A Polícia Civil do Rio Grande do Sul concluiu, nesta quarta-feira, quatro inquéritos que responsabilizam duas redes de pet shops pelas mortes de pelo menos 180 aves, peixes e roedores que, segundo as investigações, foram deixados para trás durante o início da enchente histórica em Porto Alegre, em maio. Ao todo, 10 pessoas e cinco CNPJs foram indiciados pelo crime de maus-tratos aos animais com resultado morte.
As investigações começaram a partir de denúncias de ONGs de animais, que promoveram trabalhos de resgate na capital gaúcha. Três inquéritos indiciam supostos responsáveis, e um deles apenas narra à justiça os fatos levantados. A polícia concluiu que “os investigados, que deveriam garantir a segurança e o bem-estar dos animais, não agiram para salvá-los, incidindo no crime”.
Três casos motivaram as investigações: nas lojas da rede Cobasi do Shopping Praia de Belas e da Avenida Brasil, em São Geraldo, e numa loja da rede Bicharada, na Avenida Júlio de Castilhos, no Centro Histórico. Entenda, em ordem cronológica, o que dizem os inquéritos sobre cada um deles.
O inquérito narra que, no dia 11 de maio, socorristas voluntários entraram na loja da Cobasi, na Avenida Brasil, no bairro São Geraldo, após uma denúncia de que vários animais teriam sido deixados para trás por funcionários desde o início da inundação na cidade. Na ocasião, vários pets foram resgatados e entregues a responsáveis pelo estabelecimento, que os remanejaram para outra unidade. Mas alguns, segundo apurou a polícia, não resistiram “aos vários dias isolados” e morreram.
“Conforme informações da própria rede, o estoque no local era de 348 animais. Segundo relatos de vídeos e testemunhas, um pássaro e vários peixes foram localizados sem vida. Não há informações de como estes animais que foram resgatados se encontram”, diz a polícia.
Aos investigadores, as gerentes da loja se justificaram afirmando que deixaram comida e água em maior quantidade para os animais, porque acreditavam que a situação não perduraria por muito tempo e elas voltariam logo. A região acabou completamente alagada e os animais acabaram ficando sem água, luz e comida por dias, “em local totalmente insalubre”. O inquérito destaca ainda que vídeos feitos pelos resgatistas mostram peixes já mortos e outros buscando oxigênio na superfície, além de comedouros de gaiolas vazios.
Neste inquérito, três gerentes da loja, que segundo a polícia tinham poder de decisão sobre os funcionários, foram indiciadas, além de uma gerente regional e uma responsável técnica pelos animais. A matriz localizada em São Paulo e a filial, por meio de seus CNPJs, também foram indiciadas.
O caso foi denunciado por uma ONG, que estava realizando resgates de animais no Centro Histórico, e apontava que, na loja, havia diversos animais mantidos desde o início do alagamento. Os voluntários conseguiram resgatar 65 animais, mas atestaram que pelo menos 4 já estavam mortos. Outros ainda morreram após o resgate — esses, a polícia pontua que não é possível afirmar em que circunstâncias.
À polícia, os responsáveis pela loja disseram que retiraram os cachorros e os gatos às pressas após o início do alagamento e que os animais que foram deixados para trás estavam “devidamente alimentados e com água”. Neste inquérito, so policiais indiciaram dois responsáveis pela loja, e a empresa, através de seu CNPJ.
Este caso é tido como o mais grave e impressionante. No dia 19, após uma liminar concedida pela Justiça gaúcha, após uma Ação Civil Pública movida por uma ONG, a loja da Cobasi foi denunciada pelos ativistas voluntários por manter desde o dia 3 de maio diversas aves, peixes e roedores no subsolo da pet shop, que estava completamente alagado.
A polícia narra no inquérito que uma vistoria no local comprovou que nenhum animal havia resistido, com a coleta de 38 carcaças achadas na água, que já estava tomada por esgoto e forte odor. Na mesma oportunidade, foi possível visualizar que eletrônicos haviam sido remanejados do subsolo para o mezanino, que não foi atingido pela água — o que demonstrou aos investigadores que aqueles pets poderiam ter sido salvos.
Conforme informações prestadas pela empresa, no estoque do local havia 175 animais. “Por todos estarem em gaiolas e aquários, acredita-se que nenhum tenha sobrevivido ao alagamento”, pontuam os investigadores.
“Importante salientar que duas unidades fazem parte da mesma rede nacional, com faturamento bilionário anual, e mesmo assim não realizaram qualquer atitude para retirar os animais antes da enchente, ou ainda, para resgatá-los quando a água já acessava as lojas”, afirma a delegada Samieh Saleh. “Foi necessário que terceiros, resgatistas, tomassem conhecimento dos fatos para que alguma ação fosse tomada”.
