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O dilema do sacrifício

18 de janeiro de 2011
7 min. de leitura
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Por Luís Antônio Giron

Luís Antônio Giron, Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: Reprodução/Época)

A praga de São Longuinho continua. O santo dos pulinhos tem pegado no meu pé desde o Ano Novo, quando saltei as sete ondinhas, não levando a sério sua oração. Longuinho é o santo que o devoto invoca para achar objetos ou causas perdidas. E que, no Reveillon, é o emissor dos bons augúrios. Descobri, porém, que o santo dos achados também é o dos perdidos. Quando você o despreza, parece que é capaz de extraviar ainda mais o que você queria achar. Agora passei a levar o santo a sério – e, na dúvida, vou acender uma vela para ele todo fim de ano, sem zoar quem salta as ondas.

Acaso ou coincidência, o fato é que desde que cometi o deboche herético o meu cotidiano desandou: minha casa destelhou, meu carro submergiu em uma onda de lama (onda, repare bem!) que resultou em perda total. O carro que peguei na seguradora pifou. E, para culminar, uma grande tristeza se abateu sobre minha família: nossa cachorrinha, Sissi, está agonizante há cinco dias. Sei que pode soar leviandade falar de fé, superstição e pequenos reveses caseiros num momento que cidades inteiras foram submersas pela lama no Rio e em São Paulo – e que mais de 600 pessoas morreram por causa disso. Apesar de tudo, em especial o sofrimento maior dos outros, é preciso tocar a vida e enfrentar também os azares mais miúdos. Até porque eles contêm ensinamentos. Vou contar o que se passou.

Odeio lições da vida, mas elas acontecem e ter de ser aprendidas. No último fim de semana, eu me preparava para cobrir o show de Amy Winehouse na Arena Anhembi e, na noite seguinte, assistir pela televisão à entrega dos prêmios do Globo de Ouro, quando a cachorrinha começou a se sentir mal. Sissi está com a gente há oito anos. É um dachshund, o popular salsicha. Sempre foi um animalzinho atento e sensível. Tomava conta da casa, com aquela fúria que só os cães pequenos são capazes de transmitir. Também era a grande amiga de minhas filhas, que se afeiçoaram a ela como se fosse uma filha. Ainda crianças, elas conversavam com Sissi. E se acostumaram a entender seus sentimentos e pedidos. De fato, Sissi criou um código de gemidos, latidos e gestos para se fazer entender.

Pois é, ela se tornou uma integrante da família em um momento histórico em que os animais de estimação estão sendo humanizados a ponto de terem os mesmos direitos de qualquer cidadão racional. Isso ao mesmo tempo que nós, humanos, estamos cada vez mais parecidos com animais domesticados. Os cachorros e gatos já não vão ao veterinário, mas ao médico. Veterinário de hoje quer ser tratado como “doutor”. Eles não comem ração, mas “comida”.

Não são filhotes, mas “bebês”. Suas mandíbulas viraram “bocas”. Seus focinhos, “narizes”. Há cachorros aprendendo a falar como gente por aí. Eles já têm opções de consumo, de alimentação (há até cães vegetarianos), moda e habitação. Agora contam até com seguro de saúde privado.

Desatento como sempre às mudanças do mundo, fui imprevidente e não contratei nenhum seguro para Sissi e Milly, a outra cachorrinha, beagle. Já pressupondo que cães e gatos são gente, imaginei que eles pudessem ser protegidos pelo poder público. Errei. Enquanto dentro das casas os pets são membros da família, fora delas continuam a ser bichos sujeitos à captura e à morte, sem nenhum tipo de direito. Muitos mascotes são reis na vida privada, mas retornam à situação primitiva na vida pública.

Dessa forma, quando Sissi começou a sentir dores e ter convulsões, não pude recorrer a São Francisco, o padroeiro dos animais. Descobrimos que só nós mesmos tínhamos que fazer tudo para salvá-la. Corremos a veterinários, clínicas, hospitais, farmácias, atrás de socorro. E, claro, tudo a preços iguais aos pagos por pacientes humanos. A agonia do cãozinho acontece na mesma velocidade com que o dinheiro sai da conta. É necessário salvar uma vida, e não se economiza numa situação dessas. Afinal, animais domésticos viraram pessoas. Neste momento, minhas filhas estão preocupadas com o destino de seu “bebê”, chorando com um desespero que não posso dizer que não seja legítimo.

