Avisada por uma denunciante que prefere manter anônima, a clínica geral e socorrista Patrícia de Arruda Cancellara, de 39 anos, parte às pressas para uma favela na Zona Oeste de São Paulo. A missão dela é das mais árduas: resgatar um pit bull que está sendo agredido a pauladas depois de ter sido derrotado em uma rinha de cães.
Ao chegar ao local, depara-se com o primeiro obstáculo: é informada por moradores que a entrada dela “não é permitida por quem manda na favela”. A solução é uma só: negociar direto com o próprio traficante.
“Se eu não tivesse insistido, teriam terminado de matar o pit bull. Tive de negociar para pegá-lo. Queriam matá-lo apenas porque tinha perdido na rinha. Arrancaram os dentes dele, judiaram dele e ele era muito manso”, conta Patrícia, ainda se comovendo com a lembrança.
O relato é apenas um dos cerca de 500 casos (muitos deles impressionantes e até dramáticos) de resgates de pit bulls e de outros cães de grande porte vivenciados pela médica em dez anos de atuação em defesa dos animais. A atividade extra-profissional ganhou tal proporção em sua vida que ela decidiu criar uma instituição, a Pitcão, dedicada exclusivamente ao resgate de cachorros dessa raça.
Até cinco anos atrás, Patrícia estima que resgatava um cão, geralmente vítima de maus-tratos, a cada dois meses. Atualmente, são de 15 a 20 por mês, em média. “De dois anos para cá, os casos de abandono e maus-tratos a pit bulls aumentaram bastante. São cães queimados, esfaqueados, agredidos, mutilados, todo tipo de crueldade”, afirma a médica.
Madrinhas
No momento, ela mantém cerca de 200 cães hospedados em sete canis distintos. Ela gasta, por mês, de R$ 30 mil a R$ 35 mil, fora ração, remédios, coleiras, guias e outros apetrechos. Grande parte dessa quantia sai do seu próprio salário.
“Nossa instituição é sem fins lucrativos, é tudo feito por voluntários. Felizmente, por meio da internet, temos conseguido muitas ‘madrinhas’, que ajudam a custear o tratamento e hospedagem destes cães. Cada uma contribui com um valor por mês. Além disso, fazemos rifas, bazares e feiras para conseguir bancá-los. Para quem ajuda, fazemos toda a prestação de contas”, diz.
Para incrementar o recebimento de contribuições, a meta é transformar a instituição em uma Organização Não Governamental (ONG) ou em uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que basicamente é uma ONG qualificada pelo Ministério da Justiça. Com isso, as empresas poderiam descontar do Imposto de Renda as doações feitas à entidade. “O meu sonho é montar um canil da Pitcão para diminuir custos. Não tenho verba para pagar um terreno desses. Com uma OSCIP, poderia salvar mais animais”, conta.
Patrícia Cancellara não está sozinha neste trabalho. Outras três pessoas a ajudam diretamente a recolher os animais, e cinco apoiam o grupo. “Tudo passa por mim. Eu delego as funções. E tenho parcerias com policiais, advogados, táxi dogs, veterinários. A gente une esforços”, exemplifica.
Tanto esforço tem sua compensação. Dos mais de 500 cães resgatados, 200 foram doados pela médica. “O processo de doação é lento porque sou muito criteriosa, faço uma triagem muito rigorosa. Só não é possível a doação de cães mutilados ou com doenças e/ou sequelas graves. Alguns têm temperamento mais agressivo por causa de canis de fundo de quintal, que os misturam com outras raças e os atiçam para rinhas”, diz.
Fama injusta
Para a protetora, a fama de agressiva da raça é injusta. “Pit bull não é violento por natureza. Meu filho de 3 anos faz a minha pit bull de gato e sapato. É uma raça que precisa de disciplina, que não pode ser tratada como um poodle. Por isso, a pessoa que for adquirir um cão desta raça tem de se informar bem. O problema é que muitos querem exibir um cão mais agressivo e quando este não corresponde é abandonado. Na rua, o pit bull, ao ser hostilizado, vai reagir, vai se defender.”
Segundo ela, apenas 3% dos ataques registrados de cães são de pit bull. De acordo com o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Prefeitura de São Paulo, desde o começo do ano foram notificados 10.271 ataques de cães na cidade, mas nos registros não há distinção entre as raças.
A estimativa do CCZ é de que 2,5 milhões de cães sejam domiciliados na capital. O órgão só recolhe animais nas condições que se enquadrem em lei municipal: que tenham sofrido de maus-tratos; vítimas de acidentes (atropelamentos); cães agressores e invasores de locais públicos, como escolas e hospitais. A grande maioria dos animais recolhidos é vira-lata, segundo o CCZ.
“A maioria dos ataques a pessoas é de vira-latas. Mas ataque de pit bull vira notícia porque é mais destrutivo. Quando é dada a notícia de um ataque de um pit bull, aumenta o meu trabalho”, lamenta Cancellara.
Adotantes
Ao menos dois dos adotantes de pit bulls recuperados pela Pitcão não se arrependeram. “Adoro o meu cachorro. Vou com ele para a rua e as crianças brincam. É um bebezão”, conta o coordenador de qualidade Eduardo Luiz de Souza, de 31 anos, que adotou Hulk, um pit bull branco de 1 ano, em março deste ano.
Segundo ele, no início, o cão relutava em ir para a rua. “A Patrícia havia me dito que ele tinha sido abandonado e que foi maltratado na rua. Tive problema, porque ele era traumatizado, não queria sair de jeito nenhum”, diz. Para ele, é o “dono quem faz o cachorro”. “Dependendo de como cria, você pode ter um vira-lata violento”, ilustra.
O gerente de projetos Eduardo Rosell, de 35 anos, diz ter se surpreendido em menos de uma semana como um adotante de um pit bull. “Ouvia comentar e ficava com um pouquinho de dúvida, mas o Pluto é um molecão ainda. Ele é muito brincalhão”, revela, sobre o cão adotado.
Assim como os demais, Pluto também foi resgatado da rua depois de ter sido abandonado. “Decidi adotar porque acompanho o trabalho, a causa da Pitcão. É pouco tempo, mas não me arrependi”, conclui.
Fonte: G1