Fernando Capez é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Ingressou no Ministério Público em 1988, onde Integrou o primeiro grupo de Promotores responsáveis pela defesa do patrimônio público e da cidadania. É professor, palestrante e tem 60 livros publicados. Por conta de sua atuação como promotor de justiça, professor, palestrante e doutrinador, em 2006, foi eleito Deputado Estadual, pelo PSDB, e, ato contínuo, ocupou o cargo de Presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa. Em maio de 2009, foi reeleito para exercer o mandato no 2º biênio. Como parlamentar, trabalhou incessante e exaustivamente na defesa dos direitos dos consumidores, dos servidores públicos, da saúde, do meio ambiente, da segurança pública e no combate aos maus-tratos contra animais. Estes últimos foram objeto de especial atenção do Deputado, levando-o a sugerir, junto ao chefe do Ministério Público do Estado, Fernando Grella Vieira, a criação do Grupo de Atuação Especial de Defesa Animal, e, a realizar a Indicação n. 684/2010, na qual recomenda ao Governo do Estado a criação da Delegacia de Proteção aos Animais. Para explicar em detalhes a sua trajetória profissional, principalmente, o seu trabalho no combate aos maus-tratos aos animais, Capez concedeu essa entrevista exclusiva à equipe da ANDA.
ANDA – Deputado, seu trabalho ganhou destaque pela atuação no Ministério Público Estadual (MPE), em especial na área criminal. Fale-nos brevemente sobre o que faz um Promotor de Justiça e relate sua trajetória no combate à violência por meio do MPE e da Assembléia Legislativa de SP.
Fernando Capez – O Ministério Público constitui instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Para tanto, o Promotor de Justiça poderá instaurar inquérito civil e propor ações civis públicas; promover privativamente as ações penais públicas e requisitar diligências investigatórias etc. A defesa da coletividade, portanto, é a marca da instituição, sobressaindo-se uma de suas bandeiras: a luta contra a violência em todas as formas, bandeira esta que trago comigo até hoje como Parlamentar.
Com efeito. Ingressei no Ministério Público em 1988, onde, inicialmente, atuei no Tribunal do Júri e me deparei com repugnantes casos de crimes dolosos contra a vida, como o “Monstro de Ibaté”, assassino e estuprador de crianças. Após experiência no referido Tribunal Popular, integrei, por 13 anos, o primeiro grupo de Promotores responsáveis pela defesa do patrimônio público e da cidadania. Nessa Promotoria, destaquei-me pelo combate às torcidas organizadas e a “máfia do lixo”. Amante do futebol, em 1994, quando alguns torcedores morreram diante das câmeras de televisão, comecei a investigar a ação das torcidas organizadas, que se tornaram associações extremamente violentas e perigosas para a vida e integridade dos cidadãos. Nesse trilhar, propus ações visando à dissolução das torcidas Mancha Verde, Independente (1995), e Gaviões da Fiel (1998). Como resultado, várias delas foram processadas e proibidas de entrar nos estádios, tiveram seus patrimônios confiscados e os registros cancelados em cartório. Logo que foi operada a extinção das torcidas, constatou-se uma redução efetiva dos índices de vandalismo nos estádios e fora deles, inclusive nas linhas do metrô. Como Promotor, também, realizei diversas operações conjuntas com as Polícias Civil e Militar visando extirpar os pontos de venda de drogas e prostituição infantil no centro de São Paulo, o que me levou a formular algumas propostas de combate à violência, nas quais estabeleci a importância de fortalecer a confiança das comunidades em relação às polícias. Esse histórico de vida certamente influenciou a minha carreira como Deputado Estadual, pois propus projetos de lei que objetivam justamente evitar a violência nos estádios, como aquele que dispõe sobre liberação de jogo em estádio de futebol somente se os lugares estiverem numerados; formulei projetos ligados à segurança pública, batalhando por melhores condições de trabalho para as Polícias Civil e Militar. Finalmente, criei o 1° Encontro Estadual sobre Tráfico de Pessoas”, almejando chamar a atenção para a prática tão execrável que é o “mercado de pessoas”, em especial de mulheres e crianças, para a exploração sexual, considerado o terceiro maior sustentáculo das organizações criminosas. Portanto, na minha trajetória de vida sempre empreendi esforços contra todas as formas de violência e como homem público procurei e sempre buscarei perpetuar essa missão.