Não era assim até uns 20 anos atrás. Antes, o recurso ao sacrifício do animal era legítimo e banal. Mas agora, da mesma forma que não aguentamos mais matar galinha para prepará-la no almoço, não conseguimos mais pensar em executar um bicho, mesmo que seja por misericórdia. Não existe mais eutanásia para os bichos de estimação. O sacrifício se converteu em tabu. Até o verbo “sacrificar” é proibido de ser mencionado.

Como as coisas mudaram. Quando eu tinha 8 anos, em 1968, perdi meu cachorro de estimação. Ele foi envenenado com um bolo de carne. Lembro como sofri ao ver o animal estirado, agonizante, olhando para mim como dizendo adeus. E de meu pai dizendo que o veterinário daria uma injeção para que ele descansasse e não sofresse mais. Anos mais tarde, outro cachorro meu teve de ser sacrificado porque já não conseguia mais andar. Tive de me acostumar com a situação. Esses acontecimentos para uma criança dos anos 60 e 70 funcionavam como um ensaio para enfrentar os fatos da vida, da morte da finitude. Éramos assim treinados para lidar com a morte de entes queridos, que cedo ou tarde ia acontecer. No meu caso, quando aconteceu, não adiantou nada. Sofri a perda de meu pai, de parentes e de amigos do modo mais doloroso possível.

Com o tempo e a maturidade, vamos perdendo a sensibilidade para sentir a perda de mascotes. Desenvolvi uma carapaça, um escudo, que, na impressão de minhas filhas, por exemplo, me faz parecer duro com os animais. Explico a elas que é uma forma de anestesia para não sofrer tanto. Uma anestesia cujo efeito passa tão logo me deparo com um animalzinho como Sissi sofrendo desamparado na minha frente. Não acredito na tal “escola do sofrimento”. A gente sofre, tem de sofrer – e pronto. É um fato inevitável e devastador da existência.

Fiz essa digressão para explicar que o sacrifício de um animal é algo que para mim não é escandaloso. Não gosto da ideia da eutanásia humana, mas compreendo que o indivíduo tem direito de não sofrer. Os animais não têm vontade, e, por isso, somos responsáveis por eles. Se notamos que a vida deles está insustentável, não vejo por que não aliviar o sofrimento com uma injeção.

Por isso, como um ser arcaico, tentei explicar às minhas filhas sobre a situação de Sissi, sobre o destino dos bichos, que vivem menos que a gente e têm de morrer, e precisamos enfrentar a situação. “Mas ela ainda resiste, ela vai melhorar, ela não pode morrer, ela é meu bebê”, disseram.

Não prossegui na conversa, com medo de parecer um monstro. Mas o que fazer se ela continuar a ter convulsões? Os recursos da veterinária evoluíram de forma a prolongar a vida dos bichos – e isso não me parece ter sentido. Até os veterinários devem me considerar um ser cruel e impiedoso. Antigamente, eles executavam os animais condenados. Hoje, pensam trezentas vezes antes de praticar o ato. Eles também são contaminados pelo tabu da humanização dos bichos. Hoje é obrigação ser politicamente correto até com os vira-latas. Hoje eles são chamados “cães sem raça definida”. Não há mais carrocinhas, mas “centros de controle de zoonoses”. E assim por diante.

Vou ser muito sério agora. Se você, domesticado tutor de animal de estimação tivermos de sacrificá-lo porque foi desenganado – e, pior, tiver crianças em casa -, terá de enfrentar o seguinte dilema: ou proceder à execução sem dar maiores explicações, o que é encobrir a realidade, ou manter o bicho agonizando até morrer, e assim mostrar a pessoas imaturas como a vida é dura e triste. Você terá de optar por dois tipos de sacrifício. De qualquer das duas formas, não há religião que console quem sofre, com a promessa de um céu para cães e gatos. O que você faria no meu lugar? Eu continuo a alimentar a esperança de que Sissi viva. Vou enfrentar quaisquer das situações, mas minhas filhas não estão preparadas para isso. Elas e muita gente.

A mudança de condição dos mascotes, de animais de estimação a seres quase-humanos, requer uma mudança no plano ético e moral de nossa parte. Os antigos valores em relação aos animais já não valem mais nada. Talvez a solução seja criar um sistema legal, religioso e médico que nos ajude, animais e cidadãos, a prevenir os danos de sermos mortais.

Fonte: Época

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