Em muitas campanhas de defesa animal, principalmente àquelas relacionadas ao vegetarianismo/veganismo, é comum encontrarmos as seguintes estratégias: 1) Apontar que alguma personalidade famosa da atualidade é vegetariana/vegana; 2) Apontar que algum pensador importante historicamente foi vegetariano; 3) Apontar indícios que Jesus (ou algum outro líder religioso) talvez tenha sido vegetariano; 4) Apontar alguma passagem bíblica (ou de algum outro texto considerado sagrado) que contenha uma suposta prescrição à adoção do vegetarianismo; 5) Apontar que, por algum motivo, adotar o vegetarianismo está de acordo com a vontade divina; (6) Apontar indícios que sugerem que a prática do vegetarianismo é mais natural.
Normalmente, em campanhas de defesa animal que usam dessas mensagens, o que se pretende com isso é que o expectador tire uma conclusão, que fica oculta por trás da menção a esses fatos: a de que esse é o (ou, pelo menos, um) motivo pelo qual alguém deve parar de consumir animais. Vou defender que tal estratégia é uma péssima idéia, pois é um apelo ilegítimo à autoridade. O apelo à autoridade (como veremos mais detalhadamente a seguir) é uma falácia lógica bem conhecida, e qualquer pessoa que pretende pensar honestamente deveria fugir dela. É importante esclarecer que o apelo à autoridade não envolve toda e qualquer citação de outro autor com vistas a dar apoio a uma posição a qual se defende. Ao invés disso, o apelo à autoridade implica em dizer que uma posição é correta porque uma determinada autoridade concorda com ela. Isso é bem diferente de dizer que uma posição é correta e uma determinada autoridade também concorda com ela.
Mesmo que a propaganda pró-veganismo baseada em apelos à autoridade tivesse o efeito o efeito benéfico de fazer com que muitas pessoas passassem a respeitar os animais (e, como pretendo discutir em outra coluna, penso que não há necessariamente esse efeito), há outro efeito nefasto que fica oculto: esse tipo de propaganda ensina que devemos nos basear no que autoridades dizem (seja a autoridade um artista famoso, um filósofo, um líder religioso, uma escritura sagrada, deus ou a natureza), e que não devemos pensar criticamente por nós mesmos. Esse efeito secundário, normalmente oculto no discurso, tem conseqüências extremamente danosas.
Os argumentos realmente fortes a favor da igualdade animal (fortes não no sentido de necessariamente possuírem maior poder de convencimento, mas porque tem um maior poder de explicar o erro em não estender o princípio ético da igualdade aos animais) raramente são mencionados nas campanhas de defesa animal. Ao invés, prefere-se usar argumentos de apelo à autoridade, ou de deveres indiretos (“não maltrate animais porque isso poderá ensiná-lo a maltratar humanos depois”, ou “não coma carne porque é ruim para o meio ambiente”; ou “não coma carne porque é ruim para sua saúde”). Isso é lastimável. Ao colocar o secundário como principal, o principal acaba sendo esquecido, e a meta de acabar com o especismo fica cada vez mais longe de ser alcançada. Esse é um dos maiores erros do movimento de defesa animal até agora. Em colunas futuras pretendo explicar porque penso que os aspectos mencionados acima são secundários e a defesa da igualdade animal (o que implica uma rejeição do especismo, que vai muito além da prática do veganismo e abolicionismo) deve ser prioritária. No presente texto, limito-me a explicar de que maneira o apelo à autoridade é uma falácia e porque todos os pontos mencionados no início do texto são apelos ilegítimos à autoridade.