ANDA – Por que o senhor apresentou ao Procurador – Geral de Justiça o pedido de criação da Promotoria de Defesa Animal? O ineditismo da proposta dificultou sua aceitação?
Fernando Capez – Como vocês podem constatar, o combate à violência sempre norteou a minha trajetória de vida. É sem dúvida o meu móvel propulsor, pelo meu próprio histórico profissional. Quando, por intermédio do Coordenador da “Sentiens Defesa Animal”, Sr. Maurício Varallo, tomei conhecimento da grande crueldade e maus-tratos perpetrados contra animais e do descaso dos Poderes Públicos em relação à questão, não pude ficar insensível à causa. O abuso contra aqueles é algo muito triste e repugnante. O seu combate tem dois vieses: primeiramente a proteção dos animais em si considerados contra toda forma de brutalidade que lhe cause dor e sofrimento, pois Constituição Federal tutela a sua integridade; em segundo lugar, serve para evitar outras formas de agressão a diferentes bens jurídicos, pois aquele que mata um cavalo, incendiando-o, por exemplo, rompe com todas as barreiras éticas que o levarão a praticar diversos delitos, como um homicídio. O Estado não pode compactuar com tal estado de coisas. Não é por outro motivo que solicitei ao Procurador-Geral de Justiça, Fernando Grella Vieira, a criação da Promotoria de Defesa Animal no Estado ou do Grupo de Atuação Especial, com atribuição para tutelar os animais silvestre, doméstico ou domesticados, nativos ou exóticos. Ele, como representante do Ministério Público, foi bastante aberto à proposta e se comprometeu a analisá-la, sensibilizado por esse forte movimento que vem se alastrando por outros Estados.
ANDA – Quais serão as atribuições do Grupo Ação Especial de Defesa Animal que o Procurador- Geral se comprometeu a criar em SP e quais as vantagens de primeiramente ser criado um grupo especial e não uma promotoria?
Fernando Capez – Com a criação do Grupo de Atuação Especial de Defesa Animal, a questão ficará concentrada em um único órgão e com atribuições cumulativas, proporcionando uma tutela mais efetiva do animal e facilitando a vida do cidadão, que saberá a quem recorrer. Esse grupo também propiciará que as demandas e as providências emergenciais sejam pleiteadas de imediato e os animais, principalmente em situação de risco, protegidos. É sabido que a demora no atendimento pode representar maior sofrimento ou a morte deles. Ora, nenhum outro órgão estatal possui à sua disposição tantos instrumentos administrativos ou processuais hábeis a impedir situações de maus-tratos: poder requisitório, inquérito civil, termo de ajustamento de conduta, recomendação, cautelar de busca e apreensão, denúncia criminal, ação civil pública etc. Assim, será possível, por exemplo, propor ao responsável pela infração a celebração de um termo de compromisso de ajustamento de conduta, que contemple regras de tratamento adequado ao animal. Outro importante papel do grupo é que este poderá elaborar estudos, diretrizes, pareceres que poderão pautar a atuação uniforme dos agentes públicos na defesa dos animais, juntamente com o auxílio de equipes multidisciplinares compostas por entidades protetoras dos animais, veterinários, biólogos, agentes sanitários etc, na medida em que há uma certa dificuldade em se definir os maus-tratos e abuso contra animais. Esse grupo também possibilitará colher dados estatísticos envolvendo os animais, sobretudo, domésticos e domesticados, e estudar medidas junto aos órgãos públicos competentes que viabilizem a proteção dos animais como um todo, tornando a aplicação da lei efetiva. Finalmente, constituirá importante instrumento para o combate ao tráfico e ao comércio ilegal de espécies da fauna, muitas ameaçadas de extinção. Note-se esse grupo poderá contar com a atuação conjunta de diversos Promotores, similarmente ao que ocorre com o GAECO, que é responsável pelo combate ao crime organizado. Com o grupo não será necessário aguardar o envio de projeto de lei pelo Ministério Público à Assembléia Legislativa para a criação do específico cargo de Promotor de Justiça da Defesa Animal. A instituição do cargo ficará para uma etapa posterior, caso a demanda do grupo assim justifique.
