Confesso que não sei o que “beijinho no ombro” significa. Sou alheio aos bordões de novela que vejo as pessoas repetirem, tampouco conheço os bordões do Zorra Total, do CQC, do Pânico ou de qualquer programa popular de TV que seja. Desconheço os memes que circulam na internet, eles para mim não fazem sentido, não sei como essas coisas pegam.
Escrevo isso porque não entendi quando um amigo me falou do tal do Desafio do Balde de Gelo, que foi o vídeo mais acessado na história do Youtube até hoje. Achei em princípio que se tratasse de uma competição auto-destrutiva, onde ganhava quem tirasse por último a mão de um balde cheio de gelo. Mas ele me disse que havia uma relação com a Esclerose Lateral Amiotrófica – ELA (ALS, em inglês), que eu já sabia ser a doença de que sofre Stephen Hawking. Me interessei e resolvi pesquisar.
O desafio em si é desinteressante como todo meme ou bordão, coisa da moda que vem e vai. Se a gente tiver de explicar perde toda a graça, que já não é nenhuma. Mas nesse caso a proposta tem uma suposta razão humanitária, pois pelo menos no início da brincadeira, desafiador e desafiado realizavam doações para a pesquisa da doença.
Uma provável origem para a brincadeira pode ter sido o “Cold Water Challenge”, onde ou o desafiado doava US$ 100 para a pesquisa do câncer ou pulava em uma piscina de água fria. Daí para o “Ice Bucket Challenge”, e sua vinculação à Esclerose Lateral Amiotrófica, foi um passo.
O movimento tornou-se viral nas redes sociais após o ex-capitão de beisebol norte-americano Pete Frates, portador da doença, postar na rede um vídeo na qual desafiava algumas pessoas a contribuir com a ALS Association.
Logo os famosos dos EUA (entre eles o ator Robert Downey Jr, a apresentadora Oprah Winfrey, o co-fundador da Microsoft Bill Gates, o executivo-chefe de Facebook, Mark Zuckerberg, o ex-presidente americano George W. Bush entre muitos outros) aderiram à campanha e publicaram no Youtube seus próprios vídeos entornando baldes de água gelada na cabeça.
O fenômeno foi replicado em todo o mundo: centenas, milhares de vídeos apareciam nas redes sociais. Em menos de 1 mês, a campanha já havia conseguido arrecadar mais de 16 milhões de dólares em doações e hoje, meses depois, são centenas de milhões de dólares.
Bem, não preciso dizer que o desafio já perdeu em grande parte seu sentido original, sendo agora usado para os amigos se desafiarem mutualmente, cobrarem antigas dívidas ou simplesmente não realizarem qualquer movimentação de dinheiro.
A graça agora está em entornar um balde de água gelada na cabeça. A proposta inicial, de conscientizar as pessoas para a Esclerose Lateral Amiotrófica e arrecadar dinheiro para sua pesquisa se tornou secundária.
Mas mesmo para os casos em que as pessoas continuaram brincando e arrecadando fundos para a pesquisa, cabem as indagações: Que pesquisas são essas que estamos financiando? Animais estão envolvidos nelas?
A Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)
Trata-se de uma doença rara (acomete 1,5 pessoa a cada cem mil pessoas no mundo) que se caracteriza pela degeneração progressiva dos neurônios motores (responsáveis pelos movimentos de contração e relaxamento muscular) que perdem sua capacidade de transmitir os impulsos nervosos, enfraquecendo a musculatura do indivíduo e causando atrofia e deterioração dos músculos.
Antes da morte completa dos nervos e músculos, os pacientes experimentam muitas cãibras, tremores musculares (fasciculação), reflexos exaltados, atrofias, espasmos e diminuição da sensibilidade. Em alguns casos mais agressivos o paciente perde o controle sobre a mastigação e a fala.
Interessante sobre a doença é que ela afeta tão somente os neurônios motores (sistema eferente) não afetando os neurônios sensoriais (sistema aferente). Assim, todas as funções sensoriais e intelectuais do paciente se mantêm, tanto que Stephen Hawking diagnosticou sua doença em 1963 e ainda hoje é considerado um dos homens mais inteligentes vivos, além de um dos mais proeminentes cientistas na ativa.