Comecemos pelo apelo à autoridade mais freqüente historicamente:
O apelo à autoridade divina
Para muitas pessoas, agir eticamente depende da crença em um deus. Quando alguém defende que há um dever de, por exemplo, parar de comer animais, muitas pessoas logo imaginam que alguém só pode defender tal postura a partir de uma crença religiosa. Por sua vez, muitas pessoas religiosas duvidam que seja possível para um ateu agir de forma benevolente. Tais pessoas acreditam que há uma ligação entre agir eticamente e a crença em uma divindade. Mas, será isso verdade? Gostaria de observar que uma conclusão desse tipo só pode vir de um entendimento extremamente confuso do que seja ética:
A fim de evitar confusões, definirei o que entendo por “ética”: como concluímos da discussão feita em colunas anteriores1 , qualquer posição ética minimamente plausível envolve levar em conta imparcialmente os malefícios e benefícios sobre cada um dos seres sencientes (seres que podem ser prejudicados ou beneficiados pelas nossas decisões – o que inclui todos os animais capazes de desfrutar) afetados por nossa decisão (não importando se essa resulta num ato ou omissão).
As pessoas que acreditam existir uma ligação entre agir eticamente e a crença num ser divino podem estar, com isso, afirmando uma das seguintes coisas: (1) Ou acreditam que as pessoas só podem ser éticas se tiverem medo de uma punição ou esperança numa recompensa divina (nesta ou em uma vida futura); (2) Ou acreditam que, se não houver um deus (ou alguma outra autoridade semelhante em quem nos apoiarmos), a ética se torna relativa ou subjetiva, implicando que um juízo de valor seja sempre tão bom quanto qualquer outro.
Essas duas alegações são falsas. Para agir eticamente não é necessário acreditar em deus justamente porque, na ausência de um deus, não é verdade que a ética se torna relativa ou subjetiva. Em colunas anteriores2 , analisamos a alegação de que a ética é relativa ou subjetiva e concluímos que os argumentos usados para defender tais alegações apresentam sérios problemas. Contudo, chegamos a tal conclusão a partir de uma análise racional dos argumentos oferecidos, e não por referência a deus ou qualquer outra possível autoridade moral. Como o relativismo e subjetivismo já foram discutidos em outras colunas, hoje vou limitar-me a mostrar as razões pelas quais é um erro grave fazer apelos a autoridades (seja deus ou qualquer outra) em questões de ética. Esse ponto é muito importante, pois, mesmo que algum dia seja construído um argumento convincente demonstrando a existência de deus, ou, um argumento que, além disso, demonstre que algum livro (por exemplo, a Bíblia) seja realmente a palavra de tal deus, isso nada diz sobre o que devemos ou não devemos fazer. Como pretendo argumentar abaixo, a ética é totalmente independente da crença religiosa e da existência ou não de um ser divino:
A primeira alegação afirma que não há motivo para sermos éticos se não acreditamos que seremos, ou punidos ou recompensados, dependendo de nossas decisões. Tal posição pode vir na forma de punição/recompensa numa vida futura em termos de inferno/céu (como acreditam os cristãos) ou, semelhantemente, na forma de alguma punição ou recompensa nessa mesma vida ou em alguma outra encarnação (para o caso de religiões que se baseiam nessas premissas). Há uma premissa oculta por trás de qualquer alegação desse tipo, a saber, “se não houver benefício para nós mesmos em considerarmos os interesses dos outros, ou risco de malefício para nós mesmos em desconsiderar os interesses dos outros, então não há razão para nos importarmos com os outros”. É importante notar que a alegação “ não há motivo para sermos éticos se não existirem ganhos para nós mesmos com isso” não descreve o comportamento dos agentes (não está negando que existem pessoas que se importam com o outro pelo bem do outro, como acontece na teoria do egoísmo psicológico). Ao invés, está fazendo uma afirmação normativa: afirma que ninguém tem o dever de se preocupar com os outros quando isso não for vantajoso para o próprio agente.
