A Justiça do Distrito Federal condenou cinco moradores de condomínios em Sobradinho por alimentarem e cuidarem de gatos em situação de abandono, caracterizando a ação como “perturbação do sossego”. Os protetores foram sentenciados ao pagamento de indenizações por danos morais que totalizam milhares de reais. No entanto, os protetores afirmam que a medida é injusta e revela a omissão do poder público em lidar com o problema crescente do abandono de animais.
No caso do condomínio Mansões Colorado, o morador conhecido como Edmar dos Gatos, se tornou símbolo da resistência de quem luta pela causa animal dentro de espaços privados. “Existe, na grande maioria dos condomínios aqui do Distrito Federal, uma proibição de se alimentar os animais comunitários”, explica ao Jornal Opção, fazendo questão de corrigir a nomenclatura. “Eles gostam de chamar de animais de rua, mas juridicamente falando, eles são animais comunitários. O que acontece nesses condomínios? Eles proíbem os protetores de alimentar os animais e não tomam nenhuma providência, nada fazem”.
Há dois anos, a situação em seu condomínio atingiu um ponto crítico. “Eu vi a situação dos animais comunitários, que eram quase 50, 60 numa rua só. Não conseguia nem passar com o carro”, relata. Inicialmente, duas protetoras que moravam naquela rua assumiram a tarefa de alimentar e castrar alguns dos felinos. Contudo, a pressão foi implacável. “Elas alimentavam esses gatos dentro de casa. Começaram a ser muito perseguidas; uma mudou-se daqui no início, a outra mudou depois. E os gatos foram abandonados, ficaram nas ruas sem alimentação”.
Diante do vácuo de responsabilidade, Edmar decidiu agir. “Então, o que eu fiz? Eu criei um grupo aqui de protetores e fomos em busca de negociação com a administração, com o síndico, para ver o que a gente podia fazer”. A receptividade, no entanto, foi inexistente. “Nós não tivemos nenhuma recepção aqui. Trouxemos até duas advogadas da OAB, direito animal, pra discutir, pra tentar negociar. Enquanto a gente estava tentando negociar, o síndico dava multas pra gente tratar dos animais na rua”.
O morador explica que, sem apoio, fundou um pequeno abrigo em um lote cedido por uma vizinha, a quem agradece pela solidariedade. O espaço se transformou em um gatil comunitário, onde passou a aplicar o método CED – Captura, Esterilização e Devolução.
“Eu fundei um abrigo aqui, um gatil, e comecei a fazer o CED. É o procedimento aconselhado pelos organismos de meio ambiente. Você pega, castra e devolve ao ambiente. Esse é o que a lei diz que é o correto de se fazer”.
Sua batalha judicial, no entanto, foi perdida na primeira instância após dois anos de tramitação. “Perdi a ação na Justiça, dizendo que não, que tem que seguir a convenção do condomínio”. Apesar do revés, seu trabalho prático no abrigo prosperou. Ele conseguiu um convênio com a Secretaria de Meio Ambiente do DF, por meio da Secretaria Extraordinária de Proteção Animal (CEPAM). “Eles vieram aqui, fizeram vistoria do meu gatil, viram que estava tudo ok, me classificaram como grande plantel e me deram uma parceria, 30 castrações gratuitas. Já fiz essas 30 e estou renovando para mais 30”.
Os números falam por si: “Nesse período de dois anos, eu tirei 52 animais da rua, entre prenhas também, que eu parei na rua”. Contudo, a perseguição não arrefeceu. “O tempo todo, perseguido pelo síndico e por sua coletividade intolerante aqui, eu tenho seis multas, totalizando R$ 1.500. Tinha seis voluntárias que me ajudavam; hoje eu só tenho uma. Todas ficaram com medo, todas foram multadas, notificadas”.
O caso e a percepção pública distorcida
O problema, ressalta Edmar, ultrapassa o limite dos portões do Mansões Colorado. Em condomínios vizinhos, como o Morada dos Nobres, outras protetoras enfrentam processos semelhantes. Em um dos casos, cinco mulheres foram processadas por alimentarem e castrarem gatos de rua. A Justiça deu ganho de causa ao condomínio, condenando as rés a indenizar os vizinhos por danos morais. Segundo Edmar, decisões como essa “são baseadas em convenções desatualizadas e desumanas, que ignoram as leis de proteção animal”.
“O Judiciário aqui de Sobradinho tem quatro ações; todas nós, os protetores, estamos perdendo”.
Além disso, Edmar critica a cobertura midiática de alguns veículos, que, em sua opinião, simplifica o conflito. “A Globo, a DFTV, deu uma notícia altamente mostrando a posição dos moradores incomodados, a vivência incomodada, como se nós fôssemos culpados. Está havendo uma injustiça muito grande”. Ele argumenta que a narrativa focada no “incômodo” ignora a raiz do problema e a solução que os protetores oferecem.
“Eles dizem que quando nós alimentamos os animais na rua, nós promovemos a procriação, sujeira, invasão de casas. Mas eles não veem, não falam a parte que nós tiramos esses animais da rua, castramos, damos cuidados veterinários”.
O cerne da discussão, segundo o protetor, reside na inadequação das leis. Ele menciona a Lei Distrital nº 6.612/2020, de autoria do deputado Daniel Donizet, que protege os animais comunitários, mas ressalta sua limitação: “Essa lei não abrange condomínios. Então, dentro de condomínios, esses animais ficam à fome, proliferando”.
Da mesma forma, cita a Lei nº 6.810//2021, do mesmo parlamentar, que obriga síndicos a comunicar indícios de maus-tratos às autoridades, algo que, em sua experiência, não é cumprido. “Nós também fizemos denúncias contra o síndico por omissão de socorro. A DSA [Delegacia de Proteção Animal] vem, faz inquérito, chega lá pro promotor e arquivou todas”.
A nova esperança dos ativistas está no Projeto de Lei do deputado Ricardo Valle (PT), aprovado recentemente na Câmara Legislativa, que proíbe condomínios de impedir a alimentação de animais comunitários. “Essa lei corrige essa discrepância. Essa lei proíbe os condomínios de proibir os protetores de alimentar os animais”. O projeto de lei aguarda sanção do governador. “Se o governador não sancionar, pronto, volta tudo à estaca zero”, pondera.
Enquanto aguarda a sanção, o grupo de protetores de Sobradinho se organiza em manifestações pacíficas. “Nós nos reunimos aqui entre esses dois condomínios e começamos a fazer uma manifestação. Na quinta-feira passada, havia vinte pessoas em frente a um condomínio. Sábado que vem vai ter aqui no meu”.
O objetivo é claro: “A gente quer voz para mostrar a verdade dos fatos, para mostrar que não somos vilões. Nós estamos fazendo um trabalho que as administrações dos condomínios deviam organizar os moradores para fazer, e também trazer o poder público para resolver”.
Para Edmar, a luta vai muito além dos gatos que ele abriga, ela simboliza a disputa entre o direito à convivência humana e o dever ético com os animais. “Nós somos a voz dos que não têm voz. Estamos tirando animais da rua, castrando, dando tratamento, promovendo adoção, e ainda somos processados. É uma inversão de valores.”
Fonte: Jornal Opção