Uma das maiores ONGs de proteção dos animais no mundo ficou famosa nos anos 1980 combatendo touradas e práticas de crueldade contra animais, mas ampliou muito seu escopo desde então para cuidar de outro problema: o clima do planeta. Após trocar de nome para Proteção Animal Mundial (World Animal Protecion) em 2014, a antiga Sociedade Mundial Protetora dos Animais concentra foco agora em duas causas que considera “sistêmicas”: o bem-estar de animais de fazenda e a preservação da biodiversidade.
Mais alinhada com a agenda ambientalista internacional, a organização argumenta que a luta contra crise do clima também tem muito a ver com sua missão de base. Em visita ao Brasil, a CEO da World Animal Protecion, Tricia Croasdell, falou ao GLOBO sobre seu trabalho à frente da entidade.
Vocês são uma organização de proteção animal e estão muito engajados agora no combate à mudança climática. Onde essas duas agendas se encontram?
Na World Animal Protection reconhecemos que tudo está interconectado. Nossa estratégia é melhorar a vida de animais de fazenda e assegurar que animais selvagens vivam livres de cativeiro e de commoditização. Mas há um ponto de contato, e aquilo que vemos é um sistema de produção de alimentos que está cada vez mais ambientalmente destrutivo e destruindo os habitats de animais selvagens.
Nós colocamos os animais no cerne dessas questões, que vão transformar o mundo, mas também enfocamos os animais por acreditarmos estarem conectados com a saúde humana, com a biodiversidade e com o desmatamento.
Nós tratamos de como podemos melhorar esses sistemas. Nos últimos quatro anos, viramos uma organização de campanha mais sistêmica. Estamos tentando transformar os sistema de produção de alimentos, tentando transformar a maneira com que animais selvagens são tratados e, para fazer isso, precisamos trabalhar com várias organizações na área de clima e ambiente.
Estivemos recentemente na COP29, a última conferência do clima da ONU, para assegurar que a mensagem sobre bem-estar animal seja ouvida. É preciso que a questão seja considerada na economia de nossos sistemas, particularmente na produção de alimentos. O bem-estar dos animais está ligado à solução para o clima.
O que a traz ao Brasil desta vez?
São duas razões. Primeiro, eu quis passar algum tempo com nossa equipe brasileira, porque assumi o posto global de CEO muito recentemente, em julho deste ano. Antes disso eu fui diretora nacional no Reino Unido por dois anos. É importante entender a perspectiva local do trabalho no Brasil e seu significado para nós como organização. Em segundo, nós trouxemos nosso conselho internacional para o Brasil e estivemos ao Mato Grosso para ver de perto um trabalho de parcerias que temos aqui.
Estamos ajudando animais selvagens a se recuperarem depois de incêndios, um problema que é um exemplo de como a perda de hábitat, o clima e o desmatamento interagem aqui no Brasil. E o que acontece aqui tem importância global, assim como o que acontece na China e na Indonésia. Existem algumas regiões prioritárias para nós por questões de biodiversidade e da saúde do planeta.
Quantos escritórios vocês têm no mundo hoje?
Nós trabalhamos em cerca de 50 países, mas temos escritório efetivamente em 13 deles: Canadá, Brasil, China, África do Sul, Reino Unido, Holanda, Austrália e outros. Em cada um deles tentamos encorajar governos a tomarem decisões melhores e a criarem legislação adequada.
Aqui no Brasil, doadores das ONGs locais pró-animais costumam estar mais preocupados com cães e gatos urbanos do que em confrontar pecuaristas e combater desmatamento. Como é o perfil global de doadores da World Animal Protection?
Eu acho que nosso perfil de doador muda de país para país, mas a maioria deles tem muito interesse na questão dos animais selvagens, que é onde a peça do desmatamento se encaixa em nosso trabalho. Há algum interesse em animais de fazenda, mas eu creio que há mais interesse dos doadores em ajudar a saúde de animais selvagens.
