O mais novo relatório climático da ONU acabou por se tornar um registro histórico de como o mundo está falhando em conter a crise climática. Focado em como mitigar as mudanças climáticas, a negociação do documento, divulgado na segunda-feira (4), foi a mais longa e difícil da história do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da ONU), segundo cientistas que participaram do processo.
“Foram quinze dias insanos em que houve uma dificuldade de convergência muito grande”, afirmou Suzana Kahn-Ribeiro, membro do IPCC, durante um webinário realizado ontem (6) pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). “Eu só posso entender que esta dificuldade vem da urgência das informações contidas no relatório e do fato de as decisões políticas não estarem sendo tomadas.”
Há pouco mais de quatro meses, na cúpula da COP26 da ONU, quase 200 países disseram que “reduções rápidas, profundas e sustentadas” nas emissões eram necessárias para enfrentar a crise climática. Sob influência do conhecimento produzido pelo IPCC, os governos concordaram no Pacto de Glasgow que a diminuição progressiva dos combustíveis fósseis seria o caminho para isso. Desde então, a maior parte dos grandes países poluidores, Brasil inclusive, criou políticas para proteger fontes poluentes de energia.
Sabem o que fazem
O IPCC foi criado em 1988 para oferecer o conjunto mais confiável de dados científicos sobre a mudança do clima. O Painel faz isso a partir de uma minuciosa revisão de estudos sobre clima publicados em periódicos que tenham, por sua vez, sistemas de revisão por pares. Neste último relatório, mais de 3 mil artigos foram analisados, um processo acompanhado linha a linha por diplomatas de todos os países.
Este exaustivo processo de checagem garante que nenhum governo ou organização possa alegar que não sabe, por exemplo, a escala dos impactos da crise do clima, amplamente documentada em relatório específico sobre impactos atualizado em fevereiro.
Ninguém pode dizer que desconhece que as emissões de gases de efeito estufa liberadas pelo uso de combustíveis fósseis estão impulsionando a elevação do nível do mar, a acidificação dos oceanos, o agravamento de eventos extremos, matando pessoas e o mundo natural. O relatório do IPCC atualizado em agosto mostra em detalhes como e porque a mudança climática está ocorrendo.
Agora, o IPCC informa que há muito pouco tempo para mudar os sistemas de energia e de transporte e reduzir o desmatamento se o mundo quiser manter o aquecimento da Terra abaixo de 1,5ºC e evitar um cataclisma. “Dos três, este é o relatório que mais mexe com interesses setoriais e de governos”, comentou, durante o webinário, o membro do IPCC Gilberto Jannuzzi, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
“No caso do transporte, que é o capítulo em que eu contribuí, a meta precisa ser de emissões negativas porque já não há como chegar a emissões zero neste setor até o fim do século. Houve dificuldades sem precedentes para incluir esta informação no relatório”, relata Kahn-Ribeiro, que é professora da Universidade Federal de Rio de Janeiro.
Os veículos elétricos são vistos pelos cientistas como a melhor solução para descarbonizar o setor de transportes em nível global, desde que a eletricidade usada tenha origem renovável. Segundo a pesquisadora, muitas diplomacias, incluindo a brasileira, pontuaram ao Painel que não há infraestrutura para esses veículos nos países em desenvolvimento, defendendo a sobrevida dos motores a combustão por meio de combustíveis não fósseis.
Os biocombustíveis, como etanol e biodiesel, poderiam ter um papel na mitigação, favorecendo grandes produtores, como o Brasil. Os cientistas, por outro lado, foram firmes em apontar que esta solução pode gerar mais problemas, como aumentar a competição por terras disponíveis para produção de alimentos.
“No caso do Brasil, nós perdemos o tracking das políticas necessárias em cada setor e como um afeta o outro”, lamentou Mercedes Bustamante, membro do IPCC e professora da UnB (Universidade Federal de Brasília).
