Não há previsão para a soltura de mais ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) em sua região natural, no interior da Bahia. Ampliar sua reintrodução estaria atrelado no curto prazo a um novo repasse de aves de um criador na Alemanha, cujo contrato não foi renovado pelo Governo Brasileiro.
“Ainda não há data certa para uma nova soltura”, reconheceu o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em nota de sua Assessoria de Imprensa. A autarquia é vinculada ao MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima).
Diretora-executiva da ong Freeland Brasil, Juliana Ferreira explica que manter um ritmo de solturas permitirá que as aves formem uma população minimamente saudável. “Sem isso, se pode condenar o projeto de conservação e a população que está sendo fundada”, alerta. Nesse sentido, o cenário de curto prazo não é animador.
O ICMBio alega que a alemã ACTP (sigla em Inglês da Associação para a Conservação de Papagaios Ameaçados de Extinção) tem sinal verde do Governo Brasileiro e da Cites (sigla em Inglês da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção) para enviar mais aves ao Brasil.
“Como essa movimentação não foi concretizada, parece-nos impossível que haja uma soltura neste ano”, reconhece o órgão ambiental.
Presidente da ACTP, Martin Guth afirma que o processo para enviar 41 animais ao Brasil começou em outubro de 2023, mas que há pedras no caminho. “Dado o futuro incerto do projeto [de conservação da ararinha-azul], não arriscaremos a vida de mais aves sem um entendimento claro da posição do governo brasileiro sobre sua reintrodução”, declara.
Como adiantamos com exclusividade, em maio, o Governo Brasileiro não renovou um acordo firmado há 5 anos com a ACTP para soltar ararinhas vindas do país europeu em unidades de conservação.
Martin Guth (ACTP) conta que a entidade e o Governo Brasileiro discutiam formas para reintroduzir a ararinha-azul desde 2016. Isso levou à assinatura de 2 memorandos de entendimento, naquele mesmo ano e em 2018. “Em 2019, ICMBio e ACTP formalizaram um acordo de cooperação técnica para auxiliar o projeto de reintrodução”, conta.
Essa foi a parceria cancelada. A medida não interromperia a reintrodução da espécie, pois animais de outros criadouros compensariam um eventual interrompimento dos repasses alemães, avalia o ICMBio.
O Brasil reconhece que há ararinhas-azuis na Bélgica, na Índia, no Zoológico de São Paulo (SP) e na ACTP, que informa ter 267 dessas aves. Todavia, a soltura em ambientes brasileiros depende das condições sanitárias e de saúde e de uma origem certificada desses animais.
“Mantê-las em diferentes locais também protegeria o conjunto de aves de impactos como de doenças ou catástrofes climáticas”, pondera Juliana Ferreira, da Freeland Brasil.
ACTP e ICMBio mantêm ararinhas-azuis desde março de 2020 num criadouro no município baiano de Curaçá, a quase 600 km da capital Salvador. De lá foram soltas 20 aves, há dois anos. Uma não se adaptou à vida livre e voltou ao criadouro. Nove são monitoradas conjuntamente. As outras estão mortas ou desaparecidas. Elas teriam sido predadas por outros animais.
Enquanto isso, as aves livres já procriam. Filhotes nasceram em outubro passado e em março deste ano. Essa última reprodução foi registrada pelo criador alemão e num documento enviado ao Governo Brasileiro.
A soltura de ararinhas pode atrasar também porque nem todas as aves mantidas no interior do estado nordestino voarão livres. Casais reprodutores não são liberados. E as chances de crescimento da população livre crescem com a soltura de animais jovens, com bons comportamento, saúde e genética.
“Não é possível formar um grupo completo para soltura, neste momento, sem a vinda de animais do exterior”, reconhece o ICMBio. “A não renovação do acordo não impede a transferência de ararinhas ao Brasil, desde que sejam respeitadas as normas e sejam obtidas as devidas licenças”, pontua.
Conservar espécies como a ararinha-azul é uma obrigação constitucional e internacional do Brasil. Ela foi declarada extinta na natureza no ano 2000, por caça, tráfico e desmatamento. Desde então, há iniciativas para seu retorno à Caatinga, única região do planeta onde vive naturalmente.
Conservação programada
O acordo não renovado com a ACTP definia que a entidade monitorasse a Fazenda Ararinha-azul, onde aves são soltas e nascem filhotes da espécie, e, o ICMBio, a Área de Proteção Ambiental (APA) e o Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha-azul, onde está o imóvel rural.
Pelo acordo, a ACTP era responsável pela construção e manutenção do centro de conservação, pela soltura das ararinhas-azuis e pela arrecadação de recursos. O ICMBio fornecia assistência técnica e autorizações legais.
Por isso, o fim da parceria formal põe em xeque a vigilância de parte da região onde vive a espécie e a participação da entidade alemã nas ações de conservação. “O ICMBio continuará monitorando a espécie no exterior da fazenda e nas demais áreas das unidades de conservação da Ararinha-azul”, afirma.