O problema com essa alegação é que ela se baseia na ideia de que, fora os benefícios para o próprio agente, não há nenhuma outra razão que diga que devamos nos importar com os outros. Tal alegação é uma defesa de um tipo particular de egoísmo racional. Já vimos, numa coluna anterior3 , que o principal erro com os argumentos oferecidos em defesa do egoísmo racional envolve tratar casos similares com consideração diferente, baseando-se numa diferença irrelevante para o que se discute. Por exemplo, o egoísta racional aceita como razão válida para agir uma determinada necessidade (por exemplo, não sofrer) quando tal necessidade aparece nele próprio, mas exige mais razões para agir, além da presença dessa mesma necessidade, quando a mesma aparece em outros indivíduos. Mas, isso é um erro: todo ser racional precisa explicar como é possível derivar duas prescrições contrárias de dois casos que são similares em todas as propriedades relevantes. Alegar que “num caso, eu serei atingido, no outro não” é uma diferença irrelevante. Tal diferença só faria sentido se fosse demonstrado que “eu” (seja lá quem for esse “eu”) tenho objetivamente um valor maior do que todos os outros – o que não acontece. Assim, com base nessa e em outras críticas que endereçamos ao egoísmo racional na referida coluna, chegamos à conclusão de que uma posição minimamente defensável envolve dar igual consideração aos interesses semelhantes de todos os indivíduos afetados por nossas decisões. O princípio da igual consideração, como aponta Peter Singer, é o que deveríamos minimamente aceitar caso pretendamos que nossa posição seja defensável4 . Isso é assim porque não existe uma razão objetivamente válida que diga que um determinado interesse possui maior valor simplesmente pelo fato de pertencer ao indivíduo que pertence.
Como Singer coloca, até mesmo “Kant, que era um cristão devoto, rejeitava tudo o que parecesse uma obediência às leis morais motivada pelo interesse pessoal. Devemos obedecer-lhes, dizia, pelos seus méritos próprios” (SINGER, Ética Prática, p. 12). Assim, chegamos numa conclusão contrária à da primeira alegação: longe de só poderem ser éticos aqueles que fazem o bem esperando uma recompensa divina (ou natural) ou não fazem o mal por medo de uma punição semelhante, tais atitudes não podem ser consideradas éticas, já que o que buscam é o benefício próprio, e não o do outro. Isso é, no final das contas, um auto-interesse disfarçado de moralidade. Por outro lado, se alguém não acredita em uma recompensa ou punição (divina ou natural) e ainda assim dá igual consideração aos interesses dos outros, mostra que busca ser genuinamente ético (está realmente preocupado com o bem do outro).
A segunda alegação (a de que, na ausência de deus, então tudo é permitido) é um tipo de falácia de apelo à autoridade – a qual nos interessa particularmente aqui. Para entendermos melhor o que constitui o apelo à autoridade, vejamos um exemplo: imagine que eu não tenho argumentos para provar a minha posição em determinado assunto de ética. Imagine que eu sei que você é um admirador do grande comediante Gil Brother, e que você o enxerga como uma grande autoridade moral. Então, de repente, eu falo: “Você não vai concordar comigo? Mas até o grande Gil Brother concorda!”. Tal argumento é uma falácia porque, se Gil Brother for uma autoridade moral a quem devemos nos inspirar, é porque ele faz as coisas que são corretas, e não que as coisas passam a ser corretas porque são as coisas feitas por ele. Se fosse o contrário, teríamos dificuldade em apontar porque devemos nos inspirar nele e não em qualquer outro indivíduo. O mesmo vale para qualquer outra autoridade moral mencionada, seja o grande Gil Brother, seja Jesus, Alá, algum filósofo, guru, artista, escritor ou até mesmo deus. Assim, as decisões em ética devem ser sustentadas pela consistência lógica dos argumentos em seu favor e da verdade e plausibilidade de suas premissas, e isso independe do fato de algum outro ser concordar com tal decisão ou não.
