Um prato de açaí batido, farinha e peixe é uma combinação nutricional rica, e a saborosa escolha de milhares de pessoas na Amazônia. Na região, o açaí é um alimento tradicional, consumido diariamente.
O sabor é diferente daquele do açaí adoçado e com acompanhamento de frutas, balas, e outras combinações. Famoso nessa apresentação no Brasil e no exterior, principalmente nos Estados Unidos, o açaí ganhou o mundo por ser gostoso e nutritivo.
O estado do Pará é responsável por mais de 90% das exportações, além de abastecer grande parte do mercado interno. Em 2023 as exportações do creme de açaí atingiram 79 toneladas, de acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária.
Ainda é madrugada na capital Belém quando embarcações carregadas do fruto roxo escuro começam a chegar ao porto. É assim todas as noites. Ali os paineiros ou rasas de açaí (nomes dados para os cestos tecidos com fibras naturais) são comercializados, e de lá partem para os tantos mercados nos quais o produto chega.
Mas o episódio da internacionalização do açaí é apenas um capítulo recente de uma história milenar, cheia de narrativas emocionantes, sobre como essa palmeira foi decisiva na nutrição e na segurança alimentar de populações na Amazônia. Não por acaso, várias nações indígenas têm relatos sobre o fruto ser uma resposta divina a alguma situação difícil.
Porém a espécie, que recebe o nome científico de Euterpe oleracea, experimenta agora um episódio dramático: o desafio de conviver com secas prolongadas e ondas de calor. A ciência prevê sérios prejuízos caso as mudanças climáticas avancem, e as populações já passam por problemas diante da escassez do seu super alimento.
Na floresta, colheita menos farta
No Pindobal, parte da ilha de Pirocaba, município de Abaetetuba, a família de Danielle Silva Araújo se divide nas tarefas de apanhar, debulhar, catar e bater o açaí. A família também colhe outros frutos, pesca, produz azeite de andiroba, cria galinhas. Mas é o açaí o principal alimento e fonte de renda.
“O açaí, para nós, é tudo”, conta. “A gente almoça, janta. As crianças, de manhã, tem que tomar mingau com o açaí. Quando a gente completa seis meses de vida, o açaí entra na alimentação. E daí a gente só para quando ‘parte dessa para melhor’”.
Na hora de servir o almoço, o açaí é o protagonista. “Só quem toma sabe o tanto que prejudica nossa alimentação quando falha”, conta Danielle.
Até cerca de cinco anos atrás o período de entressafra era de menos fartura, mas não de falta. Porém, nos últimos anos, as famílias viram a produção cair, mesmo na safra, e passaram a encarar problemas que nunca tiveram, como ver o açaí “queimar no pé” – ou seja, secar ainda na palmeira.
A comunidade de Pirocaba fica às margens do rio Maratauíra. São cerca de 450 famílias, e grande parte faz a extração do açaí nativo. Dilmara Silva Araújo, irmã de Danielle, é membro da Associação dos Agroextrativistas, Pescadores e Artesãos do Pirocaba – Asapap. A associação tem acompanhado as famílias e a situação é parecida para todas. “Antes a colheita começava em junho e ia até setembro. Agora não se sabe quando vai acontecer, o que altera todo o planejamento de logística da comunidade”, pontua.
Dilmara conta que, na época da safra, quem tem muitas palmeiras no terreno contrata pessoas da própria comunidade para ajudar na colheita. “A gente fala que na época da safra todo mundo tem dinheiro na mão”, conta. Mas com o verão mais quente e a redução nas chuvas dos últimos anos, foram períodos difíceis para muitas famílias. “Teve gente que não tinha nem para alimentação, tinha que comprar ou conseguir com alguém para comer. É algo que antes a gente não precisava passar”, afirma.
As irmãs relembram a infância, quando o ciclo de chuvas, as cheias do rio e as temperaturas eram mais previsíveis. Agora sentem as mudanças do clima na pele. “A gente que todo dia está na natureza acompanha essa mudança”, conta Danielle. “Ano que vem a gente já não sabe como vai ser… isso é uma preocupação para nós. Será que amanhã, daqui a dez anos, a gente vai ter a qualidade do açaí que a gente tem hoje?”.
A moradora da floresta considera que não ter açaí suficiente seria uma perda sem reparação possível. “Eu não quero outras opções, quero ter direito a essa. A Amazônia morrendo a gente vai morrendo junto. Isso aqui é vida, é a minha vida”.
Espécies ameaçadas
O estudo “Climate change may affect the future of extractivism in the Brazilian Amazon” (“Mudanças climáticas podem afetar o futuro do extrativismo na Amazônia brasileira”, em tradução livre), publicado em 2021, mostra que até 2050 as mudanças climáticas, em associação com outros problemas (como desmatamento) podem afetar a distribuição geográfica de 18 espécies de palmeiras e árvores usadas pelas populações na Amazônia.
A pesquisa foi feita em reservas extrativistas (resex), modelo de unidade de conservação onde as populações vivem e extraem frutos da floresta. Os resultados da pesquisa mostraram que, com as mudanças climáticas previstas, 15 espécies perderiam entre 1% e 70% de sua área de adequação ambiental. Ambas as espécies de açaí (Euterpe precatoria e Euterpe oleracea) podem ser completamente extintas de duas das RESEXs analisadas.