Dois gerentes locais, uma gerente regional e a responsável técnica foram indiciadas, além dos CNPJs da filial e matriz da Cobasi.
Crimes de menor potencial ofensivo
Os crimes, que em regra geram apenas Termo Circunstanciado — por serem consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo —, foram investigados por meio de inquéritos policiais, em razão da complexidade dos fatos, segundo a Polícia Civil, e a fim de permitir que todos os envolvidos relatassem suas versões dos fatos. No total, 21 pessoas foram ouvidas, diversas imagens analisadas, vários relatórios de investigação confeccionados, bem como cumpridos mandados de busca e apreensão.
Não houve registro de mortes de cães e gatos. A lei prevê que, em casos envolvendo essas espécies, há qualificadora que aumenta a pena, que é de 3 meses a 1 ano, para 2 a 5 anos de reclusão.
‘Indignação’, reage Cobasi
Procurada, a loja Bicharada disse que tomou conhecimento sobre o indiciamento na tarde dessa quarta-feira, mas ainda não se manifestou sobre as conclusões da polícia.
Em nota, a defesa da rede de pet shops Cobasi, por sua vez, disse estar indignada com a conclusão dos inquéritos e afirmou que suas lojas foram surpreendidas por um evento natural de “proporções imponderáveis”, o que rechaçaria a possibilidade de crime doloso e com requinte de crueldade contra os animais.
“A defesa da Cobasi manifesta sua completa indignação com qualquer fala que indique a possibilidade de que, ao final das exaustivas investigações, a autoridade policial venha a proceder ao formal indiciamento de qualquer de seus colaboradores”, introduz a nota assinada pelo advogado Paulo da Cunha Bueno. “A equipe da loja localizada no shopping Praia de Belas — assim como toda a população e autoridades do RS —, foi surpreendida por um evento da natureza de proporções imponderáveis, estado de coisas que, por si só, já tornaria incogitável que a causa da morte dos animais da loja possa ser distorcida para uma acusação de crime doloso que demandaria, inclusive, requintes de crueldade em sua configuração”.
“É lamentável que em torno desse capítulo da tragédia, que afetou impiedosamente todo o povo gaúcho, esteja sendo construída uma narrativa famigerada e inverídica”, acrescenta. “Por fim, causa espécie que se venha ignorando por completo as iniciativas tomadas pela administração do shopping Praia de Belas no endereçamento da situação, proibindo o ingresso de funcionários da Cobasi nas suas dependências, ao mesmo tempo em que emitia repetidos comunicados aos lojistas, informando-os que a situação encontrava-se administrada. A defesa da Cobasi acredita que, a despeito da repercussão midiática que o lamentável episódio ganhou, seu desfecho não virá a partir de contorcionismos jurídicos e conclusões levianas.”
A Cobasi apresentou, ainda, uma cronologia sobre como teriam se sucedido os eventos durante o início das enchentes naquele dia 3 de maio. A empresa aponta que a administração do shopping não permitiu a entrada de representantes da loja após a inundação e diz ainda que deixou os animais abaixo do mezanino porque não foi informada sobre o risco no local. Veja um posicionamento resumido da rede:
“A proporção do evento climático no Rio Grande do Sul foi devastadora, o que provocou diversas inundações sem precedente em várias cidades do estado, com perdas significativas de vidas humanas e de animais. E, infelizmente, também não tivemos nenhuma informação que nossa loja no Praia de Belas, sofreria uma inundação até o teto resultando no falecimento dos pequenos roedores, aves e peixes no local”;
“Não havia cães e gatos no local, destacamos isso não porque consideramos que vida de cães e gatos sejam mais importantes que de outros animais, mas para esclarecer as notícias falsas sobre o ocorrido”;
“Não protegemos objetos em detrimento a vida. A inundação destruiu quase a totalidade de equipamentos e produtos da loja”
“Com base nas informações fornecidas pelo shopping Praia de Belas, não levamos os animais ao mezanino, pois consideramos que eles estavam seguros. Da mesma forma, toda a mercadoria e os equipamentos eletrônicos também não foram deslocados”
“A gerência da loja manteve-se sempre em contato com a direção do Shopping sendo informada, em todas as oportunidades, de que a situação estava controlada e que, a despeito disso, os acessos às suas dependências não estavam autorizados por razão de segurança. A Cobasi lamenta profundamente o ocorrido”.
A reportagem não conseguiu contato com a assessoria de imprensa Shopping Praia de Belas para questionar sobre as supostas responsabilizações imputadas pela defesa da pet shop Cobasi.
Fonte: O Globo