ANDA – Em maio deste ano o senhor protocolou uma indicação ao Governador de SP (nº 684/2010) para a criação também da Delegacia de Proteção aos Animais na capital paulista, no que foi seguido por outros parlamentares. Qual a necessidade de se criar este órgão?
Fernando Capez – Há desinteresse das autoridades competentes para a apuração desse crime, acarretando a ausência de informações quanto aos procedimentos a serem adotados quando constatado maus-tratos contra animais. Segundo relatos, o atentando contra animais domésticos ou domesticados permanece na zona fronteiriça, ao contrário dos silvestres ou exóticos, sendo a o registro de sua ocorrência desaconselhado pelas autoridades, o que leva a população a solicitar a ajuda às ONG’s, que não possuem muitos instrumentos para fazer cessar a situação de risco aos animais. Além disso, há um profundo despreparo dos indivíduos (polícia, agentes municipais etc) incumbidos de receber as denúncias relativas aos maus-tratos contra eles; etc. Basta verificar a dificuldade enfrentada por policiais e agentes sanitários na interpretação do art. 32 da Lei Federal n. 9.605/98. O crime se perfaz não só com a ocorrência de lesões, mas também com a prática de abuso e maus-tratos, os quais, muitas vezes, não deixam vestígios, por exemplo, privação de cuidados de higiene que incluem banho e limpeza do ambiente. Tal situação, no entanto, por desconhecimento, não é enquadrada no art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais. Com a criação da delegacia, haverá uma equipe adredemente preparada para receber as denúncias de violência contra animais. E, melhor, a população saberá a quem recorrer, não contando com aquele inconveniente das autoridades que equivocadamente não registram a ocorrência por considerar a “insignificância” do bem a ser protegido.
ANDA – Já existem alguns órgãos públicos ligados à proteção dos animais, como delegacias especializadas, conselhos municipais, etc. Como o senhor vê o crescimento do movimento de defesa animal e qual a importância do Poder Público no combate aos maus-tratos?
Fernando Capez – O crescimento do movimento de defesa animal em todo País constitui, sem dúvida, um grande avanço em nossa democracia, a qual não pode compactuar com qualquer forma de violência. Existem padrões éticos que devem nortear a atuação do indivíduo e o Estado deve zelar para evitar que o rompimento de tais padrões passe a ser algo corriqueiro. Sem dúvida, no momento em que o Estado previne e reprime a violência contra os animais, vela para que isso não se torne a referência e padrão na coletividade. Cumpre ao Poder Público a importante tarefa de imprimir numa sociedade quais os deveres éticos-sociais que devem ser respeitados. No instante em que o Estado é leniente, isto é, não reprime adequadamente a crueldade contra os animais, passa para o cidadão a idéia de menoscabo para o bem jurídico protegido, de que pouco vale a proteção do mesmo, e toda a população passa a agir imbuída pelo mesmo juízo de valor. Daí vem a relevância de sua atuação. Na ocasião em que demonstra a importância de se proteger a vida do animal, por intermédio de ações contundentes, inibe a conduta dos indivíduos violadora desses deveres. É preciso prevenir e reprimir toda forma de violência ab initio para que não desencadeie a ofensa a outros bens jurídicos também de importância vital para o Estado Democrático de Direito.
ANDA – Como o senhor avalia a proposta de mudança do artigo 32 da lei federal 9605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), prevista no PL 4548/98, que pretende descriminalizar os maus-tratos aos animais domésticos e domesticados?
