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O balé de amor e ciúme de uma ave

26 de abril de 2011
8 min. de leitura
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Em ramos debruçados sobre as águas amazônicas, elas exibem habilidades únicas, na tentativa de assegurar seu território

Foi num susto que avistei pela primeira vez uma cigana. O barco que me levava pelo rio Azul, no sul do Pará, bateu levemente com a proa num ramo da margem e dele despencou uma ave que, pelo voar, parecia pesada. As asas demonstravam o esforço imenso para mantê-la voando até a outra margem do rio. O pouso foi apressado e até mesmo atrapalhado. A ave pareceu trombar com os ramos da árvore e foi se equilibrando com as asas, até conseguir firmar as patas. Assustei. “Que bicho é esse?” — perguntei ao piloteiro. “É uma cigana. Pelo jeito quem assustou foi ela. Normalmente deixam a gente chegar bem perto, não têm medo nem um pouco”, respondeu. Reparando melhor, notamos que o susto foi de uma, apenas: aquela árvore onde paramos estava cheia delas e as outras não saíram de seus lugares.

Desse primeiro encontro para cá, já se passaram quase dez anos e, até hoje, se vejo ciganas na margem de um rio, sempre paro para admirá-las. Ao estudar um pouco melhor seu cotidiano, sem o susto do encontro inesperado, noto que a falta de habilidade em vôo tem suas compensações. Essa é uma ave dotada pela natureza de várias capacidades fantásticas, se comparada a qualquer outra. À primeira vista ela chama atenção pela plumagem, um tanto extravagante, de peças sobrepostas, enfeitadas e ‘rodadas’, como as roupas das ciganas.

Ao redor dos olhos vermelhos, a pele azul nos lembra o excesso de delineador da maquiagem dessas mulheres. Já a crista, sempre erguida, exibe o exagero de um ‘penteado’ moicano, no mais radical estilo punk. A plumagem não tem cores vivas, mas se multiplica em tons pastéis, com variações de bege, ferrugem e marrom. Cores, por sinal, bem distribuídas e harmônicas, criando belos contrastes. Bonitas? Não há como negar… Mas, antes disso, são intrigantes, seja pela própria aparência, por seus hábitos e comportamento, ou pelo fato de estarem classificadas numa família à parte, diferente de todas as aves, no qual somente uma espécie representa o único gênero e a única família.

O nome científico da cigana — Ophistocomus hoazin — é uma mistura de palavras de origem grega e indígena mexicana. Opisthe, em grego, significa costas ou dorso, e Kome, cabelo ou cabeleira. Hoazin deriva de uatsin, palavra usada por índios do México para designar aves de grande porte. A cigana mede cerca de 60 centímetros e pesa pouco mais de 800 gramas, mas as asas largas, quase sempre ‘caídas’, dão a impressão de se tratar de uma ave corpulenta. E todas as ciganas parecem ainda maiores quando nos aproximamos delas. Ou assim querem nos fazer acreditar: em vez de procurarem sair de perto, normalmente abrem e erguem as asas, estendem a cauda e se mostram destemidas, abusando de um recurso empregado por muitos animais, na tentativa de assegurar o território e intimidar ‘inimigos’ potenciais.

Em fevereiro desse ano, novamente no rio Azul, encontrei várias ciganas, sempre em grupos, nas matas alagadas. Como era período de reprodução da espécie, que coincide com a estação das chuvas e da cheia máxima dos rios, passei duas manhãs num barco, com meu colega Jum Tabata, observando um mesmo grupo, com cerca de quinze aves. Logo no primeiro dia, não demorou muito, e presenciamos um acasalamento. Sem nenhuma cerimônia, o casal copulou na frente de nossas câmeras e no meio de outras aves do grupo.

O ornitólogo Helmut Sick relata, no livro Ornitologia Brasileira, que às vezes as cópulas são simuladas. “Em vista de um rival são executadas cópulas simuladas do casal e até de outros membros do grupo, demonstração impressionante do ‘dono’ efetivo”. Em nossa observação acredito ter se tratado de um acasalamento mesmo, dada a época. Mas não tenho como garantir… Não muito longe do local do acasalamento encontramos um ninho. Uma construção bem simples, feita com gravetos e suspensa nos ramos de uma árvore que se debruça sobre o rio, a cerca de 2,5 metros da superfície d’água. A incubação leva em torno de um mês.

