Entidades civis avaliam que projetos para a liberação nacional da caça esportiva de animais silvestres seguirão vivos na próxima legislatura, mesmo com alguns defensores da prática fora do Congresso. A eleição de representantes de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores, os CACs, e uma recondução do atual governo devem engrossar o apoio à matança e os riscos à biodiversidade.
Intocados por base científica, alegando aquecerem economias e serem necessários para controlar espécies prejudiciais ao agronegócio, projetos no Congresso querem liberar caçadas por lazer de animais silvestres no país. Mas a forte rejeição pública à prática, de 90% conforme pesquisas de opinião pública, pesou nas eleições deste ano e candidatos pró-caçadas estão fora dos parlamentos federal e estaduais a partir de 2023.
A lista de não eleitos inclui o ex-deputado Valdir Colatto (PL-SC), autor do PL 6268/2016 – um dos pioneiros na Câmara a tentar legalizar a caça -, e o deputado Nelson Barbudo (PL-MT), apoiador e relator de projetos na Comissão de Meio Ambiente da Câmara que liberavam o tiroteio. O ex-deputado Nilson Stainsack (PP-SC), autor do PL 5544/2020, tido como o mais perigoso para a fauna brasileira, não disputou o pleito deste ano.
Também não conseguiram votos suficientes para se eleger o aspirante a deputado federal Rafael Agro Salerno (PP-MG) e os candidatos a parlamentos estaduais Samurai Caçador (PRTB-SP) e Mario Knichalla Caçador (PP-MG). Eles mantêm lojas de armamento e canais para divulgação de caçadas em redes sociais, informa o movimento de entidades civis Todos Contra a Caça.
“Essas baixas são importantes e se devem em parte à opinião majoritária dos brasileiros contra a caça esportiva, mas não podemos comemorar. Ainda restam outros apoiadores e autores de leis eleitos”, avalia o biólogo Paulo Pizzi, presidente da ONG Mater Natura.
Os favoráveis à matança de animais incluem a deputada federal reeleita Carla Zambelli e o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, eleito para a Câmara dos Deputados. Ambos são do PL de São Paulo. Zambelli defende o armamento dos brasileiros e, quando presidiu a Comissão de Meio Ambiente da Câmara, de março de 2021 a abril de 2022, atuou contra a preservação da fauna.
“Ricardo Salles certamente apoiará a caça esportiva, tendo em vista suas estratégias de destruição ambiental e de paralisação dos órgãos de fiscalização”, pondera Pizzi, da Mater Natura. O ex-ministro é lembrado por defender, numa reunião interministerial em abril de 2020, que a “boiada” atropele a legislação que protege a natureza brasileira.
São 12 os projetos liberando a caça esportiva no Congresso. Eles serão arquivados caso não sejam aprovados até o fim de cada legislatura. A atual encerra este ano. Mas podem voltar à ativa com pedidos de parlamentares aprovados pelas presidências da Câmara e do Senado. Também podem ser apresentados textos similares, retomando a tramitação do zero.
As comissões no Congresso serão compostas a partir de março de 2023. Pelo histórico das legislaturas passadas e parlamentares eleitos este ano, as comissões de Meio Ambiente na Câmara e no Senado tendem a permanecer dominadas por congressistas conservadores.
Caçadores no parlamento
Ao menos 23 representantes dos Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs) foram eleitos este ano para o Congresso. Um dos expoentes é Marcos Pollon (PL), líder do movimento nacional Proarmas e deputado federal mais votado este ano no Mato Grosso do Sul. Outros 10 CACs ganharam espaço em parlamentos estaduais.
Eles devem ocupar cadeiras nas comissões onde as propostas são debatidas antes dos plenários e apoiar projetos como os que liberam a caça esportiva, já que estimulam a produção, o comércio e o uso massivo de armas no país. Decretos do atual governo ajudaram a tornar o grupo o maior segmento armado do país.
A mobilização dos CACs se somará a de parcela da bancada ruralista, de parlamentares egressos de forças policiais e militares e de outros aliados da indústria armamentista. A relação tem nomes como do deputado federal Alexandre Leite (União-SP) e dos senadores Marcos Do Val (Podemos-ES) e Lucas Barreto (PSD-AP).