No segundo semestre de 2023 uma grande seca surpreendeu as populações da Amazônia, acostumadas a muita água. Um estudo de atribuição realizado pela World Weather Attribution (WWA) mostrou que a principal causa da seca foram as mudanças climáticas, e que o fenômeno tem 30 vezes mais chances agora do que tinha no cenário pré-revolução industrial.
Regina Rodrigues, pesquisadora e professora de Oceanografia Física e Clima na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi uma das autoras. A especialista comenta que, com as mudanças climáticas, as secas se tornam muito severas.
“O aquecimento tem um impacto muito grande na evaporação”, afirma. “Ele aumenta também a quantidade de chuvas torrenciais, mas as mudanças climáticas têm um efeito muito grave em secas, porque é a falta da precipitação combinada com uma evaporação muito forte”, explica.
“A situação foi grave em 2023, e o cenário não é nada promissor. O Brasil está enfrentando seca na Amazônia, centro-oeste, Pantanal”, lembra a pesquisadora, observando que os mega incêndios, intensificados por causa do tempo seco, também causam destruição em grandes áreas de vegetação nativa, causando ainda mais perdas.
Perdas econômicas e para além delas
Mudanças na quantidade e na qualidade de açaí significam um impacto econômico e cultural devastador. De acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 foram colhidas 247.034 toneladas de açaí de extrativismo, safra que corresponde a uma cifra de R$ 830,1 milhões, cerca de U$148 milhões.
“O açaí faz parte da identidade cultural da Amazônia”, conta Juliana Licio, que é nutricionista, mestre em saúde pública, e pesquisadora em sistemas alimentares com experiência na Amazônia. “É um alimento consumido há séculos. Faz parte de tradições culinárias, rituais e festividades, sendo um símbolo de identidade cultural. O conhecimento sobre o cultivo, manejo, colheita e preparo do açaí é transmitido oralmente entre gerações, representando um patrimônio cultural imaterial de grande valor”, afirma.
O fruto é rico em nutrientes, como vitaminas A, C e E, em ferro, cálcio e potássio, em fibras, e ainda tem propriedades antioxidantes e é energético. “A grande tríade que é a base da alimentação principalmente das populações ribeirinhas, que é o açaí, o peixe e a farinha, fornece as calorias e vitaminas necessárias. O consumo em associação ajuda na absorção dos nutrientes do açaí”, explica Juliana.
A pesquisadora esclarece que o fruto garante a segurança alimentar das populações. Com a escassez o preço sobe, e as famílias com menos renda, principalmente nas áreas urbanas, acabam tendo que abrir mão do açaí. “Há uma substituição por outras fontes, que provavelmente não vão ser fontes energéticas ou saudáveis da mesma maneira. Isso tem a ver com um conceito muito complexo estudado na nutrição que é chamado de transição alimentar tradicional, e que impacta muito as populações de baixa renda na Amazônia”.
Juliana menciona que os alimentos ultraprocessados são muito mais baratos, e costumam ser os eleitos na ausência dos alimentos naturais. “Isso é preocupante porque estamos falando em aumentar a insegurança alimentar”.
Comunidades fazem frente ao problema, mas perdas são grandes
Na fronteira dos municípios de Abaetetuba, Barcarena e Maju está a comunidade quilombola África e Laranjutuba, lar de 78 famílias.
Na entressafra, os moradores fazem o manejo do açaí, que consiste em fazer o corte das palmeiras em áreas determinadas, a cada ano. A técnica e a escolha por manter outras espécies preservadas dentro dos açaizais (diferente do que acontece nas monoculturas), seriam o suficiente para que os açaizais se mantivessem produtivos, em condições normais. Mas com as mudanças no clima, as perdas já chegaram à região.
Evaristo Morais de Oliveira, o Vavá, presidente da Associação Laranjituba e África, afirma que o açaí é a base alimentar, financeira e cultural da comunidade. “Nosso sangue é açaí”, compara.
Neste ano se repete o cenário que vem assustando a comunidade, com queda de mais de 50% na colheita. “Principalmente nos últimos 5 anos, com verão muito forte, seca na Amazônia, a gente perdeu muito a produtividade do açaí”, conta. “O açaí para nós não tem substituto. Quando falta, a gente precisa comprar”, explica.
Vavá conta que na entressafra deste ano a situação foi pior. “Faltou geral. A gente aqui tem açaí em área de várzea, igarapés e igapós. Elas dão em épocas diferentes. Quando falta em uma área, tem em outra. Mas esse ano faltou nas três. A gente mal arrumava para o almoço e para a janta, às vezes nem isso”.
Além das mudanças no clima, Vavá menciona a monocultura do açaí em regiões próximas como uma ameaça aos açaizais nativos. “Nas regiões vizinhas existem fazendas de monocultura, e o agrotóxico jogado lá contamina a água de toda a região”, explica. “Além disso, aqui a gente mantém espécies nativas crescendo o ano inteiro para manter o polinizador, que é a abelha. Mas os produtos lançados lá matam as abelhas”, conta.
