“Mundo, será que você não percebe o que está acontecendo ou será que você sabe e se faz de cego?” (Trecho de um texto produzido pelo educando Maicon, do Colégio Estadual Prof. Eugênio Malanski, durante a atividade sobre o Dia Mundial de Defesa dos Direitos Animais)
Na eterna busca de vencer os contrassensos, desejo para este ano mais verdades e menos mentiras às nossas crianças e adolescentes. Quanto mais tempo se leva para ouvir e falar a verdade, mais se aprende a mentir, a omitir e tornar isso como algo aceitável. Como educadora, não me cabe intervir no cotidiano familiar de cada estudante. Mas no cotidiano escolar, este não pode negar seu dever de informar e jamais omitir a realidade.
Penso na força de um inconsciente coletivo, que muitos chamam de “sistema”, alimentado pela família, religião, mídias, mercado e governos, que faz com que as crianças tenham como a maioria das suas comidas prediletas produtos industrializados contendo pedaços e secreções de animais. Elas realmente sabem o que estão comendo? E as tantas outras coisas?
Sabemos que as crianças pequenas não estabelecem posição hierárquica ao se relacionarem com animais não humanos, elas ainda guardam consigo sua “consciência animal”. Mas isso muda com o tempo, com a “socialização”, a qual envolve a supressão desta consciência, necessária ao nosso modelo de civilização. Neste modelo, as crianças são gradativamente enganadas, expostas à banalização da violência. Como disse Gary Yourofsky, em seu depoimento pessoal de como se converteu ao ativismo em defesa dos Direitos Animais: “para os animais nós somos o demônio” [1] Nós escondemos esta verdade.
“Mas isso não é coisa que se mostre para crianças”, alguém um dia falou. Para cada faixa etária uma abordagem, mas sem fugir da verdade. Primeiro forçamos que as crianças reproduzam a nossa cultura doente, fazendo com que aceitem que “está tudo bem, meu anjo, eles não sofrem”. Se um pequeno questiona de onde vem a salsicha do cachorro-quente, ou a “carninha” do churrasco, o que é respondido pelos pais? Não sei. Sinceramente não me lembro destes momentos. O que lembro é de ter que comer carne ou tomar leite, mesmo obrigada, “para ficar forte”. E ter os adultos como referência do que é certo e errado. Quanta responsabilidade a nossa.
Claro que a criança, se não pergunta, tem essa dúvida dentro de si. E suas respostas são reconstruídas na escola com base no conteúdo oculto trabalhado na educação infantil e primeiros ciclos do ensino fundamental: “a vaca dá o leite, a galinha dá os ovos, o porco dá a carne, a ovelha dá a lã” … Tudo tão bonitinho, tão surreal. Como se tudo isso fosse de livre e espontânea vontade “doado” pelos animais não humanos, e não arrancado deles entre gritos e choros.
Enfim, primeiro omitimos a realidade dos animais às crianças, e se isso é questionado, nós mentimos (ou não dizemos a verdade?) até porque muitos dos pais ou não sabem de tudo ou não querem saber, o que é mais provável, para que o churrasco de domingo não seja estragado com uma boa dose de culpa. Ou de verdade?
Não consigo mais enganá-las quanto a isso. Precisamos encarar essas concepções pré-formadas nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio. Haja abordagem biocêntrica. Haja compaixão aos irmãos não humanos.
Diante da banalização da violência sedimentada, nunca é tarde. Eu mesma, após 30 anos de vida onívora converti-me ao veganismo, partindo da reflexão sobre o sofrimento animal. A dor do mundo. Ah, se na minha infância alguém tivesse falado na escola que a dor é a mesma, entre cachorros que eu acolhia escondido da minha mãe e o frango cozido para o jantar…
Cabe a nós, educadores, arrancarmos as cortinas que escondem os bastidores do holocausto animal. Muita coisa pode ser repensada e reconstruída na escola, como as refeições servidas em eventos e festinhas, as saídas de campo, passeios, a merenda escolar, dentre outras. A escola precisa fazer este contraponto, como bem cita o colega Leon Denis [2, 3, 4]. Ela pode com isso avançar no ideal da não-violência, deixando de lado os circos, rodeios, zoológicos, aquários, gaiolas, estiletes, correntes e churrascos. Pelo menos na escola. As crianças e adolescentes farão esta conexão.
Mas toda mudança radical requer coragem para romper com o que tem sido historicamente o papel da escola: um dos mais fortes aparelhos ideológicos de estado, na concepção de Louis Althusser. E para romper com isso tudo, primeiro é preciso romper consigo mesmo, ousar abalar sua zona de conforto. Se não há força nem convicção suficientes para sermos a mudança que queremos ver no mundo, como disse Mahatma Gandhi, como mudar a realidade da escola? Como parar de esconder a verdade para as crianças? Como parar de mentir?
Existem pessoas que estão acordando para a realidade do holocausto animal, mudando suas formas de viver e consumir, convertendo-se em exemplos vivos de mudança. Mas ainda temos poucos educadores biocêntricos, que assumem o veganismo como postura de busca pela coerência, que enfrentam essa realidade e a transpõem no cotidiano escolar. E para aqueles que encaram essa necessidade, sabemos dos obstáculos enfrentados, diretamente ou sutilmente, para que a escola funcione ao menos dando a opção de não violência às crianças e adolescentes. Uma práxis solitária, na maioria das vezes, cada um em sua disciplina, mas nem por isso inócua. Pelo contrário. No final deste ano letivo recebi um relato de uma das minhas educandas do 8° ano que parou de comer carne desde as atividades alusivas ao Dia Mundial sem Carne, em março. Dali nós não paramos mais de refletir sobre a realidade dos animais em cada conteúdo trabalhado em Ciências da Natureza. Uma menina de 13 anos, que reforçou sua predisposição, durante o ano letivo, com conteúdos sobre aspectos sobre nutrição e sistemas digestórios de animais humanos e não humanos, em seus cursos evolutivos e adaptativos.
Por essas e outras, deixo aqui minha dica, após um ano letivo e prestes a começar outro: que neste ano possamos mentir menos para as crianças sobre a realidade dos animais. Precisando de apoio, chame um educador vegano. Ele estará ao seu lado. Mesmo longe de termos todas as respostas, estamos sempre tentando, sempre reconstruindo nossa práxis. As crianças humanas e não humanas precisam da verdade.