A comunidade de proteção animal tem um espectro muito amplo. Os movimentos locais que você mencionou são muito importantes, mas nós estamos tentando mudar o sistema. Existem 8 bilhões de animais de fazendo no planeta agora, e nós realmente não precisamos dessa quantidade. Eles nascem em fazendas industriais, crescem amontoados uns com outros, onde as doenças se espalham muito mais facilmente…
Meus avôs foram fazendeiros e não reconheceriam o que é o agronegócio hoje, algo completamente diferente do que era há 50 ou 60 anos. Eles entrariam em uma fazenda achando que aquilo é uma fábrica.
Todos podem promover mudanças individuais para os animais, o que é importante, mas nós acreditamos que trabalhar sob a lente do clima é uma maneira de fazer com que haja menos animais impactados negativamente pela maneira com que nós humanos tratamos o planeta.
Aqui no Brasil, muitos políticos locais com pautas de proteção animal se elegeram por partidos na base de apoio do agronegócio. O ativismo pró-animais domésticos está muito desconectado do movimento por fazendas menos cruéis ou para salvar a biodiversidade. Essa contradição existe no resto do planeta?
Essas coisas são muito diferentes. Quem ajuda um abrigo local para cães certamente está lidando diretamente com um problema concreto, mas quando falamos em transformação política, estamos enfrentando grandes interesses escusos que buscam manter o status quo. Nós tentamos manter o foco onde as soluções estão.
Por exemplo, 70% da comida no Brasil vem de pequenos produtores, que precisam receber todo o apoio possível. Essa é a segurança alimentar do futuro para o país de vocês e é um grande trunfo. Mas existem grandes agricultores que não querem mudanças em seus sistemas, e este é o grande desafio, não só no Brasil mas no resto do mundo.
O sistema de produção alimentar que imaginamos para o futuro é um sistema mais humano, igualitário e sustentável no longo prazo. Quando olhamos para as emissões de gases de efeito estufa no Brasil, 75% delas são relacionadas à agropecuária e ao desmatamento. É aí que está o grande potencial para reduzi-las. Globalmente, as emissões ligadas à agropecuária industrial estão em algo entre 21% e 37%.
Há muita negociação sobre alguns problemas importantes na crise do clima, como no setor de energia e na questão do financiamento. Mas tem uma peça do quebra-cabeça faltando, que é a pecuária. O impacto dela está não só nas emissões diretas dos rebanhos, mas também no desmatamento para abrir pastagens.
Existem muitas propostas para abordar esse problema. A União Europeia tem discutido, por exemplo, bloqueios comerciais a produtos de áreas desmatadas. Como vocês pretendem contribuir para esse objetivo?
Nós trabalhamos em colaboração com muitas outras ONGs e estamos tentando achar meios de contribuir com essa agenda nas COPs. Estivemos na COP29 em Baku e estaremos presentes na COP30 em Belém. Queremos assegurar que o bem-estar animal e as emissões da agropecuária sejam abordados nessa agenda.
Essencialmente, nossas campanhas atuam em camadas, e a maior delas é global. Mas falamos também com parlamentares na UE e fazemos o mesmo em nível de governos nacionais.
Mas há um outro caminho, que é o de falar com as populações desses países, porque indivíduos podem votar e podem fazer escolhas sobre o que comer e como gastar seu dinheiro. E nós defendemos que as pessoas façam escolhas que não impactem os animais.
A mudança que vai provocar um abalo mais perceptível virá de duas maneiras: uma delas é por meio de regulação, outra por meio de pressão dos consumidores para mudar o sistema.
Já estamos vendo alguns países começando a migrar para um perfil de dietas tradicionais e mais ricas em vegetais. Se a regulação vier em grandes blocos, o processo vai se acelerar. Eu não sou grande defensora de criar taxas comerciais como ferramenta para isso, mas há diferentes maneiras com que grandes organizações estão tentando lidar com o problema.
Como vocês lidam com a questão ética do consumo de carne? Alguns vegetarianos e veganos argumentam que pessoas carnívoras não podem dizer que estão preocupadas com os animais.
