“Outros seres também têm direito de dizer “eu” – Leibniz
Qual nosso limite quando se trata de acessar o corpo do outro? Entre os humanos, de modo geral, torturar, violentar, machucar, interditar, entre outras ações similares, são reprovadas e consideradas crimes. Esta é uma conclusão refinada que precisou muitos séculos para ser elaborada. No Brasil, levamos 400 anos para entender que nossos irmãos da mesma espécie não podiam ser escravizados. Era, naquele contexto histórico, moralmente aceito separar núcleos familiares, dissolver referências religiosas e culturais, e dar àquele que um dia teve nome a designação de “carga viva”. Não sendo mais um “eu”, era aceitável despachá-los para outro continente, em um navio sem o mínimo de dignidade e, caso sobrevivessem, teriam como destino servir a algum senhor, pelo resto de sua vida. No livro Brasil uma Biografia, de Schwarcz e Starling, é dito que foi o maior fluxo migratório forçado da história até o século XIX. Romper com esse sistema demandou um paciente e silencioso trabalho de resistência dos negros, conjuntamente, com a organização dos abolicionistas.
Quando se trata do corpo do outro, agora um animal, a linha limítrofe não é tão clara. Como somos legisladores da própria causa, criamos entendimentos e sentidos que nos favorecem. Temos o poder de nomear, com isso inventamos nomes e as coisas se transformam naquilo que as designamos. Podemos dizer que não há limites, pois o animal é um ser autômato, uma máquina que existe para nos servir. Fazemos com eles, sem nenhum constrangimento, o que bem entendemos, afinal não fazem parte de nossa consideração moral.
Assistimos, neste mês de fevereiro, à grande operação envolvendo a tentativa de exportação de 27 mil bois vivos para a Turquia. Esta “carga viva”, que não queria estar ali amontoada, estava prestes a viajar quase 6 mil milhas náuticas, 11 mil Km, o que demandaria, aproximadamente, 15 dias até o destino. O navio, com o sugestivo nome “NADA”, o maior que existe para transporte de “carga viva”, só não zarpou graças à ação civil pública movida pela ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, com apoio de muitos abolicionistas da escravidão animal, tendo como réu o Governo Federal.
Nessas situações, há sempre aqueles que defendem o negócio e os que defendem os animais. Li os dois argumentos. O veterinário representante do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) diz que a “modalidade” é considerada um segmento importante do agronegócio e que gera alternativa de mercado para os produtores rurais brasileiros. “Não constataram nenhuma irregularidade”. Também o Ministro dos Transporte, Portos e Aviação Civil disse torcer para resolver a situação rapidamente “para evitar mais prejuízos, tanto aos animais como ao mercado”. Para o governo federal, a judicialização da questão “prejudica os bois e abala a imagem do país”.
Do lado dos animais, o laudo da médica veterinária Magda Regina conclui que “a prática de transporte marítimo de animais por longas distâncias está intrínseca e inerentemente relacionada à causação de crueldade, sofrimento, dor, indignidade e corrupção do bem-estar animal sob diversas formas”. As imagens de seu relatório falam por si só. Não precisaria de nenhuma linha escrita. Poupo o leitor dos detalhes.
Retomo a reflexão do professor de filosofia em Harvard, Michael Sandel. Ela não se refere ou abrange os animais, entretanto podemos fazer essa aplicação. Para ele, nos últimos trinta anos vivemos um fenômeno. Passamos da economia de mercado para a sociedade de mercado. A primeira é eficaz para organizar atividades produtivas. A segunda é um estilo de vida em que os valores e o pensamento de mercado tendem a dominar todos os aspectos de nossa vida, não só bens materiais, mas vida familiar e relações pessoais, saúde e educação, mídia, política etc. “Tudo está à venda”. Os valores e pensamento de mercado podem desencorajar e corromper os valores. O referido professor propõe um debate público sobre a lógica do mercado que serve ao bem comum e onde ela simplesmente não se encaixa. Ele lança uma pergunta: “em uma análise custo-benefício, o prazer da maioria dos romanos da plateia compensaria a dor e a morte da minoria de cristãos devorados pelos leões nos circos da Roma Antiga?”.
A dor e morte de tantos animais em uma escala como nunca vista, cercada de tanta crueldade, justifica? Continuamos escrevendo nossa história e pautando nossa economia às custas do corpo do outro ou da degradação do meio ambiente. Quanto um navio com 27 mil bois vivos nos diz do nosso NADA humano e da ausência de humanidade! Bom seria se o navio NADA fosse repleto de TODA a nossa sensibilidade, generosidade, compaixão e respeito aos outros seres, que, conforme o filósofo Leibniz, têm o direito de dizer “eu”.