Enquanto o Congresso Nacional debate propostas que fragilizam o licenciamento ambiental, uma medida já aprovada avança silenciosamente, com impactos profundos no meio ambiente, na saúde pública e no tratamento dos animais: a Lei do Autocontrole (Lei nº 14.515/2022). Atualmente, uma consulta pública do Ministério da Agricultura (MAPA) discute a regulamentação da lei para frigoríficos, transferindo a fiscalização de servidores públicos para veterinários contratados pelas próprias empresas.
A Lei do Autocontrole transfere a fiscalização de frigoríficos — hoje realizada por servidores públicos com independência funcional e poder de polícia — para veterinários contratados pelos próprios frigoríficos, através de um credenciamento de pessoa jurídica. Em outras palavras, permite que o setor seja fiscalizado, contrate e remunere as empresas privadas para apontar suas irregularidades.
Na última semana, a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) protocolou o Projeto de Lei 2714/2025, que propõe a revogação da Lei do Autocontrole. A parlamentar alerta para os riscos de delegar à iniciativa privada a responsabilidade pela fiscalização sanitária em frigoríficos, e defende que esse papel deve permanecer sob responsabilidade exclusiva do Estado.
“Essa lei compromete a função do Estado de proteger a população e os animais. Estamos falando de um setor que historicamente apresenta violações sanitárias e de bem-estar animal. Não há justificativa para que a fiscalização seja terceirizada a empresas que possuem interesses comerciais diretos no processo. Com o PL 2714/2025, buscamos restabelecer a lógica da fiscalização pública, transparente e isenta, como determina a Constituição”, diz Salabert.
O texto permite que os frigoríficos escolham e paguem quem os fiscaliza – um claro conflito de interesses. “A Lei do Autocontrole faz parte de um projeto para transferir responsabilidade do Estado aos indivíduos, precarizando todas as estruturas públicas que protegem a população e os animais. A fiscalização sanitária em frigoríficos deve continuar sendo responsabilidade do Estado e não ficar sujeita aos interesses econômicos do agronegócio”, afirma Carla Lettieri, Diretora Executiva da ONG Animal Equality no Brasil.
Uma investigação internacional realizada pela Animal Equality em sete países, incluindo o Brasil, já havia revelado as consequências da ausência de fiscais governamentais em abatedouros: animais espancados, instalações precárias e falhas graves no processo de insensibilização – deixando muitos conscientes durante o abate. As imagens também mostraram riscos sanitários, com frigoríficos operando em condições higiênicas inadequadas.
A medida também viola o artigo 5 da Lei 14.515/2022, que proíbe expressamente a delegação de poder de polícia à iniciativa privada. Além disso, abre caminho para mais maus-tratos a animais, aumento de carnes contaminadas na mesa dos consumidores e risco real de surtos de doenças alimentares.
“A Lei do Autocontrole, fere o artigo 170 da Constituição Federal, que determina que a ordem econômica deve observar a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente, que nesse caso, só podem ser respeitadas com a fiscalização imparcial e externa dos abates”, declara Yuri Fernandes Lima, advogado especialista em Direito Animal e Direito do Consumidor.
Ele ressalta que esta regulamentação poderá aumentar ainda mais a exposição dos animais a situações de crueldade e maus tratos, que são proibidos pelo artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição Federal, e do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais.
A legislação é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Alimentação (CNTA), e tem oposição de mais de 45 organizações da sociedade civil. A lei representa a privatização da fiscalização em um setor onde o controle estatal é essencial.