Cada pessoa tem suas escolhas pessoais, mas eu diria que precisamos defender que as pessoas mudem para uma dieta mais rica em vegetais. Como CEO de uma organização internacional, eu nunca vou dizer a países individuais o que seus cidadãos devem comer, porque há disparidades entre pessoas pobres e outras com mais dinheiro. Isso vale para o Brasil e vale para o país onde eu nasci, a África do Sul. Os sulafricanos mais ricos comem muita carne, mas a grande maioria das pessoas no país não.
Então, podemos desejar que o mundo tenha um sistema de produção e consumo de alimentos mais igualitário em muitos países, com as pessoas adotando dietas equilibradas com mais vegetais. Isso é bom também para a saúde delas, não só para os animais e para o planeta. Mas como organização, nós não descartamos isso [o consumo de carne] porque entendemos que as pessoas têm níveis diferentes de acesso a alimentos e precisam cuidar de si e de suas famílias.
Na década de 1980, a World Animal Protection foi muito ativa na campanha contra touradas na Espanha. Como está agora o combate à crueldade contra animais? Aqui no Brasil, a prática da vaquejada é muito controversa.
Nós não acreditamos que animais devam ser envolvidos em qualquer tipo de “entretenimento” desse tipo, e sabemos que esse problema não se restringe às touradas. Há os casos de passeios de elefantes na Tailândia, macacos bailarinos na Indonésia, espetáculos com golfinhos e outras coisas.
É triste mesmo ver que touradas ainda existam hoje em dia. É uma dessas coisas que deveriam ter acabado ainda nos anos 1980. Não existe razão possível para justificar isso. Não precisamos mais de gladiadores romanos. Ninguém precisa provar sua masculinidade dessa maneira.
Em que outras grandes campanhas a World Animal Protection está envolvida agora?
Temos diversas campanhas, particularmente envolvendo turismo. Nos útlimos dois anos enfrentamos grandes agências de turismo europeias, como a TUI e a Klook, que vendem ingressos para espetáculos com golfinhos e passeios de elefante. Conseguimos fazer com que cerca de 120 agências parassem de vender pacotes que listam entretenimento animal como atração. Ainda falta a TUI, que é provavelmente a maior na Europa.
Também atuamos no campo da moda. A London Fashion Week acabou de anunciar o banimento do uso de peles de animais selvagens na passarela. No ano passado, já tinham abandonado o uso de casacos de pele tradicionais. Eles foram o primeiro dos quatro grandes centros de moda no mundo a fazer isso. Paris, Nova York e Milão ainda não se mexeram.
Na China, nós atuamos no setor de medicina tradicional para encorajar essa indústria a abandonar o uso de produtos animais. Abordamos tanto os médicos quanto os usuários.
A comunidade de proteção animal diminuiu os protestos por animais de laboratório. Isso é um reconhecimento de que pesquisadores têm necessidade genuína de usar cobaias para avançar a medicina e a ciência?
Como organização, já faz alguns anos que não trabalhamos com essa indústria, sobretudo porque existem outras organizações, especializadas em lidar com uso de cobaias pela ciência. É claro que nós somos favoráveis a ver essa indústria tentando reduzir o uso de animais, mas nossas prioridades são mesmo os animais selvagens e de fazenda.
Vocês têm conseguido mobilizar doadores com a agenda da entidade na direção de pautas ambientais mais ‘sistêmicas’? Como é o perfil deles?
É uma mistura. Estamos em um ambiente econômico difícil para qualquer ONG sem fins lucrativos porque o custo de vida subiu em muitos lugares do mundo, mas nossa arrecadação de fundos está bem. O nosso perfil de doador tende a ser mais velho, e os nossos apoiadores mais ativistas tendem a ser jovens. Assim como em outras ONGs, as pessoas mais velhas doam mais dinheiro, e as mais jovens assinam abaixo-assinados e dão outras formas de apoio. Há lugar para todos ajudarem, e quando mobilizamos apoiadores, uma grande contribuição que eles dão é no trabalho de educação do público.
Fonte: O Globo