A gênese sócio-econômico-cultural do gaúcho está visceralmente associada às vísceras de animais vacuns, carneados e coureados, após serem caçados na extensão sem aramados dos campos do Pampa. O charque, o couro, o sebo são substantivos indissociáveis a esse tipo humano que, naqueles tempos idos, era sinônimo de gaudério que, por sua vez, era sinônimo de vagabundo, ladrão, parasita.
Do ambiente insalubre e sanguinário das charqueadas ainda se ouve, em pleno Século XXI, os tristes berros de boi misturados ao trabalho extenuado dos “escravos de saladeiros” – ofício esse tão bem cantado por Antônio Augusto Fagundes na composição musical em parceria com seu irmão Euclides Fagundes Filho (Bagre): “Escravo de saladeiro, Me dói saber como foi, Trabalhando o dia inteiro, Sangrando mesmo que o boi.”
Assim, a relação do gaúcho campeiro não raro é cantada como sendo desarmônica no tocante aos animais com os quais convive, dado, talvez, ao viés utilitário que a racionalidade humana dirige aos mesmos, seja em se tratando do cavalo (veículo de locomoção e de tração e instrumento de competição), do vacum (produto de consumo, tração e comércio), do cachorro (ajudante nas campereadas), do gato (caçador de ratos nos paióis de milho e moradias). Mas quem buscar na literatura oral, musical e bibliográfica do Rio Grande do Sul terá felizes surpresas ao se defrontar com evidentes sentimentos de compaixão dedicados pelos seres humanos aos animais. Um exemplo está no conto “Boi Velho”, de autoria de João Simões Lopes Neto, o qual faz parte da obra “Contos Gauchescos”. Dourado e Cabiúna são dois bois mansos que puxam um carretão. A mansidão dos animais é tanta que até mesmo a criançada da casa rural prendia-os ao pesado veículo para colher pitangas nos matos da propriedade da família.
Num certo dia, morre o Dourado. Cabiúna fica “solito”. Desconstituída a parelha e na falta de outra destinação ao animal, o mesmo é solto no campo. Passado algum tempo, quando aquelas crianças já são homens e mulheres, aparece no terreiro da casa o Cabiúna, e aqueles que andavam no velho carretão puxado pela antiga junta reconhecem, de imediato, o parceiro das carreteadas. Porém um dos homens, com visão meramente monetária, alega que o boi está magro e, talvez, não suporte o próximo inverno. Imediatamente, um outro pensa em carneá-lo para que se aproveite o couro. E, de vereda, já vem um laço que é posto no pescoço rijo. Um dos homens lhe dá uma punhalada. Entendendo aquela dor como um pregaço de picana mal dado, o animal caminha em direção ao carretão e coloca-se no lugar que era seu de costume. Ali morre aos olhares quietos e condoídos dos circunstantes.
Na obra de Barbosa Lessa, também se encontram imagens que expressam amor aos animais, mesmo quando o relato tende ao pitoresco como, no conto “Queimadores de Campo”, de Barbosa Lessa, publicado, inicialmente, no seu livro “O Boi das Aspas de Ouro” e ,recentemente, na derradeira obra “Histórias para sorrir” (Editora Alcance, 2005). A personagem relata a história de um ótimo cachorro mas, que devido à avançada idade, está, praticamente, sem dentes. O interessante é que o narrador do causo é interrompido por uma personagem no cenário à beira do fogo de chão, apenas para lamentar o estado a que chega um animal dessa qualidade.
Ora, uma intervenção – para os desavisados – totalmente desnecessária, já que nada acrescenta à estória, do que se depreende que o autor, de propósito ou inconscientemente, fez questão de assinalar ao leitor uma preocupação com um cão que, em tantas vezes, é simplesmente uma personagem jocosa de causos. O conto “A Cidade”, também de Barbosa Lessa, incluída no livro “Rodeio dos Ventos”, que já integrava o citado livro “O Boi das Aspas de Ouro”, é outra prova da valorização dos animais, tanto que o cusco Mosquito é a personagem principal e, certa vez, movido pela curiosidade, resolve seguir seu dono a cavalo e juntos entram na cidade que para ele era um mundo desconhecido. Quem desvenda os mistérios daquele núcleo urbano é o cusco e pelas informações que chegam ao leitor, sugeridas pelo belo texto, a cidade é, sem dúvida, a histórica Piratini.
Na discografia gaúcha, podemos lembrar: “O boi é bicho mas tem alma sob o couro”, um verso de José Hilário Retamozo na obra musical “Poncho Molhado”, verdadeiro clássico nativista; “Matança” (de José Cláudio Machado), uma música que denuncia a venda de cavalos velhos para os matadouros; “Florêncio Guerra e seu Cavalo” (versos de Mauro Ferreira musicados por Luiz Carlos Borgdes) fala da tristeza do peão ao ser obrigado pelo patrão a matar o cavalo de sua confiança, onde a comoção do empregado rural é tanta que comete suicídio logo após apunhalar seu amigo.
Embora a visão antropocêntrica ainda pareça imperar com certo vigor, vislumbra-se um crescimento de uma consciência acerca dos direitos dos animais, tanto pelos noticiários nos grandes meios de imprensa, quanto pelo crescente número de páginas virtuais dedicadas ao tema.
É uma perspectiva que se abre para que os humanos se enxerguem não como superiores aos demais seres mas, sim, habitantes deste planeta Terra, com deveres de respeitar a diversidade biológica, inspirados em valores éticos e ecológicos.
Enviado por: Juarez Machado de Farias
E-mail: [email protected]