O nosso planeta está numa encruzilhada com a crise climática em curso. O estilo de vida baseado no consumismo sem limites e na busca desenfreada pelo lucro está em xeque. No entanto, se tem algo que o sistema capitalista é capaz de fazer é transformar dilemas em produtos colocados à venda.
No caso da moda, esse estratagema do capital acaba desviando o foco do que realmente importa: o modo de produção está em colapso e não existe um planeta B.
Infelizmente, nossas decisões pessoais sobre o quê e como consumimos não têm impacto algum no cenário apocalíptico atual se não houver um esforço político para reformar o nosso modo de vida de forma sistêmica e que gere resultados em escala. Afinal, o processo de optar por um produto ou outro está diretamente relacionado às desigualdades sociais e econômicas geradas no capitalismo.
Nessa toada, acabamos por desconsiderar o sistema geopolítico, as disparidades entre norte e sul global, a distribuição das tarefas desse sistema capitalista entre os países com maior ou menor grau de desenvolvimento e colocamos sobre os ombros das pessoas o peso por “escolhas sustentáveis”.
No caso da moda, ao longo dos anos em que nos deparamos com as incontestáveis mudanças climáticas, a cada temporada surge um novo nicho de mercado para lucrar com a tragédia: moda sustentável, moda consciente, slow fashion e moda vegana são alguns exemplos.
Vou me ater ao caso da moda vegana. Para começar a conversa, o carro-chefe desse nicho de mercado é um tal de “couro ecológico”, que também é chamado de “couro vegetal” ou “couro sintético”. Isso não existe e o uso dessas expressões está em desacordo com a legislação. Trata-se da Lei 4.888/65, que determina que apenas produtos feitos de pele animal podem ser considerados couro.
Moda vegana causa menos impacto ambiental?
Para além da questão política e de nomenclatura das matérias-primas dos produtos da moda vegana, a pergunta se esse nicho de mercado seja melhor para o planeta não tem uma resposta simples.
No que diz respeito às emissões dos Gases de Efeito Estufa (GEE), a resposta, em geral, é sim. Mas se a gente fizer a Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), o quadro muda.
O couro de gado, por exemplo, tem emissões mais altas de GEE, em parte devido ao metano produzido na digestão das vacas e ao desmatamento associado à cadeia de suprimentos do couro. A história se repete com materiais como lã e seda, que também têm um impacto maior no aquecimento global em comparação com alternativas sintéticas, como poliéster e acetato, de acordo com a Higg Materials Sustainability Index.
Mas essa avaliação baseada no GEE não conta a história completa pois não leva em consideração a durabilidade de certos materiais. Por exemplo, produtos de couro muitas vezes duram mais do que itens feitos de materiais sintéticos, o que pode compensar o impacto ambiental inicial.
Também é importante notar que muitas alternativas veganas contêm graus variados de materiais sintéticos, alguns dos quais podem ser derivados de combustíveis fósseis. Além disso, o processo de lavagem de materiais sintéticos, como poliéster e acetato, pode liberar microplásticos nos cursos d’água.
Mesmo alternativas à base de plantas, como Piñatex (feita de resíduos de abacaxi) e Mylo (feita de raízes de cogumelos), contêm alguns materiais sintéticos e não são biodegradáveis, e isso levanta preocupações sobre seu descarte. O mesmo vale para algumas alternativas ao algodão e à lã, que podem incluir materiais sintéticos em sua composição.
Além disso, esforços estão sendo feitos para tornar os materiais de origem animal mais sustentáveis, seja por meio da reciclagem de fibras ou do uso de práticas agrícolas regenerativas.
EM ÚLTIMA ANÁLISE, A MODA VEGANA NÃO EQUIVALE AUTOMATICAMENTE A UMA OPÇÃO MAIS SUSTENTÁVEL DO PONTO DE VISTA AMBIENTAL. A ESCOLHA ENTRE MATERIAIS DE ORIGEM ANIMAL E ALTERNATIVAS VEGANAS DEPENDE DE UMA SÉRIE DE FATORES, INCLUINDO CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E AMBIENTAIS.
O foco atual está em tornar tanto os materiais veganos quanto os não veganos o mais sustentáveis possível, promovendo práticas responsáveis em toda a cadeia de suprimentos.
No final das contas, precisamos de mais esforços que promovam mudanças na escala de produção de produtos com menor impacto ambiental e com maior tempo de vida útil possível. O que não dá é para maquiar essa questão e restringir as transformações urgentes a escolhas pessoais.
Há caminhos auspiciosos, mas eles demandam vontade e articulação política, possibilidade de alterar as matrizes produtivas, ciência, tecnologia e inovação e responsabilização e exigências aos que produzem.
TEMOS QUE PARAR O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL DE PRODUZIR POLIÉSTER PARA ROUPAS, DE DESMATAR PARA CRIAR GADO OU PRODUZIR VISCOSE, DE ENVENENAR OS SOLOS COM USO DE AGROTÓXICO PARA CULTIVO DE ALGODÃO E POR AÍ VAI. EM RESUMO: É PRECISO DESACELERAR. PRODUZIR MENOS, SEJA VEGANO OU NÃO.
E não é a moda vegana que vai mudar esse quadro. Ela pode até fazer parte de um conjunto de iniciativas, mas o fato é que esse nicho de mercado é elitista, para poucos que podem pagar. Isso porque são feitas, em grande medida, de matérias-primas sem produção em escala, são caras e inacessíveis à maior parte da população. É um bom recurso para aliviar a consciência, mas uma péssima estratégia para encarar a participação da indústria da moda na crise climática que ameaça a nossa sobrevivência.
Passou da hora de encarar os impactos ambientais da moda – e isso inclui todos os adjetivos que você queira: vegana, consciente, sustentável – fora da questão moral e de escolhas pessoais. Esse dilema é político, econômico, global e muito complexo, envolve geração de emprego e renda sobretudo de mulheres, transição energética e a disposição de alterar a lógica do lucro crescente na qual todo o sistema capitalista está baseado.
Fonte: Portal Veg