Não sabemos as causas da doença, possivelmente uma combinação de fatores genéticos e ambientais desconhecidos e a própria idade do indivíduo. Sabemos que ela ocorre com maior frequência em homens caucasianos e, geralmente, mais velhos (entre 45 e 50 anos).
Possivelmente fatores ambientais de risco para o desenvolvimento da doença sejam o consumo excessivo de glutamato, atividades físicas intensas, o paciente ter sofrido algum tipo de trauma mecânico, ou ter sido vítima de choque elétrico, a exposição a determinados pesticidas agrícolas, entre outros.
Há uma lista de personalidades afetadas pela doença, em sua maioria atletas: Washington, jogador de futebol que jogou no Clube Atlético Paranaense, no Fluminense e na seleção brasileira; o jogador polonês Krzysztof Nowak, que também jogou no Atlético Paranaense; o jogador de baseball Lou Gehrig, entre outros.
Geralmente os pacientes que começam a apresentar sintomas da doença procuram ortopedistas, que os recomendam para outros ortopedistas, passando o paciente por 4 ou 5 médicos até que se desconfie da doença e se busque por um neurologista. Até o momento, o diagnóstico confirmado só pode ser obtido de 10 a 11 meses após o início das investigações. Não há tratamento, mesmo nas fases iniciais da doença, aliás não há diagnóstico precoce, e menos ainda uma cura.
O que a medicina pode fazer pelo paciente, nesse momento, é melhorar sua qualidade de vida, cuidando de sua alimentação adequada, hidratação, normalização de sua respiração, controle de salivação, de micção, evacuação, da dor, e também de seu controle emocional.
Os medicamentos riluzol e a gabapentina tem sido utilizados para retardar o avanço da doença, com alguma efetividade, mas não muita. Seus efeitos adversos também são bastante severos, sendo as mais comuns: fraqueza, náusea, dor de cabeça, dor abdominal, dores no corpo, vômito, tontura, batimento rápido do coração, sonolência e alteração na sensibilidade perioral.
Em grande parte, as pesquisas sobre Esclerose Lateral Amiotrófica se concentram em buscar uma formula mais efetiva e menos agressiva que o rizulol para deter o processo de degeneração dos neurônios motores, provavelmente com a utilização de vários fatores neurotróficos.
Pesquisas relacionadas à ELA
Nos últimos anos tem aumentado o número de pesquisas relacionados à Esclerose Lateral Amiotrófica, sendo parte dessa pesquisa realizada em pacientes reais, parte dela em tecidos in vitro e muitas dessas, infelizmente, pesquisas infrutiferamente realizadas em animais de laboratório.
É da pesquisa com pacientes reais e com tecidos humanos in vitro que deriva todo o nosso conhecimento sobre ELA. Foi mediante o estudo em pacientes reais que se observou que entre 2 e 3% dos acometidos pela doença possuíam uma mutação do gene SOD1, que produz uma proteína tóxica aos neurônios motores. Embora percentualmente essa quantidade seja baixa, ela auxilia na compreensão da forma como os neurônios se degeneram em todos os pacientes, com ou sem a mutação.
Foi também observando populações da etnia Chamorro, de Guam, cuja prevalência da doença é cem vezes maior do que das populações de forma geral, que os pesquisadores relacionaram a degeneração dos neurônios à neurotoxicidade do glutamato. O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório do sistema nervoso central. Não se sabe exatamente como, mas o rizulol inibe os processos oxidativos relacionados ao glutamato, daí a ideia de utilizá-lo para retardar essa ocorrência.
Há alguns modelos para ELA in vitro, como os que utilizam culturas de neurônios motores, não sendo necessária a realização de qualquer tipo de pesquisa em animais de laboratório. Aliás, não existem modelos animais para a pesquisa de ELA. Utilizando modelos in vitro foi possível, por exemplo, testar novos tratamentos, como verificar os efeitos neuroprotetivos da eritropetina.
