“No começo, pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade” — a frase é de Chico Mendes, seringueiro e ativista ambiental assassinado em 1988. Sua luta pela preservação da floresta foi tão impactante que ele deu nome ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia federal criada em 2007 para gerir as unidades de conservação do Brasil.
O discurso de Mendes nunca esteve tão atual, pois a floresta nunca esteve tão ameaçada. Um novo estudo, publicado na revista Nature, analisou diversas projeções a partir de Modelos do Sistema Terrestre e observou que, se nada for feito, a Amazônia pode começar a morrer (perder severamente a atividade fotossintética) ainda neste século.
Modelos do Sistema Terrestre (ESMs) são modelos matemáticos e computacionais que combinam informações de diversos campos do conhecimento (como física, química e biologia) para simular processos complexos da Terra. Com eles, é possível avaliar cenários de mudanças ambientais, por exemplo: “Como a remoção de grandes áreas de floresta afeta o clima regional?” ou “Como a perda de determinadas espécies impacta o ciclo de carbono?”.
No caso, os cientistas quiseram saber: e se a temperatura global continuar aumentando e o uso da terra continuar indiscriminado? Foram 12 modelagens analisadas e, em nove dessas simulações, a Amazônia pode sofrer um colapso significativo (mais de 80% de perda de produtividade) antes de 2100. Os problemas vão surgir em efeito cascata, com o excesso de calor e falta de chuva provocando secas prolongadas, as quais irão provocar incêndios, piorando todo o cenário.
“As simulações indicam que esse colapso pode ter início já no século 21, mais cedo do que se estimava anteriormente, especialmente sob condições de intenso calor, redução das chuvas, mudanças no uso do solo e alterações no ciclo hidrológico, incluindo o enfraquecimento da circulação oceânica e o deslocamento da Zona de Convergência Intertropical”, afirma Elisangela Soldateli Paim, coordenadora latino-americana do Programa Energia e Clima da Fundação Rosa Luxemburgo.
Ela lembra que os ESMs usados no estudo são os mesmos empregados nos relatórios mais recentes do IPCC. “As projeções feitas pelo IPCC foram aprimoradas ao longo dos anos. No relatório mais recente, o AR6, o IPCC apresenta um consenso maior de que a tendência para a Amazônia é de um clima mais seco, com redução das chuvas”, diz a especialista.
“Alguns estudos indicam inclusive que, diante de mudanças climáticas severas, o desmatamento pode antecipar o chamado tipping point na região — um fenômeno semelhante à savanização ou ao colapso gradual. Isso reforça a importância de acabar com o desmatamento e a degradação da floresta”, acrescenta Paim.
Assim como afirma a pesquisadora e o estudo da Nature, outras pesquisas também chegam à mesma conclusão: nesse cenário de aquecimento global irrefreado, a Amazônia pode deixar de ser uma floresta tropical úmida e se tornar uma savana, caracterizada por vegetação mais aberta, clima mais seco e maior presença de gramíneas. É possível que esses dois biomas coexistam por um tempo, até que chegue um ponto em que a “savanização” completa se torne não apenas inevitável, mas também irreversível.
O tamanho do problema
Uma Amazônia transformada em savana representa um problema gigantesco: a floresta amazônica abriga mais de 10% da biodiversidade terrestre da Terra, armazena uma quantidade de carbono equivalente a 15–20 anos de emissões globais de CO2 (150–200 Pg C) e tem um efeito de resfriamento líquido (da evapotranspiração) que ajuda a estabilizar o clima da Terra. Mas essa é só a ponta do iceberg. Veja a seguir possíveis consequências dessa transformação:
- Perda de biodiversidade vegetal
A Amazônia abriga mais de 15.000 espécies de árvores, sendo que 1% delas é dominante e os outros 99% são, em sua maioria, raros. Um único hectare de floresta na Amazônia central e noroeste pode conter mais de 300 espécies arbóreas. Metade das espécies de árvores do bioma deve entrar na Red List de espécies ameaçadas até 2050 devido ao aquecimento global. A perda de cobertura de floresta tropical deve acelerar esse processo.
- Perda das comunidades indígenas e seus conhecimentos de proteção
A Amazônia é casa para mais de 40 milhões de pessoas, incluindo 2,2 milhões de povos indígenas de mais de 300 etnias, além de comunidades afrodescendentes. Em inglês, esses grupos são chamados de IPLCs: Indigenous Peoples and Local Communities, ou Povos Indígenas e Comunidades Locais. Há extensas pesquisas que mostram o valor dos IPLCs para a preservação, pois seu conhecimento ecológico permite identificar e responder rapidamente às mudanças ambientais com práticas de mitigação e adaptação.
Além disso, esses povos e comunidades defendem seus territórios contra o desmatamento ilegal e também promovem a restauração florestal por meio da expansão de diversos sistemas agroflorestais. A destruição dessas comunidades, além da gigantesca perda cultural, também implica na extinção desse conhecimento e desses recursos de defesa.
“Nesse contexto, também temos que incluir os megaprojetos instalados na região amazônica, especialmente nas áreas de energia e mineração, pois intensificam os conflitos nos territórios e violam direitos. Essas intervenções drásticas ampliam os efeitos ambientais e sociais, agravando os desafios enfrentados pelos povos indígenas, comunidades ribeirinhas e tradicionais”, ressalta Elisangela Paim.
- Estresse térmico extremo para a população local
Estudos sugerem que os impactos combinados das futuras mudanças climáticas e do desmatamento podem expor mais de 11 milhões de pessoas na Amazônia ao estresse térmico extremo. O aumento das temperaturas reduzirá a produtividade e aumentará a mortalidade humana por todas as causas em comunidades já marginalizadas. Isso também impactará a pecuária e reduzirá a produtividade das culturas.
- Menos chuvas e mais calor na América do Sul
Um estudo de 2024 revelou que a combinação de aquecimento global e desmatamento pode reduzir a precipitação anual na Bacia Amazônica em até 44%, além de aumentar em 69% a duração da estação seca. Essa mesma pesquisa afirma que a América do Sul tem experimentado secas prolongadas e aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como ondas de calor e incêndios florestais, devido ao aquecimento global.
A perda da Amazônia está acelerando esse processo: em 2021, um estudo feito no Mato Grosso indicou que o desmatamento na região do Rio Xingu pode reduzir em 7% a precipitação média anual histórica do estado.
- A Amazônia passa a emitir mais CO2 do que absorve
Estudo de 2021 mostra que a Amazônia, antes um sumidouro de carbono, agora está emitindo mais CO₂ do que absorve. As mudanças climáticas têm um papel nessa virada, mas o fator que mais pesa é o desmatamento proposital causado por fazendeiros que querem abrir espaço para agropecuária. A maior parte do CO2 emitido vem dessas queimadas.
“As queimadas produzem cerca de três vezes mais CO2 do que a floresta absorve” afirmou Luciana Gatti, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que liderou o estudo.
- Menos alimentos produzidos
Diminuir a área de floresta significa também diminuir a quantidade de vegetação que joga água na atmosfera. Como apenas 5% do total do nosso agro e 10% da produção de grãos são irrigados, todo o resto da produção agrícola brasileira depende das chuvas.
O 6° Relatório de Avaliação do IPCC, publicado em 2022, destaca que, sem medidas de adaptação eficazes, a produtividade de culturas como milho e soja pode ser reduzida em cerca de 30% até meados do século.
Fonte: Revista Galileu