Cascos de tartarugas são usados há séculos para fazer de tudo – de jóias a pentes e louças –, por conta de sua durabilidade e camadas translúcidas em tom âmbar e marrom. “Era plástico antes de o plástico ser inventado, porque é muito maleável”, diz Brad Nahill, cofundador e presidente do grupo de conservação de tartarugas SEE Turtles e Explorador da National Geographic.
A espécie cujo casco é mais procurado é a tartaruga-de-pente, que está criticamente ameaçada. Entre 1884 e 1992, pelo menos nove milhões de tartarugas-de-pente foram mortas e vendidas por seus cascos. Hoje, restam menos de 25 mil fêmeas reprodutoras no mundo, e seu comércio internacional é proibido.
O grupo de Nahill lidera um esforço para usar a alta tecnologia para combater o comércio ilícito desse material. O casco de tartaruga pode ser reproduzido com facilidade – e com precisão – com resina. Muitos vezes, é quase impossível distinguir o real do artificial. Mas a SEE Turtles, com parceiros do Smithsonian OCIO Data Science Lab, criou um aplicativo para ajudar.
Chamado SEE Shell, o aplicativo usa aprendizado de máquina para identificar, através de um foto e com 94% de precisão, se algo com padrão de tartaruga foi feito a partir de um animal. É o primeiro aplicativo móvel a usar visão computacional para combater o comércio ilegal de vida selvagem, de acordo com Alexander Robillard, pré-doutorando do Laboratório de Ciência de Dados do Smithsonian que construiu o modelo de computador que o alimenta, e que ajudará a informar os compradores e as leis voltadas para a conservação, bem como as autoridades. (O aplicativo pode ser baixado na AppStore e no Google Play).
As vendas de casco de tartaruga no mercado negro persistem em pelo menos 40 países, diz Nahill, concentrados principalmente na América Central e no Sudeste Asiático. Turistas que compram bugigangas de tartaruga em lojas de presentes e barracas de souvenirs são responsáveis pela grande maioria das vendas ilícitas.
O aplicativo também é valioso pela riqueza de informações que pode fornecer. Todas as imagens são enviadas para um banco de dados privado e centralizado, com coordenadas GPS para cada uma, permitindo que SEE Turtles identifique pontos com mais vendas ilícitas.
“Mesmo que tenhamos apenas algumas centenas de viajantes usando ativamente, coletando dados e evitando comprar a carapaça de tartaruga real, já é uma grande coisa”, diz Nahill. A SEE Turtles planeja distribuir o aplicativo gratuito por meio de campanhas em redes sociais e parcerias com outras organizações de conservação.
A ecologista marinha Emily Miller, que não esteve envolvida no desenvolvimento do aplicativo, mas foi autora de um artigo de 2019 sobre o tamanho do comércio global de tartarugas-de-pente, diz que, embora muitos grupos diferentes ao redor do mundo estejam coletando dados sobre o comércio da espécie, “uma das principais barreiras para responder à perguntas da pesquisa é consolidar, formatar e organizar todos os dados”. Ter um banco de dados maior e centralizado “será incrivelmente útil para entender os padrões de comércio globalmente”, diz ela.
Treinando máquinas para proteger tartarugas
Robillard trabalhou com a equipe de Nahill para coletar 4 mil imagens de produtos de casco de tartaruga reais e falsos. Robillard jogou essas imagens em seu modelo de computador, que analisou os pixels em cada uma para aprender as diferenças de forma e coloração entre os cascos de tartaruga real e o material falso.
Uma diferença fundamental, diz Nahill, é que o padrão no casco de uma tartaruga real é aleatório. Produtos falsos tendem a ter manchas com bordas uniformes ou o mesmo padrão em diferentes itens vendidos juntos. A tonalidade laranja em tartaruga falsa também tende a ter uma translucidez consistente por toda parte.
Nahill e Robillard são bons em distinguir o real do falso, mas sem o aplicativo, pode levar anos de prática para um não especialista desenvolver a habilidade. “Gosto de dizer às pessoas que isso coloca Brad [Nahill] no bolso!” diz Robillard sobre o aplicativo. O aprendizado de máquina e a visão computacional “podem fazer qualquer tarefa visual que um humano possa fazer, mas com mais eficiência e rapidez”, diz ele. (Eu testei SEE Shell em dois pares de óculos com padrão de tartaruga e, imediatamente, ele identificou ambos como falsos.)
Misturadores de coquetel e mais
Através do aplicativo, os cientistas já se depararam com produtos de conchas de tartaruga que não sabiam que existiam – como, por exemplo, colheres de casco de tartaruga para misturar coquetéis, por exemplo, e esporas de galo de rinha.
O aplicativo será valioso para grupos conservacionistas locais. Antes de seu lançamento, a Fundación Tortugas del Mar, um grupo de conservação de tartarugas em Cartagena, na Colômbia, já havia conseguido envolver as autoridades locais para reprimir o comércio, reduzindo-o em quase 80%. Mas, diz Nahill, as autoridades só fazem patrulhamento se alguém do grupo de conservação os acompanhar para ajudar a identificar produtos ilegais. O grupo Tortugas del Mar planeja treinar policiais para usar o aplicativo para que possam trabalhar de forma mais rápida e independente.
David Godfrey, diretor executivo da Sea Turtle Conservancy, cujo trabalho inclui esforços para proteger as tartarugas-de-pente no Panamá – um ponto importante para o comércio desse tipo de objeto –, diz que se os turistas usarem o SEE Shell seria como equipar “um exército para dificultar a vida dos pessoas vendendo [tartaruga] indevidamente”. Agora que as pessoas podem identificar o objeto real, imediatamente, os fornecedores podem pensar duas vezes antes de carregá-lo, diz ele.
Com a ajuda do WWF, a SEE Turtles também pretende levar a tecnologia para plataformas online que viram um aumento no comércio ilegal de animais selvagens nos últimos anos. Facebook, eBay e outros filtram produtos ilegais detectando anúncios que incluem palavras-chave proibidas, mas os filtros são facilmente contornados. “Até onde podemos determinar, ninguém fez nada visualmente”, diz Nahill.
Essa tecnologia de aprendizado visual pode ser adaptada, potencialmente, para outros materiais de vida selvagem, como discernir ossos reais de falsos. A capacidade de identificar o marfim de elefante imediatamente real seria particularmente valiosa, mas é mais complicado do que os cascos de tartaruga, observa Robillard, porque um indicador-chave de marfim autêntico são suas linhas internas cruzadas, que não são visíveis em uma foto.
No entanto, diz ele, “há todo um mundo de possibilidades para aplicar o aprendizado de máquina a questões de conservação”.
Fonte: National Geographic