25 aves adultas. O trabalho foi interrompido na pandemia de Covid-19. Em seguida, os números começaram a cair. Este ano, foram estimados de 16 a 18 adultos, uma queda de 30% sobre o registrado cinco anos atrás.
Além disso, só um ninho com filhotes foi identificado pelos recenseadores em agosto deste ano. Na mesma época, apenas dois dos 8 filhotes nascidos em julho foram avistados, ainda sem poder voar. “Isso é muito preocupante”, ressalta Zuquim Antas.
Isso acendeu uma luz vermelha para cientistas e conservacionistas, que buscam causas para o declínio do pato-mergulhão no Tocantins. A espécie é listada como criticamente ameaçada de extinção no Brasil e pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN).
Restam cerca de 250 dessas aves na natureza, no Jalapão (TO), na Chapada dos Veadeiros (GO) e na Serra da Canastra (MG). Nessas regiões, elas habitam sobretudo unidades de proteção, como estações ecológicas, parques nacionais e estaduais.
Já uma população no Alto Paranaíba, palco de mineração, agronegócio, urbanização e desmate em Minas Gerais, está totalmente desprotegida. Ao mesmo tempo, rumores de grupos da espécie na Argentina e no Paraguai não foram confirmados cientificamente.
Agulha no palheiro
É grande o elenco de possíveis fontes da redução nos números do pato-mergulhão no Tocantins. Vão de uma explosão reprodutiva em anos anteriores a mutações genéticas, passando por enchentes e poluição. As investigações são exaustivas.
Inspetor de Recursos Naturais no Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), um órgão do governo estadual, Marcelo Barbosa acompanha as populações da ave no Rio Novo há mais de duas décadas. Para ele, o censo de 2019 parece “fora da curva”.
“O ano anterior pode ter tido uma taxa de reprodução muito boa, acima da média, inchando a contagem logo no ano seguinte”, pondera o biólogo e mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Os filhotes ficam na mesma área onde nasceram por até um ano, depois migram. “Se não encontrarem rios favoráveis, a grande maioria pode estar morrendo”, lamenta Barbosa.
Ao mesmo tempo, a capacidade reprodutiva daquelas aves pode ter estagnado, ou já estar em queda. Isso explicaria a média contada nos censos anuais. “Ninguém sabe como está a fortaleza reprodutiva dos casais”, reconhece Barbosa.
Mais nebuloso, a variação genética “brown”, marrom em Inglês, restrita ao Tocantins, deixa as penas das aves mais claras e quebradiças. Os patos sem esse “filtro solar” parecem ter uma vida mais curta. Ainda pior, isso afeta apenas as fêmeas, ameaçando ainda mais o futuro da população.
Em Belo Horizonte, a cerca de 1.500 km da morada do pato-mergulhão no Tocantins, um professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutor pelas universidades de Oxford (Reino Unido) e da Pensilvânia (Estados Unidos) quer desvendar esse enigma genético.
Conforme Fabrício Rodrigues dos Santos, a variação registrada no pato-mergulhão há cerca de uma década é comum em aves domésticas como galinhas e codornas. O isolamento dos patos no Rio Novo pode ter reforçado esse desvio.
“O cruzamento entre aves aparentadas pode potencializar os genes causadores da variação. Isso é ainda mais grave em populações pequenas como a do Tocantins”, ressalta.
Um estudo sobre causas da “brown” deve ser concluído este ano. Até lá, foi barrado o acasalamento das 49 aves no Zooparque de Itatiba, a 80 km da capital São Paulo (SP), diz Santos. Lá, alguns patos aparentados com animais do Tocantins têm a inclinação genética – não visível nos machos da espécie.
“Sabendo mais sobre as causas, será possível adotar medidas para eliminar ou reduzir a incidência da variação nas populações naturais e de cativeiro”, projeta o pós-doutor pelas universidades de Oxford (Reino Unido) e da Pensilvânia (Estados Unidos).
Já Paula Antas (Funatura) não descarta que o Rio Novo pode ter sofrido com fortes enxurradas e sedimentação, prejudicando a espécie enquanto cientistas estavam afastados da região durante a pandemia de Covid-19. “Ninguém sabe o que aconteceu nesse período”, diz.
Ele também sugere análises rígidas das águas regionais, cujo manancial subterrâneo é conectado ao oeste da Bahia, região onde o agronegócio faz uso intensivo de agrotóxicos. “É preciso saber se a água recebe ou não contaminantes usados na produção rural”, pede.
Proteção complexa
As ameaças ao pato-mergulhão crescem junto com a imparável degradação de rios e outros ambientes naturais no Brasil. A espécie depende de águas intocadas pela poluição, correntes e cristalinas, ainda mais porque pesca mergulhando e de olhos abertos.
“O pato também não tolera a presença humana ou cursos d’água barrados. Onde se barra a água, se barra a vida do pato-mergulhão”, destaca Rodrigues dos Santos (UFMG).
O Rio Novo ainda não tem hidrelétricas, ao contrário do projetado na goiana Chapada dos Veadeiros. Como mostramos em abril, ao menos 7 hidrelétricas de pequeno porte, as chamadas PCHs, estão planejadas nos principais rios onde sobrevive a espécie na região.
Já no Tocantins, pesquisadores tentam aumentar as chances de vida dos filhotes facilitando sua saída dos ninhos, montados em tocas profundas e forradas com as penas do peito das mães, e até com ninhos artificiais mais protegidos de predadores.
Paulo Antas (Funatura) diz que os filhotes têm uma taxa natural de sobrevivência muito baixa. São muito frágeis nos primeiros dias, podem ser levados pela correnteza, ser predados ou se perder da família. “Qualquer um que morre é baque naquela população”, afirma.
Uma alternativa futura é liberar aves de cativeiro em áreas preservadas. “Isso ajudaria a natureza a contornar essa mortalidade até que os grupos da espécie no Tocantins possam se manter, aumentar e até povoar outros ambientes”, detalha.
Cientistas vasculharam outros trechos e afluentes do Rio Novo e do Rio Parnaíba – esse entre o Piauí, Bahia e Tocantins –, até agora sem encontrar vestígios de outras populações do pato-mergulhão nas regiões Norte e Nordeste.
Fonte: ((o))eco