Esperamos a fêmea sair, e Jum, na ponta dos pés, na proa do barco, conseguiu fotografar o interior do ninho. Estávamos com muita sorte: um ovo e um filhote recém-nascido, ainda com um pedaço de casca de ovo grudado ao corpo. Os filhotes de cigana revelam uma característica ímpar entre as aves: cada asa apresenta duas unhas no primeiro e no segundo dedo, o que nos faz lembrar das aves do período Jurássico, como o Archaeopteryx, que viveu há aproximadamente 140 milhões de anos e tinha três dedos com garras em cada asa. As tais unhas são ferramentas importantes para os filhotes conseguirem se locomover pelos ramos, agarrando-se firmemente. Eles se movimentam com o auxílio das unhas sobretudo para escapar dos predadores, que incluem macacos, cobras e gaviões.

Após a primeira muda de penas, as ciganas perdem as unhas. Ali perto encontramos um outro ninho. Tentamos nos aproximar, mas o outro filhote, já bem emplumado, percebeu nossa aproximação e se atirou na água. Nadando, ele entrou num emaranhado de mata alagada, onde não conseguimos avançar com o barco. Esse é outro comportamento comum dos filhotes para fugir de predadores. Eles têm capacidade para nadar, e até mergulhar, utilizando as patas e as asas.

Outro comportamento interessante, típico da espécie, é a alimentação ‘familiar’ ou ‘comunitária’ dos filhotes. Quer dizer, os recém nascidos não dependem apenas dos pais para comer. Podem ser alimentados por outras aves do grupo, em geral por jovens nascidos em ninhadas de anos anteriores, os chamados “ajudantes”. Os jovens permanecem no território dos pais durante dois ou três anos até buscar um território próprio e estabelecer nova família. E as distinções dessa ave não param aí. Enquanto a maioria das aves é ativa durante o dia e descansa à noite, essa espécie é ativa nos dois períodos: alimenta-se de dia e também à noite, preferindo descansar nos horários de sol mais quente.

E por falar em alimentação, nesse item a cigana consegue, mais uma vez, destacar-se de todas as outras aves. Folhas, frutos e flores compõem sua dieta, porém as folhas, curiosamente, são o prato principal. Ela possui um sistema digestivo composto de vários papos, 50 vezes maior que o estômago. Os papos funcionam de forma semelhante aos vários estômagos dos mamíferos ruminantes. Com a ‘colaboração’ de várias espécies de bactérias, o sistema de papos ajuda a cigana a digerir toda a folhagem dura consumida, algo único entre as aves.

A massa vegetal no papo da ave, depois de fermentada, dá à cigana um cheiro característico. Talvez um dos fatores levados em conta por indígenas e caboclos, aliado ao baixo peso, para praticamente excluir a ave de seu cardápio. O escritor Euclides da Cunha, no livro À Margem da História, escreve suas impressões sobre a cigana: “… E quem segue pelos longos rios, não raro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como tipos abstratos ou simples elos da escala evolutiva. A ‘cigana’ desprezível, por exemplo, que se empoleira nos galhos flexíveis das oiranas, trazendo ainda na asa de vôo curto a garra do réptil…”

Talvez o ‘desprezível’ do texto do escritor seja uma referência direta ao cheiro da ave, ou ao fato de a cigana ser pouco desejada por caçadores, portanto desprezível como alimento. Seja como for, de forma direta o homem ainda não colocou a cigana na lista de espécies ameaçadas de extinção.

Em toda região amazônica, tanto na bacia do Amazonas como na do rio Orinoco, a espécie ainda é abundante. Algumas etnias indígenas chegaram a usar suas penas para confecção de adornos e os colonizadores europeus também viram nelas o potencial como matéria-prima para se fazer leques. Mas a pressão nunca foi grande.

A maior ameaça que a espécie sofre é a destruição de seu hábitat, por desmatamento indiscriminado e ocupação das margens dos rios. Se conseguirmos manter seu ambiente conservado, enquanto houver ramos pendentes das árvores, nas matas alagadas, a cigana reinará absoluta.

Uma ave incomum

Nome comum no Brasil: cigana

Nome comum nos demais países americanos: hoatzin

Nome científico: Opisthocomus hoazin

Classificação: Ainda persiste alguma polêmica em torno da classificação da família da cigana entre as aves. Há pesquisadores que a consideram próxima de pombas, ao passo que outros a colocam junto a turacos, cucos, ou galiformes. De acordo com análises morfológicas recentes, seu lugar estaria entre as famílias das seriemas (Cariamidae), dos cucos (Cuculidae), e dos turacos (Musophagidae). A família continua sendo Opisthocomidae, com um único gênero (Opisthocomus) e uma única espécie (Opisthocomus hoatzin)

Distribuição: Amazônia, nas bacias dos rios Amazonas e Orinoco, em igapós, matas ciliares e alagados

Reprodução: Durante a estação chuvosa. Botam 2 a 3 ovos, com um período de 32 dias de incubação. Os filhotes permanecem no ninho durante 2 a 3 semanas

Fonte: EPTV

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