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Não há libertação animal que não seja feminista; e não há libertação feminista que não seja animal

18 de setembro de 2014
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Hoje estreio minha coluna na ANDA. E, sim, como o título sugere, é sobre feminismo e libertação animal. Algumas testas com certeza devem estar franzidas, como prenúncio de uma justa revolta: “Mais um ‘homem feminista’…lá vem m…”. Compreendo integralmente a indignação. Fui testemunha ocular de muitos constrangimentos causados por homens ditos feministas, e eu mesmo protagonizei alguns, para meu desgosto e revolta geral. Sinceramente, também acho muito difícil homens serem feministas, pois muitos não enxergam nenhum problema em adotar uma postura agressiva e dominante; sentem uma necessidade compulsiva por ter razão e demonstram completo desinteresse pelas experiências alheias. Não há feminismo quando se esquece de questionar os próprios privilégios. Cansei de ver sujeitos caírem de paraquedas em reuniões de coletivos feministas e, como fazem em suas casas e relacionamentos, tratarem as mulheres à sua volta como pupilas: “Ser radical só causa mais violência!”; “Vocês devem se organizar assim ou assado, ou o movimento não vai para frente!”; “Mas espera aí! Nem todo homem é ruim! Eu mesmo trato super bem minha namorada!”; e por aí vai o festival de baboseiras. Eu também já banquei o guru do feminismo algumas vezes, e há poucas coisas das quais me envergonho mais.
Em essência, não há nada errado em homens se interessarem pelo feminismo. Na verdade, é necessário que eles o façam. Contudo, a única forma de se participar desta luta é através da própria desconstrução. Eu tive a sorte de ser questionado, insultado, e até completamente desmoralizado por muitas feministas ao longo dos anos e, por isso, sou muito grato. É extremamente fácil para um homem ficar confortável com hábitos opressivos.  Tudo começa na infância, quando as dinâmicas de gênero se estabelecem. Garotos são estimulados a serem autocentrados. Seus heróis e automóveis de plástico estão sempre dominando, atravessando e perseguindo uma redenção individual, o atropelamento de um mal imaginário, a construção de um herói. Do outro lado, meninas, em geral, são estimuladas a simular uma ética familiar, a estarem felizes quando a boneca está bem cuidada e o dever cumprido. Como diria a lendária Carol Gilligan, meninas vivem em “um mundo de cuidado e proteção, uma vida vivida com outros que você pode amar tanto quanto ou mais do que ama a si mesma’”1
Muitos homens aparecem no movimento, como eu próprio fiz algumas vezes, com seus caminhões de plástico, atropelando tudo e todas, e ignorando o que feminismo representa como uma escolha de vida. A função masculina nesse meio não deve ser de decisão, controle e protagonismo. Pelo contrário, deve-se abrir mão dessas coisas pelo feminismo. É um caminho análogo ao esforço de qualquer ser humano que decide aderir ao veganismo. A verdadeira luta pelos animais vem de dentro, do questionamento de nossos próprios privilégios, como um ato de amor e cuidado por aqueles que são encarcerados, torturados e mortos todos os dias. Quando leio os trabalhos de feministas negras, como Bell Hooks, Patricia Hills Collins e Angela  Davis, por exemplo, tenho a impressão de que o feminismo comete suas maiores injustiças quando se torna uma ferramenta para assegurar privilégios de grupos específicos; quando deixa de ser um instrumento de simultânea demolição e reconstrução da  sociedade e de si mesmo. Como Mary Poovey muito bem colocou, o feminismo não pode-se prender “a uma prática que mais uma vez glorifica o feminino, ao invés de nos dar os meios para explodir a lógica binária” estabelecida pela sociedade patriarcal2.
A ideia de gênero não está restrita à categoria humana, pois a própria ideia de humanidade é uma construção de gênero. O movimento feminista critica ferozmente a estigmatização da mulher como um ser “menos racional”; questiona também o valor dado à racionalidade em detrimento das emoções; e denuncia a forma como o patriarcado estigmatiza, oprime e objetifica os corpos. O que não é denunciada geralmente é a forma como animais são oprimidos pelos mesmos motivos. Eles também são estigmatizados, subestimados, objetificados e (literalmente) consumidos.
Quando debato com as pessoas, feministas ou não, sobre a ideia de abolir a escravidão animal, um argumento é muito comum: “eu não vejo nenhum problema em comer o animal ou consumir seu leite ou ovo, se ele for bem tratado”. Devemos refletir sobre o que é ser “bem tratado”. Todos os animais domesticados têm seus ciclos reprodutivos controlados. A vaca deve viver 20 anos a menos do que deveria, engravidando e perdendo seus filhos ano após ano, para que humanos possam beber seu leite. Uma galinha de granja de produção intensiva gera 360 ovos por ano às custas de sua saúde, enquanto normalmente produziria entre 20 e 30. Esses animais vivem para necessidades humanas. O que significa dizer que um indivíduo que foi morto para produzir carne foi “bem-tratado”?  É o mesmo que afirmar que não ligamos para sua liberdade, só para a forma como ela é roubada. Não queremos que abusos sexuais sejam mais delicados, ou que a objetificação dos corpos femininos seja feita “com mais educação”. Feminismo não é sobre aceitar privilégios, é sobre estender real respeito e consideração a todos os indivíduos oprimidos pela sociedade patriarcal. Na minha opinião, feminismo e veganismo são estritamente a mesma coisa. Por isso, não quero ser o homem que paga de guru do feminismo; o branco que marginaliza a luta do feminismo negro; ou mesmo o humano que pensa que a opressão patriarcal só deve ser questionada entres seres humanos. O que me interessa é questionar um mundo de opressão, mesmo que ele também more dentro de mim.


1 Gilligan, C. (1982) In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development. 1st edition. Boston: Harvard University Press, página 32.
2 Poovey, M. (1988) Feminism and Deconstruction. Feminist Studies. [Online] 14 (1), página 65.

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