Gerente de Advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli avalia que o suposto manejo de espécies tenta camuflar a meta de “legalizar a matança generalizada de animais silvestres”. “Clubes de tiro até soltam javalis para justificar caçadas”, destaca. A espécie trazida da Europa para criação comercial se alastrou por grande parte do Brasil. Seu abate é autorizado pelo Ibama.
Um sinal verde para caçadas também ampliará lucros privados enquanto crescem os números de violência e mortes com armas de fogo, inclusive de crianças e de adolescentes. “A grande pauta deste governo é armar os brasileiros, mas isso ameaça a vida de todos e não é de interesse público”, destaca Angeli. “As reações do STF [contra a compra de armas] são lentas e não desarmam a população”, reclama o advogado.
Fazer frente ao lobby da caça pede mais alianças com parlamentares de centro ou já conectados a pautas socioambientais. Uma frente em defesa da fauna silvestre teria deputados federais como Nilto Tatto (PT-SP), Ricardo Izar (Republicanos-SP), Célio Studart (PSD-CE), Fred Costa (Patriota-MG), Tabata Amaral (PSB-SP), Túlio Gadelha (Rede-PE) e Marina Silva (Rede-SP), ex-ministra do Meio Ambiente.
“É fundamental informar e mobilizar de forma permanente os brasileiros sobre os defensores da caça esportiva e diante de votações de propostas nesta linha. Assim, poderão pressionar o Congresso contra essa barbárie”, ressalta Pizzi, da Mater Natura.
A matança de animais em caçadas esportivas não envolve apenas questões éticas e de maus-tratos. Também pode levar espécies à extinção local ou nacional, prejudica a renovação de ambientes naturais exterminando sua fauna e, ainda, ameaça a saúde pública pelo contato ou consumo de animais que podem portar doenças infecciosas.
Retrocessos em série
A liberação de caçadas de animais nativos por lazer é parte das ameaças ao patrimônio natural do país. Retrocessos como tal pegaram carona na ascensão de governos populistas que reduziram, paralisaram e até extinguiram políticas públicas socioambientais. O diagnóstico é da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP).
Frear a marcha-a-ré legislativa em curso dependerá de quem presidirá o país, a Câmara e o Senado a partir de 2023, mas também dos rumos do Centrão, bloco de partidos conservadores que negocia votos por cargos, verbas de emendas parlamentares e outras benesses. O grupo pode ser um fiel da balança nas votações de propostas anti e pró ambientais.
Afinal, uma análise do Farol Verde, um painel para eleitores selecionarem candidatos afins a pautas socioambientais, mostra que há certo equilíbrio na atual e na próxima legislatura entre as bancadas dos indígenas, conservacionistas e sem-terra com as do boi, da bala e da bíblia.
A afinidade socioambiental de parlamentares eleitos ou reeleitos é de 42%. Apenas um ponto abaixo dos 43% verificados nos atuais deputados e senadores. As taxas pesam sua votação e posicionamento em temas como aval à mineração em áreas indígenas, regularização de terras griladas e enfraquecimento do licenciamento.
Todavia, a maioria dos deputados eleitos tende a engrossar a polarização anti ambiente, clima e indígenas. Em suma, enquanto nestas eleições caíram em 10% o índice de deputados “verdes” e em 7,8% o de “intermediários”, subiu em 15% a taxa de “divergentes”, que só votam contra o socioambiental.
Mas isso pode mudar caso Bolsonaro não seja reeleito, pois um novo governo poderia atrair votos favoráveis do Centrão a propostas socioambientais. “Ganhando as eleições, Lula pode mobilizar ao menos metade da Câmara e 60% do Senado”, estima André Lima, coordenador dos projetos Radar Clima e Sustentabilidade e Farol Verde, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
“Um governo moderado pode reequilibrar as forças no Congresso e até compensar a piora que verificamos desta para a próxima legislatura. Um novo governo Bolsonaro seria uma catástrofe, pois seguiria usando orçamento secreto e cargos para atacar pautas de clima, meio ambiente e sustentabilidade”, completa o advogado e ex-secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal.
Fonte: O Eco