Fernando Capez – É um verdadeiro absurdo. Ao se levar adiante tal Proposta Legislativa, será reputada ilícita apenas a prática de crueldade contra animais silvestres, nativos ou exóticos. Com isso teremos a abominável situação: torturar uma espécie da fauna, como um macaco, será considerado um ato criminoso reprovável, ao passo que jogar ácido, torturar um cão ou incendiar um gato será um irrelevante penal. Por que proporcionar tratamento díspar a situações assemelhadas? Ora, a reprovabilidade da conduta do autor é a mesma em ambas as formas de crueldade praticadas. Estamos diante do mesmo desvalor da ação, o que impõe idêntica punição. Além disso, tal propositura “fere de morte” postulados éticos-sociais do Estado Democrático de Direito.
ANDA – O senhor crê em vínculos entre a violência contra animais e a violência contra humanos?
Fernando Capez – Realmente, estudos desenvolvidos pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) têm convencido a comunidade no sentido de que os atos de crueldade contra animais podem ser os primeiros sinais de uma violenta patologia que pode incluir vítimas humanas. Assim, os chamados serial killers, muitas vezes, iniciam o processo matando ou torturando animais quando crianças. Tal estudo faz bastante sentido, pois, como já disse, aquele que rompe seus padrões éticos por intermédio de abusos, torturas, maus-tratos contra animais, é capaz, sem dúvida, numa escala da criminalidade, de matar, friamente, um ser humano. Por força disso, o Estado não pode compactuar com qualquer modalidade de crueldade, inclusive, contra animais, pois também é uma forma de violência manifestada pelo homem que pode se convolar em outros reprováveis atos contra a própria sociedade.
ANDA – Medidas coercitivas não se mostram suficientes para combater a violência. Que outras ações podem ser tomadas pelo Poder Público nesta área, em especial pelo Legislativo?
Fernando Capez – Vivemos nos dias de hoje uma crise geral. Fala-se em crise nos órgãos de segurança pública, no sistema penitenciário, etc., sempre desconsiderando o fato de que todo esse estado de coisas é um reflexo da crise da sociedade em seus mais amplos espectros. A trajetória de violência que vem se desenvolvendo em nosso país é produto de uma das mais graves crises: a da educação, pedra angular da formação dos indivíduos e do Estado Democrático de Direito. Quando esse segmento da atividade humana fracassa, não há política de segurança pública que possa conter a onda de criminalidade. Sem as normas educacionais, morais e religiosas, que atuam na formação e na inibição do indivíduo para a prática de crimes, dificilmente o Estado conseguirá conter a criminalidade.
Há, portanto, inúmeras ações que devem ser realizadas, que não se resumem apenas à repressão do crime. Esta é extremamente importante, mas não tem o condão de isoladamente romper com esse grande círculo vicioso da criminalidade.
Nesse sentir, é preciso um trabalho de conscientização da população sobre a gravidade da questão dos maus-tratos contra animais. Muitas vezes, parcela significativa da sociedade não tem ciência da dimensão de determinadas questões, e, por isso, não exerce qualquer pressão social. Como exemplo, posso citar o “1º Encontro Estadual de Tráfico de Pessoas” por mim promovido, neste ano, como Deputado Estadual, na Assembléia Legislativa. A mídia muito fala do tráfico de armas e drogas e muitos não têm a mínima idéia de como se opera o “mercado de pessoas”. O Encontro veio justamente com essa finalidade: chamar a atenção da mídia para o tema e obrigar a conscientização e adoção de medidas contra tal prática tão execrável. É preciso que essa conscientização também ocorra em relação à causa animal.
A maioria das pessoas não tem noção de como se configura o crime, dada a dificuldade de sua definição, nem da importância da tutela do bem jurídico. Cumpre, portanto, ao Poder Legislativo também fazer esse trabalho de conscientização por intermédio de seminários, debates públicos, visando também estudar medidas junto aos órgãos públicos competentes que viabilizem a proteção dos animais como um todo, tornando a aplicação da lei efetiva. O Poder Legislativo, sem dúvida, pode constituir um importante instrumento de pressão. Que a comunidade, portanto, se mobilize pela proteção de todos os animais, pois a prevenção e a repressão de qualquer forma de crueldade, tortura, maus-tratos constitui acima de tudo um postulado ético-social do Estado Democrático de Direito.