Mas, supondo então que alguém sugira que não devemos nos inspirar num indivíduo qualquer, mas em alguém que é onisciente, onipotente e todo-bondoso – características que estão envolvidas na idéia do deus cristão. A primeira dificuldade com essa alegação é, antes de tudo, conseguir apresentar argumentos para sustentar que tal ser existe. Contudo, não entrarei nessa discussão aqui, pois, como veremos, ela não é importante para o tópico em questão. O que é importante para o ponto em discussão, é que mesmo que seja verdade que deus exista, ainda assim isso não mostra que a ética tem algo a ver com a vontade divina. Vejamos:
Platão refutou o argumento do apelo à vontade divina (na sua época, o apelo era feito à “vontade dos deuses5” ) perguntando: (1) aquilo que é correto se torna correto porque deus o aprova, ou (2) deus o aprova porque ele sabe que aquilo é correto? Se for o primeiro caso (o que é correto é aquilo que deus aprova), temos de admitir que, então, se deus tivesse dito que o estupro é correto, então o estupro seria correto. Supondo agora que alguém perguntasse a deus: “por que você aprovou o estupro?”; de acordo com o a alternativa 1, deus teria simplesmente de responder: “não há razão; tudo o que eu aprovo automaticamente se torna correto”. Do contrário, cairíamos na resposta 2. Na alternativa 1, tem-se de se supor uma vontade divina extremamente arbitrária, que escolhe como correta a primeira coisa que lhe passar pela cabeça. Ora, isso não parece ser a decisão de alguém sensato (muito menos onisciente), mas de alguém que não tem uma capacidade mínima de raciocínio (do tipo “faço o que dá na telha”).
A alternativa 1, para poder salvar a idéia de que deus é uma autoridade moral, tem de sacrificar tanto a onisciência divina (e torná-lo insensato e arbitrário) quanto sua bondade (pois tem-se que admitir que ele poderia ter aprovado o mal). Mas, a maioria das pessoas que crê em deus acredita que este é onisciente e todo-bondoso. Dessa maneira, elas recorrem à alternativa 2 (deus aprova tais coisas porque sabe que aquilo é correto). Com essa segunda opção, salva-se a onisciência e bondade divinas, mas veja no que isso implica: se deus aprova determinadas coisas porque sabe que elas são corretas, então não é deus que as torna corretas; elas são certas ou erradas independentemente da vontade divina (deus apenas as reconhece como tal). Assim, admite-se que há verdade na ética que é independente da vontade de deus, e que há um padrão objetivo de moralidade segundo o qual até mesmo deus pode ser avaliado. Então, não é verdade que a crença em um deus é necessária para uma pessoa reconhecer que possui deveres morais. Pelo contrário, se concordamos que a decisão correta é aquela que apresenta as melhores razões a seu favor, e, se sabemos usar a faculdade do raciocínio ético (considerar imparcialmente cada indivíduo afetado por nossas decisões), então não necessitamos consultar nenhuma autoridade – nem mesmo deus ou alguma escritura sagrada – para descobrir o que é correto. É por isso que se costuma afirmar que os deveres morais se aplicam a qualquer agente racional, independentemente de crença, sociedade na qual está inserido ou sentimentos pessoais que ele possa ter.
Se o apelo à autoridade moral é uma falácia até mesmo quando a autoridade em questão se trata de um suposto ser onisciente e todo-bondoso, o mesmo tipo de apelo deveria ser rejeitado mais ainda quando se trata de outras autoridades menos perfeitas. Em resumo: supondo que deus, Jesus, Buda, Paul McCartney, Alicia Silverstone, Leonardo da Vinci, a Bíblia, o Corão e a natureza tivessem afirmado “sejam especistas!”, ainda assim o especismo continuaria sendo errado6 . Poderia ser que, caso todas as autoridades defendessem o especismo, fosse ainda mais difícil perceber o erro com o mesmo, e que o enxergássemos como absolutamente correto. Mas, felizmente, do fato de que pensamos que algo é o caso não podemos concluir que, então, algo é o caso. Assim, o especismo continua errado, independentemente da opinião dos indivíduos elegidos como autoridades.
