Há dois anos, Laudisnei de Sousa, 41, dorme nas calçadas de São Paulo. Nos primeiros meses, quando o frio apertava, ele optava por dormir nos centros de acolhimento oferecidos pela prefeitura. No último ano, no entanto, tudo mudou com a chegada de Scooby Doo, seu cachorro. Por causa dele, Laudisnei prefere dormir ao relento. “Não vou abandonar meu único amigo da rua”, conta.
A recusa ao abrigo acontece porque ele teria de ficar longe do Scooby. Segundo a prefeitura, há 117 serviços de acolhimento na cidade para população em situação de rua. Apenas nove contam com espaços para animais de estimação — no frio intenso, a operação emergencial eleva o total para dez. Em todos eles, os cachorros ficam em um canil, do lado de fora do abrigo.
“Faça chuva ou faça sol, quem está comigo é o Scooby, não dá para abandonar desse jeito”, diz Laudisnei. Para ele, a proposta de encaminhar as pessoas a abrigos mostra que a prefeitura “não trata a gente como ser humano”. Laudisnei acredita que a prefeitura deveria disponibilizar moradia a quem vive em situação de rua.
Na última semana, o padre Julio Lancellotti divulgou um documento que quem recusa o serviço de acolhimento da prefeitura precisa assinar. No material, o governo municipal incluiu três possíveis motivos “distância da vaga”, “impossibilidade de levar animal domésticos” e “outros”.
“Já falei com pessoas da própria prefeitura e perguntei para elas se o condomínio implantasse um canil, elas deixariam o cachorro lá. Todas disseram que não. Então, porque a pessoa em situação de rua tem que deixar?”, disse Lancellotti ao UOL.
Questionada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social afirmou que nesta semana dará início a um “serviço de transporte de cães para moradores em situação de rua”, que será feito em caixas de transportes instaladas em veículos.
A pasta afirmou ainda que, segundo dados do último censo, “apenas 1,5% das recusas de acolhimento estão relacionadas à proibição da ida do animal para o centro de acolhida”. Lancellotti, no entanto, afirma que a pesquisa da prefeitura é “feita de uma maneira que os dados ficam comprometidos”.
Albergue é uma resposta caduca, aporófoba [que despreza pobres] e é uma forma de institucionalizar a pobreza, porque ali só entra pobre. Desde 1940, quando teve o primeiro albergue em São Paulo até os centros de acolhido de hoje, o que mudou é que agora tem tomada para carregar o celular.Julio Lancellotti, padre
Ferro-velho em vez de abrigo
Elcides Pedroso, 39, vive há dez anos em situação de rua, sete deles ao lado de Bob Esponja, seu cachorro. Ele perdeu as contas das vezes que chegou em um abrigo e não conseguiu entrar porque não aceitavam animais domésticos. “Se o Bob não pode, eu também não vou entrar”, diz.
Por isso e pela sua liberdade, afirma, ele prefere dormir na calçada. Elcides afirma que é “bem conhecido” na região, então ninguém mexe nas suas coisas.
“Quando faz muito frio ou chove, acabo indo em algum abrigo, mas deixo o Bob no ferro-velho de um amigo, que é fechado e tem espaço para ele ficar confortável”, conta.
A reportagem visitou o centro de acolhimento do Bom Retiro, no centro, onde Elcides costuma dormir nos dias mais frios. O canil do abrigo fica do lado de fora e conta com teto apenas na casinha dos cachorros. “Se chove forte ou faz muito frio, não protege”, afirma.
Para ele, existe um preconceito das pessoas em achar que a pessoa em situação de rua vai abandonar o cachorro ou até mesmo não cuidar direito.
“Cuido melhor do Bob do que de mim mesmo. Ele está com todas as vacinas em dia e se eu tiver dinheiro só para uma comida, compro ração e fico sem comer”, diz Elcides.
Na barraca
Para Silvana, 43, a melhor opção é deixar seus cachorros dentro da barraca. “Perdi há pouco tempo minha outra cachorra, a Úrsula, dava leite na colher para ela e você acha que eu colocaria em um albergue longe de mim?”, desabafa a cozinheira, que passou a viver em situação de rua no primeiro ano da pandemia.
As doações de cobertores, segundo ela, ajudam a manter a barraca quente. Silvana também conta com a ajuda de veterinários voluntários para as consultas e para ração do seu novo cachorro, o Max — um filhote de quase dois meses.
Recentemente, ela foi agredida pelo ex-namorado. Desde então o filhote, diz Silvana, tem sido seu principal companheiro. “Quando a gente tá na rua, tudo muda muito rápido. Às vezes você tem uma amizade, mas a pessoa vai para outro bairro ou cidade. Quem fica são os cachorros”, conta.
Ela trabalhava em um restaurante vegetariano, que fechou nos primeiros meses da pandemia. Segundo Silvana, o vício no álcool, associado ao desemprego, fez com ela passasse a dormir na rua.
Perto da barraca da Silvana está Marcos Paulo Oliveira, 46, conhecido também como Blue. Ele ganhou a Princesa, uma cachorrinha de quase um ano, e depois foi “escolhido para ser pai” de Lula.
“Ele [Lula] sempre andou nas ruas, pra lá e pra cá, mas um dia ficou comigo. Mesmo que fique andando o dia inteiro é aqui que ele come, dorme e me obedece também”, brinca Marcos Paulo.
Segundo Blue, é difícil levar seus cachorros para o abrigo, porque mesmo que tenham um canil, eles estão acostumados a dormir com seus donos. “O cachorro está acostumado a ser livre, andar na rua, sair da barraca para fazer xixi. Como prende do dia para noite?”, relata.
Fonte: UOL