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EM TRAMITAÇÃO

Novo Código Civil tira animais do status de objeto e abre porta para mudanças nos tribunais brasileiros

Texto amplia direitos e reconhece a capacidade de sentir dos animais, que, no entanto, seguem citados no capítulo de ‘bens’

6 de julho de 2025
Paulo Assad
9 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Pixabay

Em trâmite no Senado, a proposta de reforma do Código Civil, o livro que rege a vida dos brasileiros do nascimento à morte, promete mudanças também para o mundo animal. Classificados legalmente como coisas, cães e gatos, assim como as demais cem mil espécies da fauna brasileira, passariam a se encaixar na nomenclatura de “seres sencientes”, em referência à capacidade de sentir, conforme consta no artigo 91-A do projeto.

— Quando a gente fala sobre senciência, fala da capacidade dos animais de sentir dor, alegria, medo, prazer. Conseguimos compreender o animal não humano como um ser detentor de subjetividade — diz o professor de Direito Civil Tagore Trajano, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para quem a nova classificação implicaria no surgimento de uma terceira categoria jurídica, nem pessoa, nem objeto.

Apesar de o texto postergar para uma lei especial detalhes de como será o novo tratamento conferido aos animais, o advogado Gustavo Kloh, professor de Direito Civil da FGV-Rio, avalia que a nova redação irá fortalecer tendências atuais do direito animal:

— Ao meu ver, são dois flancos abertos: o da legitimidade processual e o dos direitos mínimos. Não dá para dizer que eles teriam os mesmos direitos que os humanos, mas alguns, como direito à vida e à integridade, sim.

O primeiro impacto levantado pelo professor refere-se à possibilidade de animais aparecerem como autores de ações na Justiça, representados por tutores ou ONGs. Apesar de admitido por alguns tribunais, o entendimento de que é possível aos animais serem partes processuais não é unânime. Isso porque a legislação vigente os trata de forma não muito diferente de um carro. Para a lei atual, ambos são bens semoventes, termo reservado aos objetos dotados de movimento próprio.

Os cães vão à justiça

No Brasil, o primeiro caso no qual dois cães, Rambo e Spike, foram admitidos como autores de um processo na Justiça foi marcado por idas e vindas. Os dois haviam sofrido maus-tratos dos antigos tutores ao serem abandonados por 29 dias em Cascavel (PR). Eles foram resgatados pela ONG Sou Amigo, responsável por representar os animais na ação, na qual era pedida uma indenização por danos morais contra os tutores.

Inicialmente, a Justiça pôs fim ao processo sob o argumento de que animais não detêm capacidade processual. Rambo e Spike recorreram, e o caso foi parar na segunda instância, que reviu o entendimento do juiz em 2021. O processo voltou a correr e terminou com o reconhecimento dos maus-tratos, mas com um revés. A juíza do caso entendeu que os cães não poderiam receber a indenização por danos morais, direito que, para ela, seria reservado apenas a seres humanos.

Segundo a advogada de Rambo e Spike, Evelyne Paludo, os representantes dos animais decidiram não dar continuidade ao processo:

— Optou-se por não recorrer para que a perda da guarda se tornasse definitiva e assim eles pudessem ser adotados, encerrando a tentativa de disputa dos ex-tutores. A segurança dos cães foi priorizada em relação ao valor da indenização.

Desde então, mais animais conseguiram na Justiça o direito de ajuizar ações, por vezes com resultado diferente. Foi o caso de Tom e Pretinha, dois cães de Santa Catarina atingidos por tiros na pata e no tórax, disparados por um vizinho que alegou legítima defesa. O tutor da dupla pleiteou nos tribunais o ressarcimento pelos custos veterinários, além de danos morais em nome dos animais, também autores do processo. Ao final do processo, em 2023, o juiz determinou o pagamento de uma indenização de R$ 2 mil a Tom e Pretinha Canis Lupus Familiaris, nome completo da dupla, com uma condição: que o montante fosse usado em favor dos dois.

