No interior da Bahia, próximo ao local onde o Rio São Francisco foi barrado para a construção da hidrelétrica de Sobradinho, existe um santuário de conservação da Caatinga. O Boqueirão da Onça é uma região de mais de um milhão de hectares de vegetação nativa bem conservada, com poucos povoados humanos e uma biodiversidade muito grande para os padrões do semi-árido brasileiro. Há registros da existência da arara-azul-de-lear, uma espécie classificada como Vulnerável e, em 2006, descobriu-se que a área possui uma das poucas populações de onça ainda existentes da Caatinga. A onça é classificada como Criticamente em Perigo no bioma. Além disso, o Boqueirão possui as duas maiores cavernas da América Latina. Todas essas características fizeram com que a região fosse considerada prioritária para a conservação no Brasil.
Ambientalistas reivindicam a criação de uma unidade de conservação no local, e um projeto para transformar o Boqueirão em Parque Nacional existe desde 2002. No entanto, enquanto o projeto não anda, pesquisadores temem que esse santuário de conservação possa estar ameaçado, ironicamente, por outro campeão ambiental: a energia dos ventos. As usinas eólicas não lançam gases poluentes que causam o aquecimento global. Mas a sua construção também causa impacto – usa-se concreto, ferro, e muitas vezes é preciso derrubar a mata nativa para erguer as torres. Acontece que ao mesmo tempo que o Boqueirão da Onça é uma área prioritária para a conservação, é também uma das regiões com maior potencial de geração de energia pelo vento do Brasil.
Segundo Angela Kuczach, pesquisadora da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem, a instalação desses projetos eólicos não está sendo feita da forma adequada na região, o que coloca em risco não só onças e araras, como também a população local. “Ninguém é contra energia eólica. É energia limpa, não gera gases de efeito estufa. O problema é a forma que está sendo feito”, diz.
A pesquisadora voltou recentemente de uma viagem no local e encontrou um cenário preocupante. Estradas enormes foram abertas para transportar as torres, derrubando a mata nativa. Ainda não se sabe se a região suporta a construção dessas torres – a Caatinga é um bioma muito frágil, e qualquer mudança pode comprometer não apenas a biodiversidade como também a agricultura de subsistência da população. Mais preocupante ainda é a questão da água. Em uma região de pouca incidência de chuvas, a população local, que já conta com poucos recursos, vive com menos de 450 litros de água por família por semana. A construção das torres eólicas, no entanto, consome cerca de 150 mil litros de água. “Não existe uma avaliação sobre o quanto está sendo retirado de água da região. Não se sabe se essa água vai afetar as nascentes do Boqueirão da Onça, que abastecem toda a população do entorno, além da fauna e flora”, diz Angela.
A tese de que os parques eólicos estão sendo construídos sem o devido estudo de impacto ambiental é refutada pela Abeeólica, a associação das empresas do setor. Segundo Elbia Melo, presidente da associação, todos os empreendimentos passam por estudos ambientais antes mesmo de participar dos leilões do Ministério de Minas e Energia. “A empresa só consegue a licença depois de fazer um estudo muito apurado. O órgão licenciador não permite que parques eólicos sejam licenciados sem esse estudo”, diz.
A desconfiança de ambientalistas é de que esses estudos foram feitos às pressas, já que a expansão das eólicas acontece com muita rapidez. O primeiro leilão de energia eólica do governo federal foi feito em 2009. Em menos de dois anos, mais de 50 torres foram erguidas em toda a Bahia. O Plano Decenal de Expansão de Energia, da EPE, mostra que a região de Boqueirão da Onça é um dos principais focos de eólicas no Estado. Já foram instalados 48 MW em Sobradinho, 86 MW em Sento Sé e 180 MW em Casa Nova. A expecativa é que, em 2016, o Nordeste tenha mais de 450 projetos em funcionamento, com 12 mil MW de potência instalada.
“Essas empresas de energia eólica são importantes, geram energia limpa, trazem recursos para uma das regiões mais pobres do país. Nós só queremos que esses projetos sejam feitos do jeito certo”, diz Angela. Para ela, a única forma de conciliar esse rápido crescimento das eólicas na região é transformar o Boqueirão da Onça em uma unidade de conservação o mais rápido possível. “O parque tem que ser decretado rápido, com 600 mil hectares no mínimo, para suportar a população das onças. Isso garantiria a conservação do local”, diz Angela. Segundo ela, se a área da unidade de conservação for muito pequena, a fauna teria dificuldades para encontrar água e comida, e a região poderia se transformar em uma floresta vazia.
A proposta de criação do Parque Nacional do Boqueirão da Onça existe desde 2002. O projeto inicial previa a criação de uma unidade de conservação com mais de um milhão de hectares. A proposta não andou, e só foi retomada em 2008, quando foram feitas consultas públicas com a população local.
No projeto atual, o parque nacional foi substituído por um mosaico com três unidades de conservação que somam cerca de 850 mil hectares. Desses, apenas 320 mil hectares continuam com a proteção integral. 106 mil hectares foram definidos como monumento natural, onde estão as cavernas, e 423 mil foram definidos como Área de Proteção Ambiental (APA). Essa classificação permite a manutenção de atividades produtivas. Segundo o ICMBio, a mudança foi feita para evitar conflitos com a população e permitir a existência de atividade econômica – incluindo as usinas eólicas – na região. O instituto promete encaminhar o projeto ao Ministério do Meio Ambiente no final de março. A partir de então, caberá ao ministério decidir enviar o parque ao gabinete da presidente Dilma Rousseff. É importante que o parque saia do papel, porque o Brasil precisa da energia dos ventos, mas não pode deixar de conservar suas cavernas, onças e araras.
Fonte: Época