O apelo ao natural
Vejamos agora outro uso comum da falácia do apelo à autoridade moral, hoje em dia mais comum até do que o apelo a uma autoridade divina: o apelo ao natural. É comum ouvirmos dizer: “isso é o correto porque é natural; aquilo é errado porque não é natural”. Tal apelo, é importante que se lembre, historicamente sempre esteve por trás de quase todas as posições fundadas em preconceitos e opressão. Por exemplo, esteve por trás da idéia de que o único ofício apropriado para mulheres é cuidar dos filhos; por trás da defesa do consumo de carne; da homofobia; passando inclusive por uma oposição ao uso de anestesia em cirurgias7 ; e também na idéia de que é lícito o mais forte sobrepujar o mais fraco. Algumas pessoas pensam que a maneira correta de combater essas formas de opressão é mostrar que, de alguma maneira, elas não são naturais. Isso é um grave erro. Vejamos o motivo:
Para avaliarmos o apelo à natureza, basta igualmente perguntar se o que se pretende dizer é: (1) As coisas se tornam corretas por acontecerem na natureza, ou (2) a natureza faz sempre acontecer o que é correto. Se for a primeira alternativa, teríamos de estar preparados, como bem observou John Stuart Mill8 , para aceitar que todas as coisas que dizemos que são odiosas quando feitas por nós (como assassinato, roubo, estupro, lei-do-mais-forte, massacres, opressão, etc.) passam a ser coisas boas – já que essas coisas acontecem em abundância na natureza. A vida na natureza (independentemente de ação humana) como bem apontaram Mill, Dawkins, Dawrst e Yew-Kwang Ng9 está bem mais próxima de um inferno para os animais que ali vivem do que o paraíso que costumamos ingenuamente imaginar. Um apelo à natureza tem efeitos ainda mais sanguinolentos do que um apelo à autoridade divina, pois, enquanto os que crêem em deus o vêem normalmente como todo-bondoso, e diriam que ele jamais admitiria o estupro, estupro é o que mais acontece no mundo natural. Mas, se é verdade que o cerne da ética é nos importarmos com os interesses daqueles que serão atingidos pelas nossas decisões, então não é justificável apelar a processos que são totalmente indiferentes às necessidades de tais indivíduos. Os processos naturais favorecem aos genes, não aos indivíduos portadores destes. Se reconhecemos que as decisões éticas são aquelas decisões que tomaríamos se seguíssemos a razão e nos preocupando imparcialmente com o bem de cada indivíduo atingido por nossa decisão, então não faz sentido apelar a um guia constituído apenas de processos físicos indiferentes ao bem dos indivíduos.
Por outro lado, se for adotada a segunda alternativa (“a natureza faz acontecer o que é correto”), mais uma vez temos que admitir que existe verdade na ética que independe da natureza, o que torna desnecessário o apelo a essa “autoridade”. Contudo, essa segunda alternativa apresenta ainda outro problema: é demais ingênua, por não perceber que as leis naturais não têm nada a ver com as (e geralmente resultam no oposto do que aconteceria se seguíssemos) as leis morais. Assim, o apelo às leis naturais é uma falácia, da mesma maneira que é o apelo a qualquer outra autoridade.
O que fica “por debaixo dos panos” nessas discussões, e raramente é questionado, é o seguinte: “por que deveríamos escolher a natureza como autoridade moral?” – e não qualquer outra coisa? Diferentemente do apelo a deus (que presume um ser onisciente), as leis naturais são processos inconscientes, cegos, e não planejados. Não há ali um indivíduo capaz de fazer uso da razão e deliberar com base na consideração imparcial pelo bem dos indivíduos. Por que deveríamos escolher como guia moral justamente processos cegos? Talvez essa crença seja herança da época onde se acreditava que, por traz da lei natural, havia uma providência divina garantindo que o bem sempre acontecesse. Mas, há (e sempre houve) extremos de sofrimento totalmente desnecessários acontecendo a partir de processos naturais, que não podem ser justificáveis em base ética plausível nenhuma.