“Há potencial de mitigação por meio das vegetações costeiras, como os manguezais, que são grandes sumidouros de carbono, ou do reflorestamento, para o qual nosso país tem enorme potencial. Mas se não houver governança, uma solução pode virar um novo problema em outra área, e no final é possível que políticas isoladas agravem os efeitos das mudanças climáticas”, conclui Bustamante.
E o que mais você precisa saber:
Bronca
Limitado às mais duras palavras que seu cargo diplomático permite, António Guterres, Secretário-Geral da ONU, fez um discurso indignado sobre o novo relatório do IPCC. Ele afirmou que os países e empresas estão “mentindo” e que os dados do relatório dão um veredicto condenatório à humanidade.
“Ativistas climáticos são às vezes retratados como radicais perigosos. Radicais e verdadeiramente perigosos são os países que estão aumentando a produção de combustíveis fósseis”, disse.
Um novo abril
O mês começou com a maior chuva já registrada para abril na região da Costa Verde (RJ). Em Angra dos Reis, choveu 324 milímetros (mm) em quatro dias – o recorde anterior era de 203,4 mm em todo o mês de abril de 2019. Em Paraty, choveu 429 mm, superando 2011, quando 329 mm foram registrados no mês inteiro. Ao menos 20 pessoas morreram em soterramentos e enchentes na região.
A relação de eventos extremos como este com as mudanças climáticas pode parecer óbvia, mas só pode ser confirmada por análises específicas, chamadas de estudos de atribuição. A maior parte dessas pesquisas são feitas nos países desenvolvidos, e o Brasil não tem uma política de investigação destes fenômenos nos nos moldes da WWA (World Weather Attribution).
Desinformação
O Pinterest anunciou que vai barrar publicações que contenham falsas alegações sobre a crise climática. Muitas redes sociais estabeleceram políticas para frear a desinformação sobre clima, mas têm falhado em cumprir suas próprias regras, como exemplifica a denúncia feita pela reportagem da Agência Pública sobre o YouTube.
#PacoteVerdeNoSTF
O julgamento conjunto de sete ações de litigância climática no STF foi retomado nesta quarta-feira (6) com grande foco no desmatamento da Amazônia. Na leitura de seu voto sobre a ADF 760, que denuncia o desmonte da fiscalização ambiental, Cármen Lúcia apontou as muitas contradições da defesa do governo federal. Ora a atual gestão diz que não houve diminuição da fiscalização, ora alega que diminuiu por causa da covid – o que não poderia ocorrer, já que são atividades essenciais.
O Ibama acabou por reconhecer que não participa das reuniões relacionadas ao PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) e tem déficit de fiscais, desmentindo a alegação do próprio órgão de que manteve no mesmo patamar sua fiscalização na região. A ministra ressaltou que os crimes ambientais na floresta amazônica aumentaram de maneira excepcional e classificou a atuação do governo no tema como um “engodo administrativo” que fere a Constituição. O ministro André Mendonça pediu vistas, mas outras pautas climáticas voltam ao plenário nesta quinta.
Terra Livre
“Não temos dinheiro para comprar deputados”, declarou nesta quarta-feira (6) o cacique kayapó Megaron Txucarramãe à plenária do 18º ATL (Acampamento Terra Livre), em Brasília, com a participação virtual do Parlamento Europeu e da ONU. À tarde, uma marcha reuniu aproximadamente 6 mil indígenas de 172 povos em defesa da demarcação de Territórios Indígenas como parte das demonstrações do ATL.
Você conhece?
São Gabriel da Cachoeira (AM), maior município do Brasil em extensão territorial e que tem uma população formada por 90% de indígenas, conta com uma programação de rádio especializada desde 2017, com notícias sobre as causas indígenas e muita música regional. A iniciativa é da Rede Wayuri de comunicadores indígenas, transmitida localmente pela Rádio FM O DIA, 92,7. Eles acabam de lançar a segunda temporada do programa Papo de Maloca, e a primeira edição informa sobre o Acampamento Terra Livre, a gestão do FIRN (Fundo Indígena do Rio Negro) e a vacinação contra a covid-19 entre os indígenas.
Fonte: Uol notícias