A ascensão do caramelo a sinônimo cão sem raça definida (SRD), guarda mistérios mais complexos do que se pode imaginar. Rei de likes e memes, imperador de influenciadores, imune a polarizações de crença e ideologia, ele desafia as probabilidades genéticas. Isto porque a genética indica que o caramelo, em tese, não é ou não deveria ser a cor de cachorro mais comum, seja de raça ou SRD.
Por que cachorro raiz mesmo é o preto e suas variações, seja castanho-escuro, cinza e assemelhados. Esses tons são gerados por genes dominantes e deveriam ser os mais numerosos. Já os tons de caramelo e derivados, como amarelo, dourado, fulvo, marrom-claro, embora não sejam raros, são naturalmente menos frequentes que os escuros, afirmam os cientistas. No mesmo caso, estão os brancos e malhados.
Ninguém sabe quantos são os cães no Brasil (a última estimativa oficial do IBGE é de 2015 e eles somavam 52,2 milhões) e menos ainda quantos deles são caramelos. É desconhecido se no país, a despeito da genética, o caramelo de fato predomina, seja devido a uma mutação natural ou resultado da seleção de SRDs feita pelo ser humano.
Unanimidade nas redes, os caramelos são enigma no mundo de carne e osso. Se eles não forem realmente os mais comuns, por que são tão populares, materialização da simpatia em quatro patas? E será que é justamente por que são tão populares que ficaram mais comuns ou isso é um viés de observação, um fenômeno cultural?
O caramelo, como qualquer cachorro (Canis lupus familiaris), descende do lobo euroasiático (Canis lupus lupus). Mas não há lobo-caramelo. Existe lobo-cinzento e, a despeito do nome, ele tem várias cores. Porém, não tanto quanto o cão.
Nenhuma outra espécie de mamífero tem tamanha diversidade de cores. A cor da pelagem é resultado da interação de genes e suas variações ocorrida ao longo de milhares de anos.
O cachorro foi o primeiro animal domesticado pelo ser humano, há pelo menos 20 mil anos. Durante e após a domesticação mutações surgiram nos cães e afetaram a sua coloração. Algumas são naturais, outras resultado da intensa seleção feita pelo ser humano.
O geneticista Eduardo Eizirik, professor titular da PUC do Rio Grande do Sul e um dos maiores especialistas do mundo em genômica de animais, explica que são conhecidos oito genes ligados à pigmentação dos cães. A combinação de variações nesses oito genes influencia grande parte das cores.
Mas não é tão simples. Há ao menos outros quatro genes que afetam a cor, cuja existência é deduzida a partir de seus efeitos. Mas esses genes propriamente ditos não foram identificados.
E a saga do caramelo não para aí. Eizirik observa que, possivelmente, existem outros genes que afetam a pigmentação, com efeitos mais sutis, e que ainda não foram descobertos.
As pistas mais diretas vêm de estudos de caramelos estrangeiros. Eizirik diz que o tom caramelo no Brasil parece ser a mesma coloração dos cães que possuem os fenótipos (aparência) chamados de fulvo (do inglês fawn, que alude ao castanho-claro) e amarelo-recessivo.
O fulvo se deve a uma mutação dominante no gene ASIP. O amarelo-recessivo, como indica o nome, é resultado de uma mutação recessiva, no gene MC1R. Ou seja, duas mutações diferentes, em genes distintos e com atuações opostas, deixam a coloração do cão amarelada, tom que genericamente chamamos de caramelo.
“É possível que ambas as mutações ocorram no Brasil. No caso do fulvo, dominante, basta um alelo (variação) vindo de um dos pais para que o cão tenha a cor. Já no amarelo-recessivo é preciso herdar a mutação de ambos os pais. Mas a cor gerada pelas duas mutações é bem parecida”, explica Eizirik.
Os genes ASIP e MC1R atuam de forma antagônica. O ASIP estimula a cor clara e o MC1R estimula a cor escura. Mutações que aumentam a atuação do ASIP geram amarelo dominante, e aquelas que reduzem (ou eliminam) a sua ação geram melanismo (escurecimento) recessivo.
Há inventários de cor em raças de cães, mas elas são artificiais, têm padrões e cruzamentos controlados. Por isso, não dá para usá-las para saber quais cores são mais comuns nos SRDs.
“De fato, a cor caramelo é comum nos vira-latas. Mas há também muitos cães de cores escuras, ou com dorso escuro e ventre claro”, diz Eirik.
Fazer a contagem de animais das diferentes cores responderia à questão numérica. Mas para descobrir a origem da cor caramelo no Brasil seria preciso analisar as mutações nos genes ASIP e MC1R.
O geneticista frisa que, caso seja de fato a cor mais comum nos SRDs brasileiros, uma hipótese plausível é que uma ou ambas as mutações que deixam a cor amarela ocorram muito no Brasil.
E se a mutação no ASIP, que é dominante, for bem comum, levaria a uma frequência ainda mais alta de caramelos. Pois o animal precisa de só uma cópia, herdada de um dos pais, para ter a cor.
Mas também existe a possibilidade que no Brasil haja outras mutações desconhecidas associadas à cor. E pode ser que não seja nada disso e os chamados pretinhos-básicos, tão comuns nas ruas e nos abrigos, sejam os mais numerosos.
“Talvez o amor pelos caramelos faça com que se preste mais atenção neles e crie a sensação de que são mais frequentes do que seus irmãos mais escuros e malhados. Todos, não importa a cor, são maravilhosos, adoráveis”, diz a veterinária Renata Bacila, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Ela acrescenta que não se sabe o quanto as pessoas fizeram os caramelos se tornarem mais comuns. Nos cães, é elevada a herdabilidade, o quanto da herança genética dos pais se manifesta na aparência da prole.
Mesmo envolto em mistério, o caramelo enfrenta nas redes sociais a concorrência do fiapo-de-manga, também conhecido como caroço-de-manga-chupado, que conquista legiões de seguidores. Mas como surgiu o visual arrepiado do multicolorido fiapo já é outra história.
Fonte: O Globo