O planejamento federal para conservação da ararinha-azul opera da reintrodução à gestão das áreas protegidas. Ao trabalho estão vinculados órgãos e universidades brasileiras, ONGs, entidades classistas, criadores internacionais e prefeituras.
Entidades interessadas em reforçar a proteção e a recuperação de espécies ameaçadas, como a ararinha-azul, podem sujeitar propostas aos planos de ação nacionais de conservação, conta o ICMBio. A aprovação federal depende de quesitos como a origem e a qualidade dos animais a serem soltos.
Informações repassadas por Martin Guth (ACTP) apontam que a entidade já transferiu 60 aves para o criadouro em Curaçá (BA), instalado num terreno comprado pela entidade alemã, apoiou até o momento a soltura e monitoramento das aves, buscou apoio financeiro e disparou a restauração de 307 ha na região onde vive a espécie.
“O acordo expirou na semana passada. Isso não afeta nosso trabalho e estamos concluindo os ajustes legais referentes à responsabilidade técnica. Apesar dos nossos esforços, o ICMBio recusou e tomou a sua decisão [de não renovar o acordo] de forma independente”, ressalta Guth.
Laços rompidos
O repasse de 4 araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari) e de 26 ararinhas-azuis do criador alemão ao indiano Greens Zoological, Rescue and Rehabilitation Centre, em fevereiro do ano passado, foi um dos estopins para fim do acordo entre ACTP e ICMBio, que afirma não ter sido informado previamente da transferência.
“Até agora, a ACTP não explicou de forma satisfatória a realocação das 30 aves à instituição indiana”, disse em reportagem de ((o))eco Marcelo Marcelino de Oliveira, diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do ICMBio.
A ACTP adiantou sobre o possível acordo para manter ararinhas no zoológico indiano numa carta enviada ao ICMBio em novembro de 2022. À época, a autarquia agradeceu “pelo empenho despendido no manejo da ararinha-azul em cativeiro e na procura de novas parcerias para a promoção de ações de conservação de aves ameaçadas de extinção”.
Já a gestão atual da autarquia lembra que era esperada uma atualização sobre a parceria e que, menos de um mês depois, a ACTP informou que um acordo assinado incluía o envio de aves excedentes à Índia e pedia orientações para incluir aquele zoológico no programa brasileiro de conservação. Não houve resposta do ICMBio.
“Estávamos na transição do governo, em um momento em que as grandes decisões para este programa estavam praticamente paralisadas. Além disso, estava programada uma reestruturação do programa de manejo oficial, que também se atrasou devido à transição e a todas as mudanças institucionais”, diz o órgão brasileiro.
Apesar disso, o ICMBio analisa que o criador alemão comunicou superficialmente a parceria com a entidade indiana e não cumpriu todas as burocracias antes do envio de ararinhas-azuis à Índia.
Parcerias e doações recebidas pela ACTP não são da conta do Brasil, mas o ICMBio alega que repasses de ararinhas-azuis são ligados ao programa de conservação e devem ser antecipadamente comunicados e autorizados pelo Governo Brasileiro e pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites).
Enquanto isso, uma tentativa da ACTP de transferir mais 60 ararinhas ao zoológico indiano foi flagrada pelo deputado federal alemão Klaus Mack (União Democrata-Cristã). A Agência Federal para Conservação da Natureza (Bundesamt für Naturschutz, em Alemão) ainda não autorizou esse repasse das aves, mostrou o Conexão Planeta. O envio seria não comercial.
Num documento protocolado em reunião no fim do ano passado, em Genebra (Suíça), a Cites comenta que “significativos valores” envolvidos no envio anterior de 30 araras da ACTP ao zoológico indiano não se tratavam de “comércio” porque seriam aplicados na proteção das espécies. Não há detalhes sobre onde, como e quando os recursos serão aplicados.
Em construção, o zoo ligado ao indiano Mukesh Ambani promete exibir a maior coleção mundial de espécies raras. A revista Forbes o lista como a nona pessoa mais rica do planeta. Seus negócios com petróleo e gás, telecomunicações, varejo e serviços financeiros somam o equivalente a R$ 550 bilhões.
“Nossas instalações na Índia receberam 26 aves em 2023 e planejamos enviar outras 60 aves para lá procriar lá”, afirma Martin Guth. Ele afirma que os trâmites legais para a realocação de aves ao zoo indiano foram cumpridos e afirma que as instalações e os animais permanecerão sob cuidados da ACTP. “As aves e seus filhotes estarão disponíveis para o projeto de soltura”, diz.
Diante do complexo cenário, Juliana Ferreira, da Freeland Brasil, avalia que esclarecer rapidamente e dar mais transparência à movimentação de espécies brasileiras é fundamental para a manutenção e a confiabilidade dos projetos nacionais de conservação, mantidos com recursos públicos e internacionais.
“Se as ações estiverem conectadas a transferências cinzentas que podem representar o comércio de parte desses indivíduos [araras], isso pode dar a entender que reestabelecer uma nova população na natureza não é uma prioridade para algumas das pessoas envolvidas”, destaca.
Fonte: O Eco