Há defensores da pesquisa em animais que argumentam que foram as pesquisas em ratos que demonstraram uma correlação entre a lesão das células e a carência da proteína parvalbumina. No entanto, esses ratos utilizados nos experimentos não possuíam Esclerose Lateral Amiotrófica, mas quadros clínicos análogos provocados por outras degenerações neurológicas.
A correlação entre a carência de parvalbumina e alguma deficiência no processo fisiológico de contratação muscular é óbvio, dado o papel conhecido da proteína no organismo. Portanto, ainda que ratos tenham sido utilizados, os resultados obtidos não dependiam da utilização do modelo animal, nem se pode dizer que foram conclusivos. Esses estudos apenas atestaram que ratos com alguma degeneração neurológica apresentavam carência de parvalbumina, o que já se podia supor com base em conhecimento anterior.
O desperdício de tempo e dinheiro em pesquisas com animais apenas retardará a descoberta das causas e da cura para a Esclerose Lateral Amiotrófica. Apenas estudos em pacientes reais e suas famílias, aliado aos estudos in vitro poderá nos levar em direção à solução do problema e à melhoria na vida dos pacientes já acometidos pela doença.
Associações de Esclerose Lateral Amiotrófica e a experimentação animal
Ver uma pessoa publica ou um amigo entornar um balde de água gelada na cabeça certamente chama a atenção. Melhor ainda se essa ação chamar a atenção para uma causa nobre, como uma doença altamente degenerativa e debilitante, e puder levantar fundos para sua pesquisa. O problema está na forma como essa pesquisa é realizada e o potencial que essa pesquisa tem de ser extrapolada para pacientes reais, humanos.
Algo que os doadores e arrecadadores não sabem, mas grande parte dos recursos obtidos pelas Associações de ELA mundo afora, e isso inclui a Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (AbrELA), destinam-se a tentar criar um animal modelo que expresse a doença. Animais “modelo”, mesmo quando “programados” para apresentar sintomas análogos à doença, não apresentam a doença de fato. Eles não são representativos dos pacientes reais. Não são “modelos” de fato.
Outro grande sumidouro de recursos são as tentativas de se desenvolver novos medicamentos, mais efetivos e seguros para os pacientes, utilizando testes toxicológicos em animais de laboratório. Ora, é sabido que entre 80% e 90% das drogas que se mostram seguras ou efetivas para animais de laboratório se mostram inefetivas e inseguras quando aplicadas aos seres humanos.
De toda forma, os primeiros seres humanos a serem submetidos a determinado tratamento acabam sendo as verdadeiras cobaias. São eles a experimentar os efeitos e a toxicidade dos diferentes compostos em seres humanos.
Conforme mostrado, as principais descobertas em relação à Esclerose Lateral Amiotrófica derivaram de estudos epidemiológicos, clínicos e in vitro, e não há porque acreditar que no futuro isso seja diferente.
Jamais a pesquisa em animais poderá estabelecer as causas que levam uma pessoa a desenvolver ELA. Jamais essa pesquisa trará benefício relevante na busca pela cura. A experimentação animal é um desperdício de vidas humanas, animais, recursos financeiros e tempo.
Infelizmente, as Associação de Esclerose Lateral Amiotrófica continuarão focando seus recursos na pesquisa com animais, tornando o desafio do balde de gelo um subsídio à experimentação animal.
Há outras associações que se dedicam ao estudo da doença sem fazerem uso da exploração animal. Essas associações tem maior potencial de ajudarem seres humanos, simplesmente porque sua pesquisa é completamente focada em descobrir as causas da doença e sua cura em seres humanos. Um exemplo de associação que trabalha nesse sentido é a “Compassionate Care ALS”.
Doar dinheiro para auxiliar na pesquisa de uma doença tão séria e debilitante vale um balde de água gelada na cabeça, em verdade vale um auto-sacrifício até bem maior. Mas certamente não justifica a utilização de animais em pesquisa. Pense nisso antes de doar para uma instituição, pesquise em que tipo de pesquisa seu dinheiro será utilizado.
E se o dinheiro será usado para prejudicar animais e atrasar a cura humana, jogue um balde de água gelada em cima da instituição. Não desperdice seu dinheiro doando para quem prejudica animais e atrasa o desenvolvimento da ciência.