Nem sempre, no entanto, a decisão é favorável aos animais. Em 2021, o cachorro Chaplin foi impedido de figurar como autor de uma ação pelo Tribunal de Justiça da Paraíba. O argumento apresentado pelo desembargador José Ricardo Porto foi que o animal carecia de personalidade jurídica, qualidade restrita a pessoas físicas ou jurídicas, e não existia legislação com autorização explícita. No mesmo ano, o TJ-SP adotou entendimento semelhante em um processo no qual se pleiteava a inclusão de 30 cães no polo passivo de uma ação de reintegração de posse por inadimplência.

Diferentemente de outros especialistas ouvidos pelo GLOBO, Evelyne Paludo é mais crítica à proposta da reforma. Para a advogada, apesar da adoção do termo “seres sencientes”, os animais seguem vinculados no texto ao regime de bens. Ela avalia que o artigo 11 seria um retrocesso ao relacionar os direitos de personalidade, que quando violados ensejam indenização, à dignidade da pessoa humana:

— Essa proposta coloca em risco o avanço que o direito animal vem tendo no Judiciário. Os animais seguirão no regime jurídico dos bens e será retirada deles a possibilidade de pleitear qualquer direito.

O professor da FGV Gustavo Kloh entende de outra forma:

— Não daria para falar que eles têm dignidade humana, mas dignidade animal. O artigo 11 não é exaustivo, é exemplificativo. Estamos o tempo todo falando em novos direitos e novos danos à personalidade. É algo mais amplo.

Custos compartilhados

Para especialistas favoráveis à mudança na reforma do Código Civil, a adoção do termo “senciente” reflete as alterações vistas nas relações entre pessoas e animais nas últimas décadas. Na mesma linha, a proposta traz a previsão expressa de que divorciados têm a obrigação de compartilhar despesas dos cães e gatos. No Brasil, a população de animais domésticos está na casa dos 168 milhões, segundo levantamento de 2024 da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação.

Em outros artigos, no entanto, o projeto mantém o tratamento de bens aos animais, afirmando que eles podem ser, por exemplo, alvo de penhor quando utilizados na indústria.

— Esse fenômeno de cachorro ser membro da família é novo. Estamos falando de decisões do ano passado, retrasado. No Direito isso não é nada. Precisamos de décadas para digerir — destaca Kloh.

As primeiras versões da proposta eram menos benéficas aos animais. Inicialmente, o artigo 91-A classificava-os como “objetos de direito” e “dotados de sensibilidade”, terminologia questionada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em ofício enviado à comissão responsável pela formulação do texto. Ela argumentou que as expressões criavam obstáculos “para equiparar a tutela jurídica da fauna com as melhores práticas de proteção adotadas em países democráticos, que conferem determinados direitos fundamentais aos animais”. A sugestão foi acolhida pelos juristas, e a expressão “objetos de direito” suprimida, enquanto sensibilidade virou “sencientes”.

Diretora jurídica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, a advogada Ana Paula Vasconcelos avalia o texto do projeto como positivo, ainda que passível de críticas:

— O ideal é que eles fossem retirados do capítulo de bens, mas o fato de serem considerados seres sencientes dá maior proteção jurídica. Não é da maneira que gostaríamos, mas permitirá aos juristas uma maior defesa dos direitos fundamentais dos animais.

Para Vasconcelos, o texto promove a “descoisificação” dos animais. Assim, o reconhecimento expresso de animais como distintos de bens auxiliaria a impedir, junto ao Judiciário, que eles sejam tratados como propriedade.

Os especialistas avaliam também que o novo texto tem potencial de levar à revisão de questões controversas, como as “vaquejadas” e o sacrifício animal em rituais religiosos.

— O Supremo Tribunal Federal decidiu não se meter na matéria e preservar a liberdade religiosa, mas não dá para saber se no futuro vai ser igual. E em práticas populares, como a vaquejada, o STF já foi e voltou no tema — diz Gustavo Kloh.

Adaptado de O Globo.

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