Reginaldo de Lima Morais é morador do quilombo, e todo dia apanha açaí. Ele conta que a quantidade de latas tiradas varia de acordo com a demanda da venda, mas que nessa época geralmente já estaria tirando de vinte a trinta latas por dia, em média. “Agora reduziu, estamos tirando tem dia que oito, tem dia que quatro”.
Quando a produção é grande os moradores conseguem vender direto para as fábricas, a um preço melhor. “Mas por enquanto esse ano não tem como vender. A fábrica nem vem quando não tem a quantidade que eles querem”, conta.
Quando não vendem direto para a fábrica, eles comercializam com os marreteiros, que são atravessadores. São eles que fazem o papel de levar o açaí para as áreas urbanas – onde as famílias de menor renda também são afetadas pela escassez.
Preço alto nas cidades; e as estratégias, na floresta, para melhorar a produção
O técnico da Emater Pará, Kléber Perotes, conta que a seca do ano passado pressionou ainda mais um mercado que atualmente já tem mais procura do que oferta.
“Com o aumento do consumo de açaí a oferta não acompanha a demanda. No ano passado, com o efeito do clima, o preço da rasa de 14 kg chegou a 200 reais aqui em Belém. Em termos normais custa de 50 a 70 reais. Então essa população de Belém de baixo poder aquisitivo ficou excluída de poder tomar o seu açaí’, conta.
A Emater acompanha produtores em todo o território do Pará. Com a seca do ano passado foram muitas as perdas. “Fisiologicamente, por ser uma palmeira de folha estreita, o açaí sofre muito rápido com a ação da influência de clima, perde água muito rápido”, explica Kléber.
Principalmente diante das perdas, a Emater tem orientado os produtores a manterem os arranjos de sistemas agroflorestais (SAFs). “O açaí é uma espécie que faz parte do ecossistema de várzea, e a expansão tem se dado em monocultivo. Mas a história nos diz que a tentativa de fazer da Amazônia uma expansão de fronteira agrícola não teve sucesso”, alerta.
Tanto em Pirocaba quanto em África e Laranjituba as comunidades seguem essa mesma linha, e mantém a floresta preservada para que os açaizais produzam melhor. Muitas vezes a “limpeza” da área do açaizal facilita o transitar dos apanhadores pela floresta, mas a conta chega. “Orientar as famílias a manterem outras espécies nos açaizais foi o que a gente fez quando se deu conta que a produção estava caindo, por causa do clima, e que as perdas iam ser grandes”, relembra Dilmara.
No quilombo, o manejo de 15 hectares respeita os ciclos naturais. “Com isso a gente mantém as abelhas polinizadoras o ano inteiro aqui. Quando não tem açaí, elas estão em outras plantas”, conta Vavá. “É isso que tem dado o mínimo de segurança”, pontua.
Na ponta do problema, população fica sem reparação
Perdas e Danos é um conceito que começou a ganhar força durante a COP (Conferência das Partes, da Onu) 27, no Egito. A ONU descreve as PyD como “efeitos negativos das mudanças climáticas que ocorrem apesar dos esforços de mitigação e adaptação”. Enquanto a mitigação age sobre as causas das mudanças climáticas (como a redução das emissões de gases de efeito estufa) e a adaptação sobre seus impactos (como a construção de muros marítimos para evitar inundações), a perda e os danos estão na área dos impactos inevitáveis e / ou irreversíveis da crise climática”.
O acordo de criação de um fundo internacional de perdas e danos foi uma das vitórias na Conferência das Partes da ONU, a COP28, em Dubai. Ficou estabelecido que os países mais desenvolvidos (que mais emitiram gases poluentes) devem aportar recursos a um fundo financeiro destinado aos países menos desenvolvidos, voltado para reparação de perdas e danos que já estão sendo sofridos por causa das mudanças no clima.
O caso do açaí é um exemplo de perda econômica e não econômica. Apesar disso, não há nenhuma reparação financeira para as comunidades atualmente.
O Brasil não se encaixa nos critérios para receber dinheiro do fundo, mas, segundo o Ministério do Meio Ambiente, “isso não impede que o país demande acesso aos recursos do fundo no futuro”. Apesar de a ajuda ser direcionada a alguns países específicos, todos enfrentam danos e perdas irreversíveis por causa das mudanças no clima.
Um estudo publicado na revista Nature estimou, com base em eventos climáticos extremos, que a média do custo das perdas e danos foi de US$ 143 bilhões por ano (cerca de R$ 722 bilhões).
Questionado sobre como fazer frente às perdas e danos, o Ministério afirmou que o Plano Clima (ainda em elaboração) é o principal elemento para evitar perdas e danos (o plano tem foco em mitigação e adaptação). “É muito mais caro lidar com o rastro de destruição produzido por tragédias como a que atingiu o Rio Grande do Sul do que investir em estratégias de mitigação e adaptação. Com o eixo de Adaptação do Plano Clima, o MMA atua para minimizar o escopo das perdas e danos provocados por eventos climáticos extremos”.
Fonte: ((o))eco