Desde a antiguidade os teólogos têm de enfrentar o enorme problema que a existência do sofrimento abundante produzido pela natureza coloca para a existência de deus: se deus é onipotente, onisciente e todo-bondoso, como poderia criar algo que produz resultados infernais para aqueles sujeitos às suas forças (principalmente animais não-humanos10) ? As desculpas tradicionais disponíveis para os teólogos no caso do sofrimento humano (que humanos escolhem sofrer através do livre arbítrio e que serão recompensados numa vida futura) não estão disponíveis no caso dos animais (pois, nessa tradição, não admite-se que animais possuam livre-arbítrio ou alma imortal11 ). Como apontou Mill, a única maneira de salvar a idéia de um criador todo-bondoso frente à existência do imenso sofrimento natural, é admitir que, se tal criador existir, ele não é onipotente (pois não tem controle sobre as leis naturais), e, então, os que pretendem colaborar com a suposta força beneficente (ou, de outra forma, que se preocupam com o bem dos indivíduos atingidos por suas decisões) não deveriam ser seguir a natureza, mas, ao invés, corrigi-la12.
Conclusão
Em questões de ética, melhor nos apoiarmos simplesmente em nossa capacidade raciocínio ético. Fazer apelos a autoridades (divinas, naturais, ou de qualquer outro tipo) poupa-nos um grande trabalho, que é o de raciocinar sobre qual a decisão correta e assumir a responsabilidade pela decisão. Mas, se não queremos nos enganar, precisamos ter bem claro que estamos fazendo tais apelos para mascarar o nosso desejo de não gastar tempo pensando sobre questões éticas e de não querer assumir nossas escolhas. Não há como escapar de decidir. Inclusive decidir se vamos parar ou não de mandar as forças cegas da natureza (ou a religião, ou a tradição, ou qualquer outra autoridade) fazerem as escolhas (geralmente as piores possíveis) por nós. Isso não quer dizer que pessoas que são praticantes de uma determinada religião ou apreciadores de determinadas tradições são necessariamente especistas ou anti-éticos. Significa apenas que o motivo pelo qual alguém tem dever de dar igual consideração a todos os seres sencientes não depende dessas crenças.
Em termos práticos, no que diz respeito à consideração pelos animais não-humanos, devemos concluir que é um grande erro afirmar que o motivo pelo qual devemos nos tornar veganos é que Jesus possivelmente foi; ou porque está sugerido em algum livro sagrado; ou porque alguma celebridade também é vegana; ou porque algum escritor ou filósofo o foi; ou porque aumentaremos nosso karma se comermos animais; ou porque é mais natural. Alguém pode dizer que tais estratégias são adotadas porque assim há maior chance de convencer pessoas naturalistas ou religiosas a adotarem o veganismo. Isso pode ser verdade (discutiremos isso na próxima coluna), mas, tem um grave efeito nocivo: passa a idéia de que pessoas que não possuem essas crenças não têm o dever de respeitar os animais – e, além disso, passa a idéia de que é legítimo apelar à autoridade. Se o apelo à autoridade não for questionado, as pessoas que guiam suas escolhas pelo que dizem as autoridades podem causar muito mais danos do que aquele que evitam se tornando veganos. Questionando-se o apelo a autoridade, se torna muito mais fácil fazer com que reflitam adequadamente sobre essa e outras questões éticas importantes (tanto envolvendo animais não-humanos como em outras áreas) – questões que suas autoridades preferidas podem não ter falado sobre, ou podem ter dado um parecer totalmente tendencioso.
