Milhões de pessoas já conhecem a trilogia de desenhos animados curta-metragem The Meatrix, em que o porco Leo descobre que sua bucólica fazenda é uma ilusão e seu verdadeiro “lar” é uma grande fazenda-fábrica suína e, em seguida, junto com Moopheus e Chickity, vai enfrentar a Meatrix e a cópia pecuarista do agente Smith da trilogia Matrix.
Desconhecem os três heróis, porém, que aquilo que eles desenham como ideal – um mundo em que as pessoas, “conscientemente”, consomem carne, leite e ovos apenas de fontes “humanitárias” – também é uma ilusão. No fundo, é uma parte dos planos do Smith de continuar escravizando os animais não humanos e enganando os seres humanos com produtos falsamente éticos.
Pois bem, a quem não conhece o veganismo e o abolicionismo animal, a série Meatrix está fazendo exatamente o inverso do que pretende. Está mantendo os onívoros sob a ilusão pecuarista do consumo “ético” de animais. Convence-os de que o problema, a raiz de tudo, não está na escravidão animal, no tratamento de seres sencientes como propriedade, mas sim apenas nas condições de penúria das criações intensivas, e que a solução disso não seria sua libertação do jugo pecuário, mas sim o seu acondicionamento em fazendas mais confortáveis, de criação presumivelmente extensiva.
Aliás, o que Meatrix vem fazendo no final das contas, a despeito da presumida boa intenção da Free Range Studios, é mover sua audiência de uma Meatrix – a ilusão das propagandas das corporações lacto-frigoríficas convencionais – para outra – o reino da pecuária bem-estarista, onde se faz eticamente justificável manter animais sob regime permanente de escravidão desde que submetidos a condições de “bem-estar” e conforto ambiental.
Percebamos o final do primeiro episódio e o começo do segundo, quando se passa a mensagem de que o “certo” é comprar carne e leite de criações bem-estaristas e ovos de granjas que criem galinhas “soltas” (mas nunca livres de verdade). Aquilo ali, no fundo, acaba sendo uma propaganda (não certamente) gratuita dos pecuaristas mais espertos, que estão sabendo como cativar um público onívoro cada vez mais ciente das crueldades explícitas cometidas pelo ser humano contra os animais, ao empreender o marketing da “carne feliz”.
Acaba sendo o mesmo modus operandi de ONGs da laia da WSPA: fazer os pecuaristas manterem ou aumentarem ainda mais seus lucros transformando suas fazendas e granjas em estruturas confortáveis e não custosas de criação, livrando-se da incômoda imagem institucional de praticantes de crueldade contra animais e assim garantindo uma clientela numerosa e fiel.
No final das contas, os animais, mesmo sob criações confortáveis, continuam sendo tratados como propriedade, como matéria-prima autômata de produtos, como coisas. Não passam a ser respeitados como fins em si mesmos, como seres invaloráveis dotados de interesses e anseios próprios, sedentos de liberdade. Permanecem vindo à existência apenas para fins servis e lucrativos, inteiramente submetidos ao interesse econômico de outrem. Não escapam da realidade em que eles só existem porque alguém quer usar seus corpos como máquinas produtoras para ganhar dinheiro. Continuam confinados em cercados que os proíbem de ser realmente livres e donos de suas próprias vidas.
E, no final de tudo, não deixam de ser precoce e violentamente mortos, seja na idade de abate, seja, no caso das fêmeas e dos reprodutores, no fim de sua “vida produtiva”, por mais “humanitário” e “indolor” que seja seu assassinato. Enquanto isso, os falsamente conscientizados consumidores de animais continuam ingerindo carne, laticínios e ovos. Só que agora estão escolhendo os seus novos fornecedores bem-estaristas. Ficam assim com a consciência tranquila, com a sensação de missão cumprida, acreditando iludidamente que estão fazendo a coisa certa e dando dignidade a quem nunca a teve.
A Meatrix dos pecuaristas tradicionais e a Meatrix do bem-estarismo funcionam da mesma maneira: pela fachada, iludem os onívoros com imagens que remetem bem-estar, liberdade e tranquilidade de consciência, enquanto, lá dentro, mantêm sob jugo escravo e proprietário, dentro de cercados que limitam suas vidas e seus fracos direitos, seres que queriam nada mais do que viver em liberdade.
É fazendo apologia ao financiamento da pecuária bem-estarista ao invés de recomendar o vegetarianismo e o veganismo, defendendo a mera reforma dos escravistas sistemas de criação animal ao invés de sua erradicação, propagandeando a exploração confortável dos animais ao invés da derradeira libertação dos mesmos, que a trilogia Meatrix passa uma mensagem completamente equivocada de consciência pró-animais. Leo, Moopheus e Chickity, ao invés de realmente lutarem contra o sistema, acabam ajudando muito o pecuarista agente Smith, que agora passa a lucrar com a escravidão animal sem mais aquela pecha de cruel.