A razão óbvia da existência do dever de praticar o veganismo é que fazer uso dos animais é ruim para os animais. Mas, se isso é verdade, então o mal que os animais sofrem naturalmente – e que teríamos condições de impedir, se nos debruçássemos sobre essas questões – também deve levantar uma grande preocupação para aqueles que realmente buscam o bem destes13 . Por aqui já começamos a ver que o veganismo não é a última fronteira da ética, no que diz respeito a nossos deveres para com os animais não-humanos. Essa última questão normalmente gera grande polêmica, e encontra forte oposição mesmo dentro do movimento abolicionista. Caso alguém se interesse pelo assunto, minha posição, bem como um tratamento das 40 principais objeções, são apresentados nesse artigo:
http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf
Na próxima coluna, continuaremos com o tema sobre a eficácia das estratégias que apelam a outros motivos, que não a consideração ética pelos animais, para difusão do veganismo.
Até lá!
Notas:
(1) Cf. https://www.anda.jor.br/2010/05/06/sobre-o-raciocinio-etico-a-forma-parte-final/ e https://www.anda.jor.br/2010/06/06/sobre-o-raciocinio-etico-a-forma-parte-4/ e também https://www.anda.jor.br/2010/07/06/sobre-o-raciocinio-etico-os-conteudos-parte-5/
(2) Cf. https://www.anda.jor.br/2009/12/05/e-a-etica-relativa/ e https://www.anda.jor.br/2010/01/05/e-a-etica-subjetiva/
(3) Cf. https://www.anda.jor.br/2011/01/03/explicando-por-que-o-egoismo-nao-e-etico/
(4) SINGER, Peter. Ética Prática. 3a ed, Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 30.
(5) PLATÃO, Êutifron. Disponível em http://www.consciencia.org/eutifron-dialogos-de-platao
(6) Para entender o que há de errado com o especismo, ver https://www.anda.jor.br/2010/10/06/especismo-e-a-questao-do-valor-da-vida/
(7) Em relação à prática do médico Crawford Williamson Long, creditado como o primeiro a usar a anestesia clinicamente, em 1842, o filósofo David Pearce observa que muitos se opuseram à prática meramente porque ”that it was unnatural, and religious traditionalists objected that pain was God’s way of cleansing the soul”. Cf. PEARCE, David. Utopian Surgery: Early Arguments Against Anaesthesia in Surgery, Dentistry and Childbirth. Disponível em: http://www.general-anaesthesia.com/
(8) Cf. MILL, J. S. On Nature. In Nature, The Utility of Religion and Theism. Rationalist Press, 1904, pp. 07-33. Disponível em http://www.lancs.ac.uk/users/philosophy/texts/mill_on.htm
(9) Cf. MILL, Ibid; DAWKINS, R. River Out of Eden: A Darwinian View of Life. Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST, A. The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem. In: Essays on Reducing Suffering, 2009b. http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf; NG, Yew-Kwang. Towards Welfare Biology: Evolutionary Economics of Animal Consciousness and Suffering. In: Biology and Philosophy, 10, 3, 1995, pp. 255−85.
(10) Cf. MCMAHAN, J. The Meat Eaters. In: New York Times. September 19, 2010. http://opinionator.blogs.nytimes.com/2010/09/19/the-meat-eaters/; GOULD, S. J. Nonmoral Nature 91 (February 1982): 19-26; In: Hen’s Teeth and Horse’s Toes: Further Reflections in Natural History, New York: W. W. Norton, 1994, pp. 32-44.
(11) Cf. MCMAHAN, Ibid.
(12) Cf. Mill, Ibid, p. 33.
(13) Três ótimos artigos sobre o tema são: HORTA, O. Disvalue in Nature and Intervention. In: Pensata Animal, 2010a. http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta e HORTA, O. The Ethics of the Ecology of Fear against the Nonspeciesist Paradigm: A Shift in the Aims of Intervention in Nature. In: Between the Species 10, 2010b, pp. 163-187. http://cla.calpoly.edu/bts/issue_10/10horta.pdf e BONNARDEL, Yves. Contra o Apartheid das Espécies: Sobre a Oposição entre Ecologia e Liberação Animal. Disponível em
http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=121&Itemid=1